Filme antigo
Folha de S. Paulo
Estreia internacional de Lula 3 tem
fórmulas reprisadas e aliança com Argentina
Que o Brasil tornou-se um pária
internacional sob o governo Jair Bolsonaro (PL) —pretensão anunciada com
orgulho por seu delirante chanceler Ernesto Araújo— não é segredo para ninguém.
Assim, a reestreia de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) no palco internacional como presidente veio carregada de
expectativa, dada a energia dedicada por ele à área externa nos dois mandatos
anteriores.
Simbolicamente, ela ocorreu numa reunião da
Celac, clube de países latino-americanos e caribenhos abandonado por Bolsonaro.
Se o Brasil quer ser o líder regional digno de suas dimensões econômica e
demográfica, obviamente precisa estar em contato com os vizinhos.
A oportunidade, contudo, foi gasta com retórica. Lula levou consigo um arsenal de fórmulas vencidas e um discurso retrógrado, remanescentes do contexto das gestões da década retrasada.
Ali, impulsionado pela fome por commodities
de uma China em ascensão, o petista lançou diversos mecanismos para promover o
que chamava de diplomacia Sul-Sul, em oposição ao tradicional eixo com a Europa
e os Estados Unidos.
Algumas iniciativas até faziam sentido
naquele momento, como o bloco Brics, que reunia também China, Rússia, Índia e,
depois, África do Sul. Outras eram natimortas, como a Unasul, uma tentativa de
ampliar o cambaleante Mercosul.
Agora, é tudo história. Cada nação do Brics
tem uma realidade geopolítica divergente da dos colegas, e a recente
pressão uruguaia para fazer um acordo de livre comércio com os chineses relembra
os limites do clube meridional.
Mais preocupante do que o saudosismo é o
risco da volta de práticas desastrosas, encarnadas na renovada aliança com a
Argentina do malogrado Alberto Fernández.
Se é claro que o Brasil deveria retomar
laços rompidos pelo governo anterior, o pacote de boas-vindas de Lula tem
elementos que causaram fiascos no passado.
À sugestão
irrealista de uma moeda comercial comum com Buenos Aires, onde quase
ninguém aceita o peso nacional para transações triviais, soma-se a ideia
quixotesca de que o BNDES poderá voltar a financiar projetos regionais, como o
gasoduto de Vaca Muerta.
Ligando o Brasil a uma província de gás de
xisto, cuja exploração é criticada por dez entre dez ambientalistas, a obra tem
tudo para repetir calotes dados por amigos como a Venezuela no banco
brasileiro.
Temperando tudo, a contumaz incapacidade
petista de criticar as ditaduras de esquerda, como os regimes autoritários de
Caracas e Havana —para Lula, eles merecem "carinho". O mundo, como
explicitou o presidente de centro-direita do Uruguai em seu discurso na Celac, é
bastante diferente hoje.
Censo na berlinda
Folha de S. Paulo
População abaixo da esperada pode gerar
pressão de prefeitos sobre os 3 Poderes
Não foram poucas nem pequenas as
adversidades enfrentadas pelo censo demográfico originalmente programado para
2020, a começar, obviamente, pela pandemia que impôs o atraso dos trabalhos.
Houve depois sucessivos embates no governo
Jair Bolsonaro (PL) em torno das verbas necessárias, a ponto de provocar o
pedido de demissão da presidente do IBGE em 2021. A pesquisa só foi iniciada em
agosto do ano passado, com previsão de término em três meses, mas ainda não
está concluída.
Reclamações de atraso nos pagamentos e
baixa remuneração provocaram desistências e até uma ameaça de greve de
recenseadores.
Não bastasse tudo isso, o censo em
andamento se encontra agora sob ataque político e institucional, em razão de um
dado vital inesperado: a população nacional, ao que parece, é menor do que se
pensava.
Conforme sugerem os números preliminares,
somos 207,8 milhões de brasileiros, em vez dos 215 milhões antes estimados pelo
IBGE.
