Folha de S. Paulo
Em tese, quem assumir em 1º de janeiro
poderia contingenciar o orçamento, mas a questão é se terá condições políticas
de fazer isso
O "orçamento secreto" é produto
da metamorfose radical que o governo Bolsonaro sofreu no segundo ano do mandato,
e que decorreu de uma dupla ameaça: o espectro do impeachment e da paralisia
decisória do governo. A encruzilhada crítica ocorreu entre abril e maio de
2020. É nela que o presidencialismo plebiscitário se transmuda —sem que a
transformação se complete— em presidencialismo de coalizão. Nela o STF, então
sob ataques, participou do "pacto".
A crônica desta transformação pode ser recuperada pela voz dos protagonistas. Luiz Eduardo Ramos, à frente da Secretaria de Governo, em junho de 2020, revelou o isolamento do governo: "Até abril, eu nunca tinha conseguido reunir todos os líderes de partidos no Palácio do Planalto. Eles se encontravam na casa do Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Agora mudou". "O ‘pacto’ funcionou", declarou Toffoli em agosto.
A formação da base parlamentar ancorou-se
em partidos, não indivíduos: "Temos um quadro de quem vota e de quem não
vota com o governo. Quer fazer parte do governo? Tem de fazer parte do governo
de fato. Hoje eu tenho esse controle. Sei exatamente o nível de fidelidade dos
parlamentares".
O que mudou? "Antes, um parlamentar vinha aqui sozinho e pleiteava um
cargo. Agora, a negociação é com os partidos". E exemplificava: "O
senador Ciro Nogueira, presidente do PP, tem 60 votos. Por isso, ele tem espaço
no governo com o FNDE".
Recentemente o ministro voltou a descrever
o processo e seus resultados: "Fiz uma reunião com os líderes. E falei:
‘Os senhores querem participar do governo?’ Com isso, fomos montando a
base. A partir daí, a coisa começou a fluir, as pautas começaram a
ser aprovadas".
"A fidelidade é uma responsabilidade
dos partidos"; a gestão do orçamento também. A inédita superdelegação
de autoridade orçamentária é candidamente descrita:
"Quando ia a relação dos parlamentares para o governo, ela só passava pela
Secretaria de Governo para sabermos quem eram os deputados. Nós não tínhamos
interferência alguma". Assim o Executivo não só detém esta informação como mantém o poder
de contingenciar.
Além da impositividade das emendas
individuais e de bancada, aprovadas em 2015 e 2017, a gestão das emendas de
relator é delegada aos partidos. Tragédia dos comuns, como já alertei.
Em tese, o novo presidente em 1º/1/2023
poderia contingenciá-las. A questão-chave é se o Executivo terá condições
políticas de fazê-lo. Se Bolsonaro, é business as usual. Mesmo que quisesse
mudar não teria condições. Se Lula, sua coligação eleitoral deterá 23% da
Câmara. Terá de negociar com partidos anabolizados por fundos públicos e pelo
novo poder sobre o orçamento.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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