quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Filme antigo

Folha de S. Paulo

Estreia internacional de Lula 3 tem fórmulas reprisadas e aliança com Argentina

Que o Brasil tornou-se um pária internacional sob o governo Jair Bolsonaro (PL) —pretensão anunciada com orgulho por seu delirante chanceler Ernesto Araújo— não é segredo para ninguém.

Assim, a reestreia de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no palco internacional como presidente veio carregada de expectativa, dada a energia dedicada por ele à área externa nos dois mandatos anteriores.

Simbolicamente, ela ocorreu numa reunião da Celac, clube de países latino-americanos e caribenhos abandonado por Bolsonaro. Se o Brasil quer ser o líder regional digno de suas dimensões econômica e demográfica, obviamente precisa estar em contato com os vizinhos.

A oportunidade, contudo, foi gasta com retórica. Lula levou consigo um arsenal de fórmulas vencidas e um discurso retrógrado, remanescentes do contexto das gestões da década retrasada.

Ali, impulsionado pela fome por commodities de uma China em ascensão, o petista lançou diversos mecanismos para promover o que chamava de diplomacia Sul-Sul, em oposição ao tradicional eixo com a Europa e os Estados Unidos.

Algumas iniciativas até faziam sentido naquele momento, como o bloco Brics, que reunia também China, Rússia, Índia e, depois, África do Sul. Outras eram natimortas, como a Unasul, uma tentativa de ampliar o cambaleante Mercosul.

Agora, é tudo história. Cada nação do Brics tem uma realidade geopolítica divergente da dos colegas, e a recente pressão uruguaia para fazer um acordo de livre comércio com os chineses relembra os limites do clube meridional.

Mais preocupante do que o saudosismo é o risco da volta de práticas desastrosas, encarnadas na renovada aliança com a Argentina do malogrado Alberto Fernández.

Se é claro que o Brasil deveria retomar laços rompidos pelo governo anterior, o pacote de boas-vindas de Lula tem elementos que causaram fiascos no passado.

À sugestão irrealista de uma moeda comercial comum com Buenos Aires, onde quase ninguém aceita o peso nacional para transações triviais, soma-se a ideia quixotesca de que o BNDES poderá voltar a financiar projetos regionais, como o gasoduto de Vaca Muerta.

Ligando o Brasil a uma província de gás de xisto, cuja exploração é criticada por dez entre dez ambientalistas, a obra tem tudo para repetir calotes dados por amigos como a Venezuela no banco brasileiro.

Temperando tudo, a contumaz incapacidade petista de criticar as ditaduras de esquerda, como os regimes autoritários de Caracas e Havana —para Lula, eles merecem "carinho". O mundo, como explicitou o presidente de centro-direita do Uruguai em seu discurso na Celac, é bastante diferente hoje.

Censo na berlinda

Folha de S. Paulo

População abaixo da esperada pode gerar pressão de prefeitos sobre os 3 Poderes

Não foram poucas nem pequenas as adversidades enfrentadas pelo censo demográfico originalmente programado para 2020, a começar, obviamente, pela pandemia que impôs o atraso dos trabalhos.

Houve depois sucessivos embates no governo Jair Bolsonaro (PL) em torno das verbas necessárias, a ponto de provocar o pedido de demissão da presidente do IBGE em 2021. A pesquisa só foi iniciada em agosto do ano passado, com previsão de término em três meses, mas ainda não está concluída.

Reclamações de atraso nos pagamentos e baixa remuneração provocaram desistências e até uma ameaça de greve de recenseadores.

Não bastasse tudo isso, o censo em andamento se encontra agora sob ataque político e institucional, em razão de um dado vital inesperado: a população nacional, ao que parece, é menor do que se pensava.

Conforme sugerem os números preliminares, somos 207,8 milhões de brasileiros, em vez dos 215 milhões antes estimados pelo IBGE.

Essa não é, a princípio, uma má notícia —em termos econômicos, pode significar que a renda nacional por habitante, um indicador de prosperidade material, é maior do que dizem as estatísticas atuais.

Ocorre, no entanto, que 863 das 5.570 prefeituras do país já correm o risco de ver reduzidos os recursos que recebem do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), pelo qual 25,5% das receitas do Imposto de Renda e do IPI são distribuídos a partir de critérios que incluem o número de habitantes.

O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar determinando que se mantenham os repasses do FPM a partir das populações antes estimadas, dado que o censo não está concluído. A menos que haja erro grosseiro nos cálculos, porém, o problema está criado.

