Valor Econômico
Reduzir dúvidas sobre as contas públicas é
do interesse de Lula
O aumento das incertezas sobre as contas
públicas no governo de Luiz Inácio Lula da Silva provocou a disparada do dólar,
o salto dos juros futuros e o tombo da bolsa na quinta-feira passada. O
movimento dos preços, que incomodou Lula e petistas graúdos, reflete as
indefinições que turvam o cenário para a trajetória da dívida pública.
Culpar o mercado pela reação não vai funcionar e muito menos ajudar Lula, que terá um começo de governo complicado. A atividade deverá entrar em 2023 perdendo fôlego, pela combinação do efeito do forte ciclo de alta dos juros aqui e pela desaceleração da economia global. Tudo o que o presidente eleito não precisa no início de mandato é de um câmbio volátil e com tendência de desvalorização, o que pode realimentar a inflação e retardar o processo de queda da Selic, hoje em 13,75% ao ano. Para quem venceu a eleição por uma margem apertada, é receita para a perda prematura de popularidade.
Passadas duas semanas das eleições, as
incertezas sobre o que será a política fiscal no governo Lula não diminuíram -
pelo contrário. A primeira fonte de preocupação é a ideia de, na Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) da Transição, deixar R$ 175 bilhões fora do teto de
gastos, referentes ao Auxílio Brasil no valor de R$ 600 e ao pagamento de mais
R$ 150 por criança de até seis anos de famílias do programa. Na quinta-feira,
Lula fez um discurso sugerindo que a responsabilidade fiscal pode ficar em
segundo plano. Para completar, não se sabe qual será o perfil da equipe
econômica e nem qual regra fiscal o novo governo pretende adotar no lugar do
teto de gastos, cuja credibilidade foi solapada pelas manobras para driblá-lo
feitas por Jair Bolsonaro.
Como o Projeto de Lei Orçamentária Anual
(PLOA) para 2023 apresentado pelo atual governo é irrealista, havia consenso,
antes das eleições, de que o vencedor teria primeiro que propor uma licença
para gastar mais no ano que vem. Entre outras inconsistências, a proposta prevê
despesas de R$ 105 bilhões com o Auxílio Brasil, o suficiente para pagar um
benefício médio de R$ 405. Como os dois candidatos haviam prometido manter o
valor em R$ 600, seria preciso autorizar dispêndios extras. No entanto, os
especialistas em contas públicas viam como razoável um valor bem menor que os
R$ 175 bilhões discutidos atualmente.
“Acho que seria razoável aumentar algo até
R$ 100 bilhões, para assegurar a expansão do Auxílio Brasil e a recomposição de
despesas subestimadas de saúde e educação no orçamento”, diz Fernando Veloso,
pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV
Ibre). Para ele, os R$ 175 bilhões são um montante exagerado, que elevam mais a
dívida pública e impactam a inflação. Veloso também destaca outro problema: não
há debate sobre a fonte de financiamento dessa despesa adicional. Ele critica,
ainda, a ideia de retirar do teto esses dispêndios de modo permanente, ou mesmo
por um prazo de quatro anos, como se passou a se discutir na sexta-feira.
“Teria que ser uma licença apenas para 2023, e com fonte de financiamento
adequada.”
Outro ponto essencial é a definição de uma
nova regra fiscal, dada a perda de credibilidade do teto, que limita o
crescimento das despesas à inflação do ano anterior. “O que se discutia nas
eleições é que o governo trocaria a regra do teto por outra e que possivelmente
haveria um ‘waiver’ [a licença para gastos extras] em 2023”, diz Veloso. Mas
não há ainda discussão sobre a nova regra, e a ideia inicial do PT era excluir
as despesas do teto permanentemente. Com isso, há uma possibilidade concreta de
a trajetória da dívida ficar sem âncora. Os novos preços no mercado passaram a
embutir essa incerteza, nota Veloso.
Em vez de reduzir as incertezas fiscais,
Lula as aumentou na quinta-feira, ao perguntar, em tom de campanha: “Por que
pessoas são levadas a sofrer para garantir a tal da estabilidade fiscal neste
país? Por que toda hora as pessoas dizem que é preciso cortar gasto, que é
preciso fazer superávit, que é preciso ter teto de gastos?” A avaliação
dominante é que o petista tratou a estabilidade fiscal como algo secundário e
que dificulta o fortalecimento de políticas sociais. “Lula nunca foi explícito
na descrição de sua política econômica, dizendo que tinha mostrado
responsabilidade fiscal no seu governo. Mas não é isso que tem sinalizado até
agora”, diz Veloso, enfatizando que não existe dicotomia entre política fiscal
responsável e mais ênfase na política social. “O período de melhora dos
indicadores sociais nos anos 2000 [durante os governos de Lula] ocorreu com
responsabilidade fiscal”, lembra ele, observando que, em contrapartida, a crise
das contas públicas nos anos Dilma Rousseff levou a uma piora da situação
social.
Como ainda faltam mais de 40 dias para a
posse de Lula, há tempo para reverter esse quadro de desconfiança. A indicação
sem demora de uma equipe econômica que deixe claro o compromisso com o
equilíbrio das contas públicas seria um passo importante nessa direção.
Para Veloso, além de uma licença menor para
gastos extras no ano que vem, é fundamental definir com clareza qual regra
fiscal será adotada para assegurar a redução da relação dívida/PIB. “Caso o
teto de gastos seja abandonado, é necessário apresentar outra regra que seja
capaz de sinalizar, de forma crível, que essa meta será atingida.” Estabilizar
e reduzir a relação entre a dívida e o PIB não é obviamente um objetivo em si
mesmo. As consequências da perda de controle fiscal são bastante concretas, atingindo
em cheio a vida da população. A percepção de um aumento descontrolado da dívida
pública tende a pressionar o câmbio, o que alimenta a inflação, exigindo juros
mais altos e, com isso, reduzindo o crescimento. Com mais incerteza, os
investimentos são afetados, prejudicando a expansão da economia e as
contratações de novos empregados, principalmente no mercado formal, nota
Veloso.
Na semana passada, Lula e outros petistas
reclamaram do mercado. Os investidores não teriam reagido do mesmo modo às várias
manobras do governo Bolsonaro para driblar o teto de gastos. Na verdade, o
descaso do presidente e do ministro Paulo Guedes em relação à principal âncora
fiscal do país cobrou o seu preço. Por longos períodos, o câmbio ficou mais
desvalorizado do que indicavam as contas externas, os preços de commodities e a
diferença entre os juros externos e internos, contribuindo para manter a
inflação em 12 meses acima de 10%. Já as taxas das NTN-Bs de longo prazo, os
títulos do Tesouro corrigidos pela inflação, oscilam entre 5,5% e 6,5% desde
outubro de 2021 - em 2019, estavam abaixo de 4%. O atual nível desses juros é
insustentável, refletindo a adoção de medidas como a PEC dos Precatórios e a
PEC Kamikaze, que furou o teto para elevar o Auxílio Brasil para R$ 600 e
ajudar caminhoneiros e taxistas.
Mas isso pouco interessa agora. Afirmar o
compromisso com a estabilidade fiscal é importante para o próprio Lula. Se
fizer isso, ele terá mais facilidade para governar, num momento de
desaceleração da economia e polarização política.
Nenhum comentário:
Postar um comentário