Um dia para celebrar a democracia
O Globo
Ao enfrentar seu teste mais duro — a
tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 —, as instituições resistiram
A primeira e mais evidente lição a extrair do
fatídico 8 de Janeiro de 2023 é que a vigília pela democracia precisa ser
permanente. Os riscos estão sempre à espreita, e não deve haver trégua ante a
ameaça do golpismo. A segunda lição, corroborada pelos acontecimentos
posteriores, é a constatação louvável de que, mesmo enfrentando seu teste mais
duro nas quase quatro décadas desde o fim da ditadura militar, a democracia
brasileira resistiu. É essencial entender por quê. Para evitar que o pior venha
a acontecer de novo e celebrar a vitória da democracia, é preciso conhecer em
detalhes o que deu errado — e o que deu certo.
Naquele dia, num dos episódios mais sombrios da História do Brasil, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes em Brasília em atos de vandalismo sem precedentes. Num primeiro momento, poderia parecer apenas uma manifestação fora de controle em razão da negligência da polícia. Não era. Foi uma tentativa de golpe de Estado, planejada e articulada ao longo dos meses que seguiram a derrota de Bolsonaro para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Havia método no caos que tomou a capital da
República uma semana depois da posse de Lula. Os golpistas foram convocados
pelas redes sociais. Organizadas e financiadas por voluntariosos “patriotas”,
caravanas afluíram a Brasília, depois de semanas de acampamento na frente de
sedes militares por todo o país. Nos dias anteriores, houve bloqueios de
estradas e até uma tentativa frustrada de atentado no aeroporto da capital
federal.
As hordas não tiveram dificuldade para
avançar na Praça dos Três Poderes e invadir as sedes do Supremo Tribunal
Federal (STF),
do Congresso e do Palácio do Planalto. Em vez de conter a multidão, muitos
policiais confraternizavam com invasores e até facilitavam o assalto ao
patrimônio público. Enquanto a República era depenada em Brasília, golpistas
fechavam estradas e bloqueavam o acesso a refinarias de petróleo noutros
estados. No dia seguinte, ainda houve ataque a 11 torres de transmissão de
energia.
No momento mais crítico, o então secretário
de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, passeava por Miami. Em sua
casa, a polícia depois encontrou a minuta de um decreto para instaurar um
insólito “estado de defesa” no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e mudar o
resultado das eleições. Torres disse que o documento não tinha valor jurídico e
seria descartado.
Hoje não há dúvida de que as intenções dos
golpistas eram as piores. Em entrevista
ao GLOBO, o ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos
sobre os atos antidemocráticos no STF, revelou que havia planos prevendo não só
sua prisão, mas até sua morte. “Eu deveria ser preso e enforcado na Praça dos
Três Poderes”, afirmou.
Se o roteiro do golpe fracassou, foi porque
Executivo, Legislativo e Judiciário agiram prontamente, de maneira firme e
coordenada, para preservar as instituições e a democracia. Chefes dos três
Poderes fizeram questão de mostrar união num momento crucial. A imprensa,
cumprindo seu papel, manteve a população informada antes e durante os
acontecimentos. As Forças Armadas, é preciso reconhecer, também deram sua
contribuição para a manutenção da normalidade democrática quando sua cúpula,
instada a tomar parte no golpe, recusou em peso envolver-se na trama. Os
governadores também não se omitiram. No dia seguinte ao caos, depois do
afastamento temporário do governador do Distrito Federal, Lula se reuniu com
representantes dos demais estados, incluindo os governadores de oposição. Foi
uma cena histórica. Diante dos riscos concretos, viu-se que não é fantasia
afirmar que o Brasil tem instituições fortes e operantes. É fato.
O comportamento da classe política brasileira
mereceu elogios mundo afora. A direita brasileira, com exceção dos extremistas,
deu uma resposta mais robusta à crise do que a americana depois da invasão do
Capitólio em 6 de janeiro de 2021. “Todas as principais figuras da direita
brasileira aceitaram o resultado na noite da eleição e foram muito rápidas e
duras ao denunciar a violência cometida no 8 de Janeiro, (...) muito diferente
do que os republicanos fizeram nos Estados Unidos”, afirmou ao
GLOBO o cientista político Steven Levitsky, da Universidade Harvard.
Golpistas que participaram do quebra-quebra,
financiadores, idealizadores, incentivadores e agentes que se omitiram no 8 de
Janeiro estão sob investigação e julgamento nos termos da lei. É o que deve ser
feito. Dos mais de 2.100 presos, 66 permanecem detidos. Até agora mais de 30
réus foram julgados e condenados a penas de até 17 anos por crimes como
associação criminosa, dano qualificado, abolição violenta do Estado Democrático
de Direito, tentativa de golpe de Estado e deterioração de patrimônio tombado. Réus
que não participaram de atos violentos foram autorizados a firmar acordos de
não persecução penal, com penas mais brandas. O importante é que o julgamento e
a punição dos golpistas se deem dentro da lei e dos ritos judiciais. Com amplo
direito de defesa, sem revanchismo nem sentimento de vingança. A oposição tem
criticado as prisões e as penas, mas Moraes rechaça as críticas. “A Justiça tem
que ser igual para todos”, diz. “Se as penas máximas fossem aplicadas em todos
os cinco crimes, pegariam mais de 50 anos, mas pegaram 17 (no máximo).”
Para além de punir os executores, é
necessário aprofundar as investigações para chegar aos mandantes. Sobretudo, é
essencial estabelecer que papel — se algum — tiveram o ex-presidente Jair
Bolsonaro e outras autoridades na tentativa de golpe. Para Moraes, caso fique
comprovada a participação de políticos, eles devem ser alijados da vida
pública. “Quem não acredita na democracia não deve participar da vida política
do país”, afirmou.