Essa não é, a princípio, uma má notícia —em
termos econômicos, pode significar que a renda nacional por habitante, um
indicador de prosperidade material, é maior do que dizem as estatísticas
atuais.
Ocorre, no entanto, que 863 das 5.570
prefeituras do país já correm o
risco de ver reduzidos os recursos que recebem do Fundo de Participação dos
Municípios (FPM), pelo qual 25,5% das receitas do Imposto de Renda e
do IPI são distribuídos a partir de critérios que incluem o número de
habitantes.
O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo
Tribunal Federal, concedeu liminar determinando que se mantenham os repasses do
FPM a partir das populações antes estimadas, dado que o censo não está
concluído. A menos que haja erro grosseiro nos cálculos, porém, o problema está
criado.
Para Roberto Olinto, ex-presidente do IBGE,
os problemas na realização da pesquisa justificam uma auditoria —falta
recensear 15% das localidades, para as quais só há números imputados. O
instituto, ainda sem presidente definido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), sustenta que
os trabalhos são conduzidos com qualidade.
Quanto ao FPM, o ideal seria uma revisão ampla dos critérios de distribuição, há muito criticados por especialistas. A tarefa, no entanto, não é politicamente viável a curto ou médio prazo. Resta concluir o censo e dirimir as dúvidas com urgência. A pressão dos prefeitos sobre os três Poderes será forte.
Uso indecente do cartão corporativo
O Estado de S. Paulo.
Em mais um insulto aos princípios
republicanos, Bolsonaro bancou motociatas.
A violação dos princípios da impessoalidade
e da moralidade na administração pública, previstos no caput do artigo 37 da
Constituição, foi uma constante no governo de Jair Bolsonaro. A rigor, desde
muito antes de ser eleito presidente da República, Bolsonaro jamais deu sinais
de que sabia separar bem as questões de interesse público de seus interesses
particulares, como se suas vitórias eleitorais tivessem o condão de transformar
assuntos de Estado, de governo e de sua família em uma coisa só. Alçado à
Presidência, o mau uso por Bolsonaro do Cartão de Pagamentos do Governo Federal
(CPGF), conhecido popularmente como “cartão corporativo”, é corolário dessa
mixórdia.
Por meio da Lei de Acesso à Informação
(LAI), o Estadão analisou detidamente, em parceria com a agência Fiquem
Sabendo, milhares de notas fiscais apresentadas pelo governo federal a título
de prestação de contas pelo uso do cartão corporativo, tanto por Bolsonaro como
por alguns de seus auxiliares. Foi uma faina, pois o papelório é armazenado
fisicamente em pastas contidas em dezenas de caixas trancadas em um almoxarifado.
O resultado da análise desses papéis é de
estarrecer qualquer cidadão que tenha a mínima noção dos fundamentos sobre os
quais se erigiu esta República.
Bolsonaro gastou milhões de reais por meio
do cartão corporativo em eventos de pura autopromoção, como as tais motociatas
que o então presidente promoveu País afora. Em nenhum desses passeios,
realizados às expensas dos contribuintes, havia interesse público envolvido.
Apenas o interesse político-eleitoral do então incumbente, em campanha
permanente e ilegal pela reeleição.
Em média, cada passeio de moto do sr.
Bolsonaro com seus amigos e apoiadores – e foram muitos ao longo do mandato,
inclusive em dias e horários em que o então presidente deveria estar
trabalhando – custava R$ 100 mil aos cofres públicos. Nesse montante estão
incluídas as despesas com deslocamento, alimentação e hospedagem de um séquito
de servidores mobilizados exclusivamente para atender aos interesses privados
do ex-presidente, pois nenhuma promoção de política pública esteve remotamente
envolvida nessas motociatas.
Nesses eventos privados, era comum o
dispêndio de milhares de reais em lanches não só para os servidores do governo
federal que acompanham o presidente da República durante viagens, como também
para policiais que cuidavam da segurança das motociatas, militares baseados nas
cidades onde ocorriam os passeios e socorristas.