Para Roberto Olinto, ex-presidente do IBGE, os problemas na realização da pesquisa justificam uma auditoria —falta recensear 15% das localidades, para as quais só há números imputados. O instituto, ainda sem presidente definido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sustenta que os trabalhos são conduzidos com qualidade.

Quanto ao FPM, o ideal seria uma revisão ampla dos critérios de distribuição, há muito criticados por especialistas. A tarefa, no entanto, não é politicamente viável a curto ou médio prazo. Resta concluir o censo e dirimir as dúvidas com urgência. A pressão dos prefeitos sobre os três Poderes será forte.

Uso indecente do cartão corporativo

O Estado de S. Paulo.

Em mais um insulto aos princípios republicanos, Bolsonaro bancou motociatas.

A violação dos princípios da impessoalidade e da moralidade na administração pública, previstos no caput do artigo 37 da Constituição, foi uma constante no governo de Jair Bolsonaro. A rigor, desde muito antes de ser eleito presidente da República, Bolsonaro jamais deu sinais de que sabia separar bem as questões de interesse público de seus interesses particulares, como se suas vitórias eleitorais tivessem o condão de transformar assuntos de Estado, de governo e de sua família em uma coisa só. Alçado à Presidência, o mau uso por Bolsonaro do Cartão de Pagamentos do Governo Federal (CPGF), conhecido popularmente como “cartão corporativo”, é corolário dessa mixórdia.

Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o Estadão analisou detidamente, em parceria com a agência Fiquem Sabendo, milhares de notas fiscais apresentadas pelo governo federal a título de prestação de contas pelo uso do cartão corporativo, tanto por Bolsonaro como por alguns de seus auxiliares. Foi uma faina, pois o papelório é armazenado fisicamente em pastas contidas em dezenas de caixas trancadas em um almoxarifado.

O resultado da análise desses papéis é de estarrecer qualquer cidadão que tenha a mínima noção dos fundamentos sobre os quais se erigiu esta República.

Bolsonaro gastou milhões de reais por meio do cartão corporativo em eventos de pura autopromoção, como as tais motociatas que o então presidente promoveu País afora. Em nenhum desses passeios, realizados às expensas dos contribuintes, havia interesse público envolvido. Apenas o interesse político-eleitoral do então incumbente, em campanha permanente e ilegal pela reeleição.

Em média, cada passeio de moto do sr. Bolsonaro com seus amigos e apoiadores – e foram muitos ao longo do mandato, inclusive em dias e horários em que o então presidente deveria estar trabalhando – custava R$ 100 mil aos cofres públicos. Nesse montante estão incluídas as despesas com deslocamento, alimentação e hospedagem de um séquito de servidores mobilizados exclusivamente para atender aos interesses privados do ex-presidente, pois nenhuma promoção de política pública esteve remotamente envolvida nessas motociatas.

Nesses eventos privados, era comum o dispêndio de milhares de reais em lanches não só para os servidores do governo federal que acompanham o presidente da República durante viagens, como também para policiais que cuidavam da segurança das motociatas, militares baseados nas cidades onde ocorriam os passeios e socorristas.

O cartão corporativo não foi criado para isso. O uso do CPGF é regulamentado pelo Decreto 6.370/2008. Esse meio de pagamento se presta ao suprimento de fundos para a realização de “despesas eventuais que exijam pronto pagamento”. Em geral de pequena monta, essas despesas, até por seu imediatismo, não passam por licitação. O cartão corporativo também pode ser usado para o pagamento de despesas que precisam ser sigilosas, como, por exemplo, as realizadas por agentes públicos durante processos de investigação. Mas, conforme a Controladoriageral da União, “embora não exista a obrigatoriedade de licitação, devem ser observados os mesmos princípios que regem a Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. As motociatas de Bolsonaro desrespeitam todos esses critérios.

Ilegal e indecente por si só, o uso do cartão corporativo para custear as motociatas pode ser o menor dos problemas de Bolsonaro. O Decreto 6.370/2008 veda o uso do CPGF na modalidade saque, salvo casos excepcionalíssimos. Mas paira sobre o exajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, a suspeita de realizar uma série de saques em dinheiro que, entre outros gastos, teriam bancado despesas pessoais do clã Bolsonaro e de familiares da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Portanto, além da flagrante violação da Lei Eleitoral, há indícios robustos de ato doloso de improbidade administrativa. Bolsonaro terá de ser criativo para se explicar.

É preciso realismo na América Latina

O Estado de S. Paulo.

