O Globo
Discordo radicalmente da afirmação de que
iniciar um processo para o afastamento do Presidente Bolsonaro seria
banalização do impeachment. O verdadeiro risco que o país corre é o de
banalizar o crime. A começar pelo crime de responsabilidade. O presidente os
comete em série. Se o impeachment não for o propósito neste momento estarão
sendo revogados o artigo 85 da Constituição, a Lei 1079, artigos do código
penal e todo o arcabouço institucional e civilizatório em torno do qual o
Brasil refez o seu pacto social após a ditadura militar.
O presidente Bolsonaro tem provocado
retrocessos em todas as áreas, ameaçado direitos e avanços. Não houve uma
semana de paz em todo este governo. Um tempo em que ele não tivesse infringido
alguma lei, algum inciso, algum dos nossos mais caros valores. Está claro, a
esta altura, que um dos defeitos a corrigir nas leis brasileiras é o direito
absolutista dado ao presidente da Câmara. Os crimes se acumulam, e os pedidos
de impeachment são ignorados. A mesa do presidente da Câmara receberá em breve
um novo pedido apoiado em relatório da devastadora Comissão Parlamentar de
Inquérito. E o deputado Arthur Lira (PP-AL) poderá continuar ignorando, porque
nada há no ordenamento legal brasileiro que modere esse poder. Está claro
também que o país subestimou o risco que pode representar um procurador-geral
da República alinhado com o governo e em busca da ambição de uma cadeira no
STF. Apesar de tudo o que ele não fez, foi amplamente aprovado para mais um
mandato.
A professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, da USP, explicou numa palestra no Brazil Lab, de Princeton, que o Brasil vive um paradoxo: o sistema é democrático, mas o presidente é autoritário. Ele não controla as instituições, mas a estratégia é de sistemática confrontação. A definição do momento é perfeita, o país tem resistido aos ataques autoritários, mas há um dilema diante de nós. Nessa confrontação ele tem cometido crimes. Se esse paradoxo não for enfrentado da maneira correta, punindo-se o infrator, a democracia vai sair debilitada deste período infeliz.
Não tem lógica o argumento de que não pode
ser usado esse remédio constitucional porque ele já foi utilizado recentemente.
Por mais traumático que seja o impeachment, não tentá-lo neste momento seria o
mesmo que abdicar do dever de proteger a democracia brasileira com os
instrumentos legais existentes. Os partidos que defendem a democracia, estejam
de que lado estiverem na dispersão ideológica natural de um sistema plural,
precisam defender incansavelmente o impeachment do presidente Bolsonaro. Porque
nunca antes dele um presidente cometeu tantos crimes de responsabilidade.
Bolsonaro cometeu crimes contra a vida humana na calamitosa gestão da pandemia.
Houve quem dissesse que a CPI não deveria
ser instalada porque o país vive uma pandemia, era preciso unir o país no
combate à crise sanitária, para depois verificar quem cometeu erros. Os
trabalhos da Comissão mostram como estava equivocada a turma do deixa-disso. A
CPI não apenas tem revelado fatos desconhecidos do país, como estancou
transações criminosas armadas dentro do Ministério da Saúde. O país é informado
do que não sabia, mesmo quando os depoentes repetem que se reservam o direito
ao silêncio. A CPI trabalha tão bem que as intervenções dos senadores revelam
mais do que os depoimentos. Eles mostram documentos e provas em cada pergunta
que fazem. E sem dúvida a CPI fez o governo acelerar o processo de aquisição de
vacinas que nos permite ter a esperança de sair deste pesadelo.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, acha
que iniciar um processo de impedimento agora só conseguiria transformar o
Brasil num país governado por um pato manco. O ex-presidente Rodrigo Maia temia
iniciar um processo que poderia ter o efeito contrário do esperado, ele ser
absolvido e se fortalecer. Há muitos grupos políticos fazendo cálculos do que
poderá ganhar ou perder num eventual afastamento do presidente. Não conseguem
ver que há algo mais valioso em perigo. Se um presidente como Bolsonaro sair
impune, mesmo diante de tudo o que ele fez, faz e continuará fazendo, o país
estará correndo o risco de se fixar esse patamar de degradação da função da
Presidência da República.
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