O cartão corporativo não foi criado para
isso. O uso do CPGF é regulamentado pelo Decreto 6.370/2008. Esse meio de
pagamento se presta ao suprimento de fundos para a realização de “despesas
eventuais que exijam pronto pagamento”. Em geral de pequena monta, essas
despesas, até por seu imediatismo, não passam por licitação. O cartão
corporativo também pode ser usado para o pagamento de despesas que precisam ser
sigilosas, como, por exemplo, as realizadas por agentes públicos durante
processos de investigação. Mas, conforme a Controladoriageral da União, “embora
não exista a obrigatoriedade de licitação, devem ser observados os mesmos
princípios que regem a Administração Pública – legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência”. As motociatas de Bolsonaro desrespeitam
todos esses critérios.
Ilegal e indecente por si só, o uso do
cartão corporativo para custear as motociatas pode ser o menor dos problemas de
Bolsonaro. O Decreto 6.370/2008 veda o uso do CPGF na modalidade saque, salvo
casos excepcionalíssimos. Mas paira sobre o exajudante de ordens de Bolsonaro,
o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, a suspeita de realizar uma série de
saques em dinheiro que, entre outros gastos, teriam bancado despesas pessoais
do clã Bolsonaro e de familiares da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Portanto, além da flagrante violação da Lei
Eleitoral, há indícios robustos de ato doloso de improbidade administrativa.
Bolsonaro terá de ser criativo para se explicar.
É preciso realismo na América Latina
O Estado de S. Paulo.
Lula se esforça para reconstruir laços com
a Argentina e a América Latina, mas é difícil conciliar interesses de países em
crise permanente, como prova o ocaso do Mercosul
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva
escolheu a Argentina como destino de sua primeira viagem internacional desde a
posse, em um gesto político que devolve o prestígio de um de nossos principais
parceiros comerciais. Não havia nada, a não ser a grosseria de Jair Bolsonaro e
de seus ministros, a justificar o tratamento dispensado à Argentina durante o
governo anterior. A visita de Lula é, portanto, um primeiro passo no caminho de
reconstruir vínculos destruídos nos últimos quatro anos. Esse processo, no
entanto, requer realismo de ambos os países para analisar seus próprios
desafios internos, pois eles explicam muito sobre a crise que ameaça a
sobrevivência do Mercosul.
Fundado em 1991, o Mercosul foi criado para
promover a integração de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, de forma a
garantir condições de inserção de seus produtos e serviços no mercado externo.
Mas, diferentemente de outros blocos comerciais formados até mais recentemente,
os objetivos iniciais do Mercosul continuam, até hoje, muito distantes de serem
plenamente atingidos.
A última crise foi deflagrada pelo Uruguai,
que anunciou a intenção de fechar acordos individuais de livre comércio com a
China e de aderir à Parceria Transpacífico (TPP), integrada por 11 países da
Ásia e das Américas. As regras do Mercosul, no entanto, exigem que decisões
dessa natureza sejam coletivas. Se o Uruguai é hoje a maior ameaça ao Mercosul,
é inegável que a integridade do bloco foi comprometida há muito mais tempo – e,
nesse sentido, a contribuição de seus dois maiores sócios na desagregação do
bloco foi decisiva.
A Argentina sempre se posicionou contra
qualquer negociação que pudesse abrir mercados para defender sua decadente
indústria. Mais recentemente, impediu o fechamento de acordos de livre comércio
do Mercosul com Coreia do Sul, Cingapura, Canadá e Líbano; no fim do ano
passado, manifestou a intenção de reabrir as negociações para alterar as
cláusulas que dizem respeito ao setor automobilístico. Preso há décadas numa
armadilha fiscal que é a causa de sua moeda fraca e da inflação elevada, o país
tem muitas dificuldades para obter financiamentos e, para contornar essas
restrições, tem apelado a parcerias com a China.