Lula se esforça para reconstruir laços com a Argentina e a América Latina, mas é difícil conciliar interesses de países em crise permanente, como prova o ocaso do Mercosul

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu a Argentina como destino de sua primeira viagem internacional desde a posse, em um gesto político que devolve o prestígio de um de nossos principais parceiros comerciais. Não havia nada, a não ser a grosseria de Jair Bolsonaro e de seus ministros, a justificar o tratamento dispensado à Argentina durante o governo anterior. A visita de Lula é, portanto, um primeiro passo no caminho de reconstruir vínculos destruídos nos últimos quatro anos. Esse processo, no entanto, requer realismo de ambos os países para analisar seus próprios desafios internos, pois eles explicam muito sobre a crise que ameaça a sobrevivência do Mercosul.

Fundado em 1991, o Mercosul foi criado para promover a integração de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, de forma a garantir condições de inserção de seus produtos e serviços no mercado externo. Mas, diferentemente de outros blocos comerciais formados até mais recentemente, os objetivos iniciais do Mercosul continuam, até hoje, muito distantes de serem plenamente atingidos.

A última crise foi deflagrada pelo Uruguai, que anunciou a intenção de fechar acordos individuais de livre comércio com a China e de aderir à Parceria Transpacífico (TPP), integrada por 11 países da Ásia e das Américas. As regras do Mercosul, no entanto, exigem que decisões dessa natureza sejam coletivas. Se o Uruguai é hoje a maior ameaça ao Mercosul, é inegável que a integridade do bloco foi comprometida há muito mais tempo – e, nesse sentido, a contribuição de seus dois maiores sócios na desagregação do bloco foi decisiva.

A Argentina sempre se posicionou contra qualquer negociação que pudesse abrir mercados para defender sua decadente indústria. Mais recentemente, impediu o fechamento de acordos de livre comércio do Mercosul com Coreia do Sul, Cingapura, Canadá e Líbano; no fim do ano passado, manifestou a intenção de reabrir as negociações para alterar as cláusulas que dizem respeito ao setor automobilístico. Preso há décadas numa armadilha fiscal que é a causa de sua moeda fraca e da inflação elevada, o país tem muitas dificuldades para obter financiamentos e, para contornar essas restrições, tem apelado a parcerias com a China.

Por sua extensão territorial, população e importância em termos econômicos, o Brasil não teria como abdicar de seu papel de liderança na região. Assim, se o País logrou reduzir sua influência e relevância na região, foi por esforço e mérito do governo Bolsonaro. Não é por outro motivo que o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia está suspenso. Negociado por mais de 20 anos, ele está travado em razão da trágica política ambiental que vigorou desde 2019.

Sem negociar com os membros, o Brasil reduziu as tarifas aplicadas às importações de forma unilateral no fim de 2021. Foi a primeira vez que a Tarifa Externa Comum (TEC) foi revista em 25 anos – e a passagem desse tempo até ensejava atualizações. A decisão, no entanto, não foi motivada pela necessidade de ampliar a abertura comercial do bloco, mas pelo aumento da inflação, visto como obstáculo à reeleição de Bolsonaro. O ato comprometeu fortemente a coesão do bloco, cujos pilares sempre foram preservados pela diplomacia nacional.

Ao chegar à Presidência pela terceira vez, Lula não esconde a intenção de resgatar o protagonismo do País na região. O financiamento do gasoduto argentino pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para conectar o campo de Vaca Muerta ao Brasil parece fazer sentido. Mas será impossível avançar em novos projetos de médio e longo prazos, entre os quais a moeda comum exclusiva para transações financeiras e comerciais entre Brasil e Argentina, enquanto o bloco não conseguir solucionar as questões que levaram à sua fundação.

Passados mais de 30 anos, o Mercosul foi incapaz de fechar um único acordo com as dez principais potências econômicas do mundo. Essa é a causa do fracasso do bloco. Superar esses entraves e ir além das diferenças demandará bem mais do que discursos políticos.

Democracia fraca afeta o PIB

O Estado de S. Paulo.

Estudo em 160 países indica que democracias instáveis e fragilizadas atrapalham o crescimento econômico

Uma pesquisa sobre o desenvolvimento de mais de 160 países com realidades políticas variadas, no período de 1960 a 2018, comparou o desempenho de regimes democráticos com aqueles nos quais a democracia é parcial, incompleta ou, em uma palavra, instável. A conclusão foi inequívoca: no longo prazo, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita das chamadas democracias defeituosas, iliberais ou híbridas cresceu cerca de 20% menos do que em regimes democráticos estáveis. A democracia é fator de avanço econômico.

