segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Catarina Rochamonte* - Transição para a civilidade

O Globo

Êxito do governo Lula poderá levar o Brasil para uma política sóbria, seu fracasso empurrará o país ainda mais para o abismo

Após as eleições, o Brasil foi sacudido por um frenesi alucinatório, uma espécie de histeria coletiva não muito rara na História. Milhares de pessoas foram às ruas por motivações em parte compreensíveis, em parte delirantes. Pais de família sentados no meio-fio à espera de um golpe de Estado, “patriota” agarrado no para-brisa de um caminhão em alta velocidade, mães e avós em gritos e orações febris rogando proteção contra um comunismo supostamente prestes a ser instalado no Brasil. Essa foi a parte caricata e menos nociva da tragicomédia brasileira.

A contestação do resultado das eleições, porém, foi sustentada e animada com informações falsas ou duvidosas recebidas acriticamente pela massa em protesto, e as manifestações espalharam-se rapidamente por todo o país. A inconformidade eleitoral foi elevando o tom insurrecional, transbordando em ameaças. A relutância de Bolsonaro em aceitar o resultado adverso foi e continua sendo um fator estimulante do caos. Apesar disso, a transição político-administrativa para a posse do presidente eleito em 30 de outubro segue, e haverá de estar concluída em 1º de janeiro de 2023. Um tanto mais demorada deverá ser a transição para a civilidade.

O bolsonarismo não é o único culpado pelo pântano de incivilidade em que estamos imersos. A arrogância petista — quando no poder ou na perspectiva de poder — promoveu o “nós contra eles” e incitou o patrulhamento de esquerda contra adversários. Por um processo de regressão civilizatória, o bolsonarismo levou essa incivilidade a um estágio de barbárie.

A incivilidade bolsonarista é programática, fundada na opção pela ignorância e na renúncia à autonomia; renúncia esta que é condição de todo fanatismo. A democracia moderna se funda nos princípios de igualdade e liberdade; num equilíbrio que não é fácil, mas que se vai firmando pelo laço da fraternidade. Logo após o primeiro turno, porém, de maneira aberta e agressiva, o bolsonarismo refugou tal princípio, numa avalanche de grosserias e insultos contra nordestinos, pobres, moradores de favelas... contra todos que, na ótica desses inconformados, haviam rejeitado aquele que têm por chefe e ídolo.

O voto contra Bolsonaro foi, em grande parte, reação a esse monstro que se mostrava por espasmos descontínuos e que, após a derrota eleitoral, passou a mostrar-se por espasmos continuados. Incivilidade que não raro tem passado da violência escrita e verbal para a violência física, algumas vezes resultando em mortes.

O lado vitorioso, por sua vez, está em relativa calmaria, não obstante os grupos radicais que o compõem terem sido, há não muito tempo, protagonistas de cenas de intolerância que apontam hoje em seus adversários. Mas venceram. E quem venceu tem a responsabilidade de acalmar os ânimos, pacificar a nação, restabelecer o equilíbrio.

O presidente eleito tem uma nova chance, uma nova oportunidade. Milhões de brasileiros lhe confiaram a governança de uma nação prestes a se dilacerar numa guerra civil. É sua agora a responsabilidade de conciliar esta nação fissurada, em grande parte devido a seus próprios desvios éticos e à corrupção despudorada protagonizada por integrantes do seu partido.

Lula precisa entender a gravidade do momento histórico e o que está em jogo com sua eleição. O êxito de seu governo poderá encaminhar o Brasil para uma política sóbria, madura e moderada, enquanto seu fracasso empurrará ainda mais o país para o abismo do extremismo e da radicalização.

Que ele pense duas vezes antes de aderir a revanchismos persecutórios ou de repetir escândalos sobre os quais já estamos quase proibidos de comentar.

Não há carta branca para o futuro governo. Se a maioria dos brasileiros fez tábua rasa dos enormes equívocos dos governos petistas, não foi por amor a Lula, mas por horror ao bolsonarismo.

*Catarina Rochamonte, escritora e professora, tem doutorado em filosofia pela UFSCar e pós-doutorado em Direito pela Uerj; é autora de “Um vírus na República da Impunidade: retratos da política brasileira em tempos de pandemia”

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Pois é,a agressividade petista virou fichinha perto da agressividade bolsonarista.Estou na torcida para que nada aconteça no dia 1º de janeiro.