Por sua extensão territorial, população e
importância em termos econômicos, o Brasil não teria como abdicar de seu papel
de liderança na região. Assim, se o País logrou reduzir sua influência e
relevância na região, foi por esforço e mérito do governo Bolsonaro. Não é por
outro motivo que o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia
está suspenso. Negociado por mais de 20 anos, ele está travado em razão da
trágica política ambiental que vigorou desde 2019.
Sem negociar com os membros, o Brasil
reduziu as tarifas aplicadas às importações de forma unilateral no fim de 2021.
Foi a primeira vez que a Tarifa Externa Comum (TEC) foi revista em 25 anos – e
a passagem desse tempo até ensejava atualizações. A decisão, no entanto, não
foi motivada pela necessidade de ampliar a abertura comercial do bloco, mas
pelo aumento da inflação, visto como obstáculo à reeleição de Bolsonaro. O ato
comprometeu fortemente a coesão do bloco, cujos pilares sempre foram
preservados pela diplomacia nacional.
Ao chegar à Presidência pela terceira vez,
Lula não esconde a intenção de resgatar o protagonismo do País na região. O
financiamento do gasoduto argentino pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) para conectar o campo de Vaca Muerta ao Brasil
parece fazer sentido. Mas será impossível avançar em novos projetos de médio e
longo prazos, entre os quais a moeda comum exclusiva para transações
financeiras e comerciais entre Brasil e Argentina, enquanto o bloco não
conseguir solucionar as questões que levaram à sua fundação.
Passados mais de 30 anos, o Mercosul foi
incapaz de fechar um único acordo com as dez principais potências econômicas do
mundo. Essa é a causa do fracasso do bloco. Superar esses entraves e ir além
das diferenças demandará bem mais do que discursos políticos.
Democracia fraca afeta o PIB
O Estado de S. Paulo.
Estudo em 160 países indica que democracias
instáveis e fragilizadas atrapalham o crescimento econômico
Uma pesquisa sobre o desenvolvimento de
mais de 160 países com realidades políticas variadas, no período de 1960 a
2018, comparou o desempenho de regimes democráticos com aqueles nos quais a
democracia é parcial, incompleta ou, em uma palavra, instável. A conclusão foi
inequívoca: no longo prazo, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita das
chamadas democracias defeituosas, iliberais ou híbridas cresceu cerca de 20%
menos do que em regimes democráticos estáveis. A democracia é fator de avanço
econômico.
Com uma longa revisão bibliográfica sobre o
tema, o estudo foi publicado em setembro do ano passado, um mês antes das
eleições presidenciais. No Brasil, ganhou mais visibilidade depois dos eventos
de 8 de janeiro. No entanto, não é de agora que a democracia brasileira vem
sendo testada e atacada, o que, como a pesquisa indica, é também caminho de
enfraquecimento da economia do País.
Os autores do estudo são economistas
vinculados a instituições europeias: Nauro Campos, da Universidade College
London; Fabrizio Coricelli, da Paris School of Economics; e Marco Frigerio, da
Universidade de Siena. Segundo eles, uma das consequências negativas da
instabilidade democrática é a prevalência de visões de curto prazo. “A
instabilidade induz a comportamento míope com o objetivo de obter rendas no
curto prazo e desconsiderar os efeitos a longo prazo”, diz o texto. Uma revisão
bibliográfica apontou que essa visão curto-prazista típica de regimes instáveis
acaba diminuindo investimentos no setor produtivo.
Uma característica das democracias estáveis
são os chamados checks and balances (conhecidos aqui como “freios e
contrapesos”) − a fiscalização que os diferentes Poderes exercem uns sobre os
outros, com o objetivo de conter arroubos autoritários. A concentração de poder
enfraquece a democracia. Não surpreende que a maioria dos regimes populistas,
de esquerda ou de direita, esteja nessa zona cinzenta de democracias pela
metade. Sob pretexto de estabelecer uma comunicação direta com as massas, populistas
desprezam as instituições e, especialmente, a contenção que elas exercem. Bom
para seus projetos pessoais de poder, ruim para a sociedade e para o
crescimento econômico.