Com uma longa revisão bibliográfica sobre o tema, o estudo foi publicado em setembro do ano passado, um mês antes das eleições presidenciais. No Brasil, ganhou mais visibilidade depois dos eventos de 8 de janeiro. No entanto, não é de agora que a democracia brasileira vem sendo testada e atacada, o que, como a pesquisa indica, é também caminho de enfraquecimento da economia do País.

Os autores do estudo são economistas vinculados a instituições europeias: Nauro Campos, da Universidade College London; Fabrizio Coricelli, da Paris School of Economics; e Marco Frigerio, da Universidade de Siena. Segundo eles, uma das consequências negativas da instabilidade democrática é a prevalência de visões de curto prazo. “A instabilidade induz a comportamento míope com o objetivo de obter rendas no curto prazo e desconsiderar os efeitos a longo prazo”, diz o texto. Uma revisão bibliográfica apontou que essa visão curto-prazista típica de regimes instáveis acaba diminuindo investimentos no setor produtivo.

Uma característica das democracias estáveis são os chamados checks and balances (conhecidos aqui como “freios e contrapesos”) − a fiscalização que os diferentes Poderes exercem uns sobre os outros, com o objetivo de conter arroubos autoritários. A concentração de poder enfraquece a democracia. Não surpreende que a maioria dos regimes populistas, de esquerda ou de direita, esteja nessa zona cinzenta de democracias pela metade. Sob pretexto de estabelecer uma comunicação direta com as massas, populistas desprezam as instituições e, especialmente, a contenção que elas exercem. Bom para seus projetos pessoais de poder, ruim para a sociedade e para o crescimento econômico.

A democracia, conforme outro pesquisador citado no estudo, aumenta as chances de reformas econômicas e de ampliação das matrículas na educação básica. Segundo o professor Nauro Campos, em entrevista ao jornal O Globo, democracias frágeis e debilitadas prejudicam a execução de políticas públicas. Um exemplo disso é a nomeação de pessoas despreparadas para órgãos técnicos que prestam serviços à população. Esse tipo de problema, afirmou Campos, faz cair a confiança nas instituições.

O regime democrático prevê direitos civis, sociais, políticos e de propriedade. Capaz de solucionar pacificamente conflitos por meio da política, em vez da guerra, a democracia é chave também para o crescimento econômico. Atacar a democracia é, portanto, um retrocesso civilizatório, com amplas consequências.

Solução para crise fiscal não é o bolso do contribuinte

O Globo

Critério de desempate favorável ao Fisco no Carf aumentará arrecadação, mas não é melhor resposta ao desafio

Uma das medidas de maior destaque no plano de equilíbrio das contas públicas apresentado neste mês pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, diz respeito ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), última instância administrativa para contribuintes questionarem autuações da Receita Federal. De acordo com o plano anunciado, a redução na litigiosidade do Carf traria R$ 35 bilhões a mais para os cofres públicos, dos R$ 93 milhões em aumento de receitas previstos no pacote.

A principal novidade, adotada por Medida Provisória, foi uma mudança na regra de desempate nas votações do Carf, restaurando uma regra conhecida como “voto de qualidade”, que dá vitória ao Fisco sempre que o placar está empatado. Em entrevista ao GLOBO, o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, estimou em até R$ 60 bilhões anuais o impacto nos cofres públicos, acima da previsão inicial do governo.

Alguns números despertam ceticismo sobre a previsão. O Carf pautou 58 processos para as primeiras sessões do ano, no início de fevereiro. Os julgamentos envolvem tributos da ordem de R$ 11,5 bilhões. Quanto desse total poderia ser decidido pela nova regra de desempate? Pelo histórico dos julgamentos, mais de nove em cada dez decisões do Carf são tomadas por unanimidade ou maioria. Entre janeiro de 2017 e outubro de 2022, o único ano em que esse percentual ficou abaixo de 93% foi em 2017. Em 2020, as decisões por unanimidade ou maioria foram 98% do total.

No ano passado, houve empate em apenas 1,9% das decisões. De acordo com Barreirinhas, esses casos representaram 18% do valor julgado, ou R$ 24,7 bilhões. “Dentre 93 mil processos no Carf, 162 representam R$ 453 bilhões, de R$ 1 trilhão de estoque”, diz ele. “Essa questão do voto de qualidade se impõe nesses casos, em processos com valores altíssimos.”