A democracia, conforme outro pesquisador
citado no estudo, aumenta as chances de reformas econômicas e de ampliação das
matrículas na educação básica. Segundo o professor Nauro Campos, em entrevista
ao jornal O Globo, democracias frágeis e debilitadas prejudicam a execução de
políticas públicas. Um exemplo disso é a nomeação de pessoas despreparadas para
órgãos técnicos que prestam serviços à população. Esse tipo de problema,
afirmou Campos, faz cair a confiança nas instituições.
O regime democrático prevê direitos civis, sociais, políticos e de propriedade. Capaz de solucionar pacificamente conflitos por meio da política, em vez da guerra, a democracia é chave também para o crescimento econômico. Atacar a democracia é, portanto, um retrocesso civilizatório, com amplas consequências.
Solução para crise fiscal não é o bolso do
contribuinte
O Globo
Critério de desempate favorável ao Fisco no
Carf aumentará arrecadação, mas não é melhor resposta ao desafio
Uma das medidas de maior destaque no plano
de equilíbrio das contas públicas apresentado neste mês pelo ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, diz respeito ao Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (Carf), última instância administrativa para contribuintes questionarem
autuações da Receita Federal. De acordo com o plano anunciado, a redução na
litigiosidade do Carf traria R$ 35 bilhões a mais para os cofres públicos, dos
R$ 93 milhões em aumento de receitas previstos no pacote.
A principal novidade, adotada por Medida
Provisória, foi uma mudança na regra de desempate nas votações do Carf,
restaurando uma regra conhecida como “voto de qualidade”, que dá vitória ao
Fisco sempre que o placar está empatado. Em entrevista ao GLOBO, o secretário
da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, estimou em até R$ 60 bilhões anuais
o impacto nos cofres públicos, acima da previsão inicial do governo.
Alguns números despertam ceticismo sobre a
previsão. O Carf pautou 58 processos para as primeiras sessões do ano, no
início de fevereiro. Os julgamentos envolvem tributos da ordem de R$ 11,5
bilhões. Quanto desse total poderia ser decidido pela nova regra de desempate?
Pelo histórico dos julgamentos, mais de nove em cada dez decisões do Carf são
tomadas por unanimidade ou maioria. Entre janeiro de 2017 e outubro de 2022, o único
ano em que esse percentual ficou abaixo de 93% foi em 2017. Em 2020, as
decisões por unanimidade ou maioria foram 98% do total.
No ano passado, houve empate em apenas 1,9%
das decisões. De acordo com Barreirinhas, esses casos representaram 18% do
valor julgado, ou R$ 24,7 bilhões. “Dentre 93 mil processos no Carf, 162
representam R$ 453 bilhões, de R$ 1 trilhão de estoque”, diz ele. “Essa questão
do voto de qualidade se impõe nesses casos, em processos com valores
altíssimos.”
Mesmo que as mudanças liberassem o
proverbial trilhão empoçado no Carf, haveria outra questão. O princípio da
justiça tributária não pode ser atropelado pela sanha arrecadatória do Estado.
Os quatro conselheiros do órgão, dois indicados pela Receita e dois pelo setor
produtivo, estão lá para julgar as autuações, não para encher o caixa do
Tesouro.
Outra medida anunciada pelo governo faz
menos sentido ainda. A Fazenda poderá recorrer à Justiça nos casos em que
contribuintes ganharem disputas. O Carf está vinculado ao Ministério da
Fazenda. É descabido um ministério entrar na Justiça para reverter uma decisão
tomada por um de seus órgãos.
O estoque de processos no Carf é um
problema enorme, pois dobrou no último ano. Tomar decisões mais ágeis é uma
necessidade legítima e urgente. Para isso, é preciso descobrir o que tem dado
errado. Algumas causas foram circunstanciais. Nos piores momentos da pandemia,
o Carf falhou ao fechar as portas por quatro meses. Quando retornou com sessões
on-line, restringiu a quantidade dos processos julgados. A barafunda de regras
tributárias incompreensíveis, portanto mais sujeitas a interpretações e
litígios, também explica a sobrecarga e a morosidade. Resolver essa questão
deveria ser a prioridade. O que o governo não pode é mirar no bolso do
contribuinte como solução para todos os seus problemas de caixa.
Para se reeleger, Lira não tem pudor em
gastar dinheiro dos cofres públicos
O Globo
A uma semana da eleição para presidência da
Câmara, pacote de bondades tenta garantir votos
Presidente da Câmara dos Deputados e
candidato à reeleição, Arthur Lira (PP-AL) dobrou o valor do auxílio-moradia
dos parlamentares, elevou o valor do reembolso com combustível, liberou mais
cargos para os partidos nomearem assessores e aumentou o número de viagens a
bases eleitorais permitidas pela cota parlamentar. Faltando uma semana para a
votação para a Mesa da Câmara, Lira embalou um atraente pacote de bondades para
garantir os votos de seus colegas à reeleição.
No dia 13, Lira reajustou em 6% a verba de
R$ 111.675 mensais a que cada deputado tem direito para gastos no gabinete,
incluindo a contratação de assessores. Nas últimas votações de 2022, também
ficou decidido que o salário dos deputados, que estava em R$ 33.763, receberá
aumentos até 2026, num total de 37,3%. A primeira parcela, de 16,4%, entrou em
vigor no início do mês.
Pelo novo pacote de bondades, a partir de
fevereiro os deputados terão direito a R$ 8.401 para custear moradia em
Brasília e a R$ 9.392 para gastos com combustíveis (hoje recebem R$ 4.253 e R$
6 mil, respectivamente). E mesmo deputados de partidos nanicos, que não
elegeram um número mínimo de congressistas, poderão preencher até dez cargos de
confiança.
Com exceção dos deputados eleitos pelo
Distrito Federal, a atividade de parlamentar exige residência em duas
localidades, e o aluguel em Brasília está entre os mais caros do país. Mas isso
não justifica quase dobrar o valor do auxílio-moradia. Parcela considerável dos
111 deputados que dependem da verba mantém suas famílias nas cidades de origem.
Mesmo aqueles que se mudam para o Distrito Federal com a família não precisam
viver nos imóveis mais valorizados da cidade. A verba para combustível é outro
exemplo de desperdício. Além de exageradamente elástica em tempos de comunicação
digital, é propensa a todo tipo de abuso, como demonstraram acusações de
fraudes no passado.
Antes dos aumentos recentes, cada deputado
já custava mais de R$ 2 milhões por ano, contando todas as benesses. Somando as
despesas dos 513 deputados, a conta ultrapassava R$ 1 bilhão. Numa comparação
internacional feita há alguns anos pela União Interparlamentar, o Brasil
apareceu como o segundo no ranking dos países com os parlamentos mais caros do
mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
Como em qualquer democracia, os deputados brasileiros devem ganhar bem, ter verba para contratar assessores, viajar para suas bases e ter condições de pagar aluguel em Brasília. No caso brasileiro, porém, a remuneração já é satisfatória, e os aumentos são anunciados sem nenhuma justificativa plausível.
É preciso salvar os yanomamis e expulsar os
garimpeiros
Valor Econômico
Nada se compara com a política ativa de
Bolsonaro de favorecer o garimpo e destruir a Amazônia e seus mais antigos
habitantes
Os yanomamis estão morrendo de fome,
doenças e contaminação por mercúrio dentro de seu território, que está sendo
devastado por garimpeiros. A tragédia desse povo agravou-se com o avanço do
crime organizado, das madeireiras e garimpos ilegais na Amazônia,
potencializados pela incapacidade de o Estado proteger a floresta e seus moradores
originários. A decretação do estado de emergência na reserva foi necessária e
será capaz de estancar o morticínio atual. Todas as ameaças a essa e outras
tribos, porém, permanecerão sem ação perene de governos na Amazônia, em todas
as áreas. É urgente afastar o garimpo das terras indígenas.