Mesmo que as mudanças liberassem o proverbial trilhão empoçado no Carf, haveria outra questão. O princípio da justiça tributária não pode ser atropelado pela sanha arrecadatória do Estado. Os quatro conselheiros do órgão, dois indicados pela Receita e dois pelo setor produtivo, estão lá para julgar as autuações, não para encher o caixa do Tesouro.

Outra medida anunciada pelo governo faz menos sentido ainda. A Fazenda poderá recorrer à Justiça nos casos em que contribuintes ganharem disputas. O Carf está vinculado ao Ministério da Fazenda. É descabido um ministério entrar na Justiça para reverter uma decisão tomada por um de seus órgãos.

O estoque de processos no Carf é um problema enorme, pois dobrou no último ano. Tomar decisões mais ágeis é uma necessidade legítima e urgente. Para isso, é preciso descobrir o que tem dado errado. Algumas causas foram circunstanciais. Nos piores momentos da pandemia, o Carf falhou ao fechar as portas por quatro meses. Quando retornou com sessões on-line, restringiu a quantidade dos processos julgados. A barafunda de regras tributárias incompreensíveis, portanto mais sujeitas a interpretações e litígios, também explica a sobrecarga e a morosidade. Resolver essa questão deveria ser a prioridade. O que o governo não pode é mirar no bolso do contribuinte como solução para todos os seus problemas de caixa.

Para se reeleger, Lira não tem pudor em gastar dinheiro dos cofres públicos

O Globo

A uma semana da eleição para presidência da Câmara, pacote de bondades tenta garantir votos

Presidente da Câmara dos Deputados e candidato à reeleição, Arthur Lira (PP-AL) dobrou o valor do auxílio-moradia dos parlamentares, elevou o valor do reembolso com combustível, liberou mais cargos para os partidos nomearem assessores e aumentou o número de viagens a bases eleitorais permitidas pela cota parlamentar. Faltando uma semana para a votação para a Mesa da Câmara, Lira embalou um atraente pacote de bondades para garantir os votos de seus colegas à reeleição.

No dia 13, Lira reajustou em 6% a verba de R$ 111.675 mensais a que cada deputado tem direito para gastos no gabinete, incluindo a contratação de assessores. Nas últimas votações de 2022, também ficou decidido que o salário dos deputados, que estava em R$ 33.763, receberá aumentos até 2026, num total de 37,3%. A primeira parcela, de 16,4%, entrou em vigor no início do mês.

Pelo novo pacote de bondades, a partir de fevereiro os deputados terão direito a R$ 8.401 para custear moradia em Brasília e a R$ 9.392 para gastos com combustíveis (hoje recebem R$ 4.253 e R$ 6 mil, respectivamente). E mesmo deputados de partidos nanicos, que não elegeram um número mínimo de congressistas, poderão preencher até dez cargos de confiança.

Com exceção dos deputados eleitos pelo Distrito Federal, a atividade de parlamentar exige residência em duas localidades, e o aluguel em Brasília está entre os mais caros do país. Mas isso não justifica quase dobrar o valor do auxílio-moradia. Parcela considerável dos 111 deputados que dependem da verba mantém suas famílias nas cidades de origem. Mesmo aqueles que se mudam para o Distrito Federal com a família não precisam viver nos imóveis mais valorizados da cidade. A verba para combustível é outro exemplo de desperdício. Além de exageradamente elástica em tempos de comunicação digital, é propensa a todo tipo de abuso, como demonstraram acusações de fraudes no passado.

Antes dos aumentos recentes, cada deputado já custava mais de R$ 2 milhões por ano, contando todas as benesses. Somando as despesas dos 513 deputados, a conta ultrapassava R$ 1 bilhão. Numa comparação internacional feita há alguns anos pela União Interparlamentar, o Brasil apareceu como o segundo no ranking dos países com os parlamentos mais caros do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Como em qualquer democracia, os deputados brasileiros devem ganhar bem, ter verba para contratar assessores, viajar para suas bases e ter condições de pagar aluguel em Brasília. No caso brasileiro, porém, a remuneração já é satisfatória, e os aumentos são anunciados sem nenhuma justificativa plausível.