A situação dos indígenas é vergonhosa para
o país. No ano passado, 99 crianças morreram de pneumonia (a principal causa),
diarreia e desnutrição. No mesmo ano, foram constatados 11.530 casos de
malária. Com as doenças, há menos indígenas em busca de comida, o que agrava o
quadro dos que já estão doentes, enfraquecem os que estão sãos e piora a saúde
dos mais frágeis, velhos e crianças.
O garimpo ilegal é a praga conhecida a
ceifar vidas yanomamis. Eles espalham todo tipo de doença em indígenas
vulneráveis e os estragos que deixam pelo caminho favorecem a disseminação da
malária. A devastação de rios e matas despovoa ambos - peixes e animais,
principais sustentos dos indígenas, fogem ou morrem, e a comida escasseia, até
não mais existir. O veneno do mercúrio presente nas águas extermina a vida
fluvial e contamina as tribos. Álcool, drogas e violência sexual complementam
um ambiente infernal em um dos mais bonitos paraísos da Terra. Contra eles, os
yanomamis estão indefesos.
Há 380 aldeias distribuídas ao longo de 10
milhões de hectares nas terras yanomamis, demarcadas pelo então presidente
Fernando Collor. A pressão do garimpo ilegal e de todo tipo de negócio escuso
se espalha por outras áreas demarcadas. Segundo levantamento do Mapbiomas, em
2022 as mais extensas áreas de garimpo em terras indígenas estavam em
território Kayapó (7.602 ha) e Munduruku (1592 hectares) (no Estado do Pará), e
Yanomami (414 ha), no Amazonas e Roraima.
A Amazônia sempre foi terra de ninguém, mas
a fragilidade do Estado em vigiar e proteger a região foi agravada sobremaneira
por uma política ativa de apoio aos garimpeiros e dilapidação dos recursos
materiais e humanos do aparato estatal pelo governo de Jair Bolsonaro.
Bolsonaro afastou especialistas da Funai para aparelhá-la com ideólogos
desvairados, policiais e militares sem a menor formação, aptidão ou vontade de
defender as comunidades indígenas. Um dossiê da Indigenistas Associados e Inec,
de junho, revelou que das 39 unidades da Funai, apenas duas eram dirigidas por
servidores públicos. As demais eram coordenadas por 19 militares, três por PMs
e duas por policiais federais. As 13 restantes foram chefiadas por servidores
substitutos ou sem vínculo com a administração pública. Na Funai, com Bolsonaro,
o número de cargos vagos tornou-se maior que o de vagas ocupadas. Ele cumpriu
uma de suas promessas, a de não delimitar nenhum centímetro de terras indígenas
em seu governo.
No início de seu governo, Bolsonaro quis
atribuir ao Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas, e
transferir a Funai para o Ministério da Mulher e Direitos Humanos. O órgão
voltou para a Justiça.
Bolsonaro tem responsabilidade na agressão
aos yanomamis. Duas lavras de garimpo foram concedidas em seu governo nas
imediações da reserva, uma para um cidadão alvo de várias operações da PF
(Rodrigo Cataratas) e outra para gente ligada a grupos de garimpo ilegal
(Nikolas Godoi). Cataratas recebe dinheiro público desde 2014 para cuidar de
transporte aéreo ligado a saúde indígena (Folha de S. Paulo, 24-01). O garimpo
tomou parte das pistas utilizadas pela Funai, dificultando o escoamento de
medicamentos, de doentes e de assistência.
É preciso ações enérgicas e continuadas
para reconstruir a infraestrutura de atendimento nas áreas indígenas, expulsar
o garimpo e discernir responsabilidades pelo descalabro existente. Acusações
precisam ser bem fundamentadas, especialmente as graves como genocídio. O
governo de Dilma Rousseff já foi acusado de promover “lento genocídio” em 2014
pela Prelazia do Xingu por ter sido a presidente que menos regularizou terras
indígenas desde a redemocratização. Por outro lado, nada, desde a ditadura
militar, se compara com a política ativa de Bolsonaro de favorecer o garimpo e
destruir a Amazônia e seus mais antigos habitantes.
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