É preciso salvar os yanomamis e expulsar os garimpeiros

Valor Econômico

Nada se compara com a política ativa de Bolsonaro de favorecer o garimpo e destruir a Amazônia e seus mais antigos habitantes

Os yanomamis estão morrendo de fome, doenças e contaminação por mercúrio dentro de seu território, que está sendo devastado por garimpeiros. A tragédia desse povo agravou-se com o avanço do crime organizado, das madeireiras e garimpos ilegais na Amazônia, potencializados pela incapacidade de o Estado proteger a floresta e seus moradores originários. A decretação do estado de emergência na reserva foi necessária e será capaz de estancar o morticínio atual. Todas as ameaças a essa e outras tribos, porém, permanecerão sem ação perene de governos na Amazônia, em todas as áreas. É urgente afastar o garimpo das terras indígenas.

A situação dos indígenas é vergonhosa para o país. No ano passado, 99 crianças morreram de pneumonia (a principal causa), diarreia e desnutrição. No mesmo ano, foram constatados 11.530 casos de malária. Com as doenças, há menos indígenas em busca de comida, o que agrava o quadro dos que já estão doentes, enfraquecem os que estão sãos e piora a saúde dos mais frágeis, velhos e crianças.

O garimpo ilegal é a praga conhecida a ceifar vidas yanomamis. Eles espalham todo tipo de doença em indígenas vulneráveis e os estragos que deixam pelo caminho favorecem a disseminação da malária. A devastação de rios e matas despovoa ambos - peixes e animais, principais sustentos dos indígenas, fogem ou morrem, e a comida escasseia, até não mais existir. O veneno do mercúrio presente nas águas extermina a vida fluvial e contamina as tribos. Álcool, drogas e violência sexual complementam um ambiente infernal em um dos mais bonitos paraísos da Terra. Contra eles, os yanomamis estão indefesos.

Há 380 aldeias distribuídas ao longo de 10 milhões de hectares nas terras yanomamis, demarcadas pelo então presidente Fernando Collor. A pressão do garimpo ilegal e de todo tipo de negócio escuso se espalha por outras áreas demarcadas. Segundo levantamento do Mapbiomas, em 2022 as mais extensas áreas de garimpo em terras indígenas estavam em território Kayapó (7.602 ha) e Munduruku (1592 hectares) (no Estado do Pará), e Yanomami (414 ha), no Amazonas e Roraima.

A Amazônia sempre foi terra de ninguém, mas a fragilidade do Estado em vigiar e proteger a região foi agravada sobremaneira por uma política ativa de apoio aos garimpeiros e dilapidação dos recursos materiais e humanos do aparato estatal pelo governo de Jair Bolsonaro. Bolsonaro afastou especialistas da Funai para aparelhá-la com ideólogos desvairados, policiais e militares sem a menor formação, aptidão ou vontade de defender as comunidades indígenas. Um dossiê da Indigenistas Associados e Inec, de junho, revelou que das 39 unidades da Funai, apenas duas eram dirigidas por servidores públicos. As demais eram coordenadas por 19 militares, três por PMs e duas por policiais federais. As 13 restantes foram chefiadas por servidores substitutos ou sem vínculo com a administração pública. Na Funai, com Bolsonaro, o número de cargos vagos tornou-se maior que o de vagas ocupadas. Ele cumpriu uma de suas promessas, a de não delimitar nenhum centímetro de terras indígenas em seu governo.

No início de seu governo, Bolsonaro quis atribuir ao Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas, e transferir a Funai para o Ministério da Mulher e Direitos Humanos. O órgão voltou para a Justiça.

Bolsonaro tem responsabilidade na agressão aos yanomamis. Duas lavras de garimpo foram concedidas em seu governo nas imediações da reserva, uma para um cidadão alvo de várias operações da PF (Rodrigo Cataratas) e outra para gente ligada a grupos de garimpo ilegal (Nikolas Godoi). Cataratas recebe dinheiro público desde 2014 para cuidar de transporte aéreo ligado a saúde indígena (Folha de S. Paulo, 24-01). O garimpo tomou parte das pistas utilizadas pela Funai, dificultando o escoamento de medicamentos, de doentes e de assistência.

É preciso ações enérgicas e continuadas para reconstruir a infraestrutura de atendimento nas áreas indígenas, expulsar o garimpo e discernir responsabilidades pelo descalabro existente. Acusações precisam ser bem fundamentadas, especialmente as graves como genocídio. O governo de Dilma Rousseff já foi acusado de promover “lento genocídio” em 2014 pela Prelazia do Xingu por ter sido a presidente que menos regularizou terras indígenas desde a redemocratização. Por outro lado, nada, desde a ditadura militar, se compara com a política ativa de Bolsonaro de favorecer o garimpo e destruir a Amazônia e seus mais antigos habitantes.

 

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