Felizmente, o país voltou à normalidade
democrática. Lula cumpre o mandato para o qual foi eleito. O Congresso
escolhido pelo povo faz seu trabalho. O Judiciário julga com independência. A
imprensa exerce seu papel fundamental de informar e fiscalizar. Tudo isso só
foi possível porque a sociedade, mesmo cindida nas urnas, rechaçou com firmeza
a trama golpista que tentou encerrar o mais longevo período democrático da
História do Brasil. A lamentar, nas comemorações previstas para amanhã, apenas
a ausência de governadores da oposição, sob as mais diversas alegações. Nada
deveria ser mais importante do que celebrar a vitória da democracia no 8 de
Janeiro.
De volta ao padrão
Folha de S. Paulo
Reação a 8/1 mostra democracia forte; deve-se
focar na agenda social e econômica
A baderna que engolfou
a praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, apesar de ter
ocorrido já na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seria mais bem situada
analiticamente como o ato derradeiro do período Jair Bolsonaro (PL).
Naquele dia desbordou o jorro de ódios e
insanidades que haviam sido acumulados pela ação e a omissão do presidente da
República e seu séquito de aloprados ao longo de quatro anos. Foi o fim de um
pavio que se apagou diante da solidez da arquitetura democrática.
As instituições negaram substrato para
aventuras golpistas. Os arruaceiros que acreditaram estar subvertendo pelo
vandalismo o resultado das urnas moviam-se sem o menor respaldo do oficialato
militar ou de qualquer outra organização do Estado brasileiro.
O porre da depredação de palácios na capital
federal logo deu lugar à ressaca das prisões dos delinquentes e à sua
responsabilização judicial. A Procuradoria denunciou mais de 1.400 pessoas
pelos crimes daquele domingo. Um ano depois, 30 já foram julgadas e condenadas
pelo Supremo Tribunal Federal.
A corte age bem ao dar celeridade aos
processos, o que favorece o efeito dissuasório das condenações, mas se excede
no tamanho das penas aplicadas. Elas chegam a 17 anos de prisão para
acusados que não exerceram papel de liderar nem de organizar as violações.
Há um ano ouviu-se o último ronco da besta
acuada que inspirava o extremismo de direita. Sob Lula, o chefe do Executivo
recobrou o padrão de conformidade com as regras do jogo constitucional.
Essa conduta, vale sublinhar, tem sido a
regra, quebrada apenas na quadra da irresponsabilidade bolsonarista, em quase
quatro décadas de Nova República. O governante erra e acerta, ganha e perde,
sem promover razias contra quem se incumbe de limitar e fiscalizar o exercício
do poder presidencial.
O bom vento da normalidade deveria refrescar
também o STF, que mantém inconclusos inquéritos policiais anômalos, abertos e
tocados pelo mesmo tribunal que julga, e às vezes se
inclina para decisões que cerceiam a livre expressão.
Reformas legislativas para evitar a
contaminação das corporações militares pela política partidária ainda
necessitam ser votadas pelo Congresso Nacional. Também espera-se que o aparato
de segurança dos edifícios federais em Brasília jamais permita a repetição da
humilhação do 8 de janeiro.
No mais, o Brasil tem pressa para virar a
página. Precisa concentrar as suas energias cívicas e institucionais nos temas
de seu desenvolvimento econômico e social deficiente. É exasperante perder
tempo com agendas velhas e fracassadas, que questionam o pavimento democrático
da rodovia a seguir.
Areia movediça
Folha de S. Paulo
Alargar praias contra erosão é defensável,
mas pode tornar-se trabalho de Sísifo
Salvo raras exceções, a população se
beneficia com alterações da paisagem natural e apoia a construção de usinas de
energia ou pontes e viadutos rodoviários.
Quando se trata de alargar praias com
toneladas de areia, nem preservacionistas criticam tanto tais iniciativas
—embora elas figurem entre os usos pouco sustentáveis de dinheiro público.
Levantamento da Folha detectou 24
megaprojetos para engordar praias, do Ceará a Santa Catarina, alguns
já concluídos, outros em planejamento ou execução. Tudo somado desde 2018, está
uma montanha de 24,5 milhões de m³ de sílica, o suficiente para encher 12
estádios do Maracanã.
Comparado com o volume total dos mares da
Terra (1,3 bilhão de km³), e considerando que 1 km³ equivale a 1 bilhão de m³,
a areia mobilizada nos empreendimentos balneários de fato não se qualifica nem
como a proverbial gota no oceano. Já os recursos investidos, de R$ 1,8 bilhão,
fazem diferença para os 21 municípios envolvidos.
Pode-se argumentar que o benefício em
qualidade de vida compensa os custos, diluídos entre centenas de milhares de
cidadãos. Ocorre que esse gênero de intervenção contém apenas temporariamente a
contínua erosão marinha.
Mesmo com obras complementares de
enrocamento, exige-se reposição de areia. Mais dinheiro público se esvai com as
ondas e a maré. Isso sem mencionar os casos em que se acelera o processo
erosivo, como o da praia de Ponta Negra, em Natal (RN), em que uma obra
incompleta solapou a tentativa de proteger o calçadão.
O problema da erosão marinha é generalizado
no litoral brasileiro, e o enfrentamento fica a cargo de prefeituras ou
governos estaduais, que não orçam recursos necessários para manutenção. Tendo
em vista que os danos só vão piorar com a elevação do nível do mar, a questão
demanda coordenação em nível federal.
Uma estratégia nessa direção se esboça com o
prometido acréscimo da erosão costeira no Plano Nacional de Mudança do Clima,
ora em revisão pelo Planalto.
É um dos temas candentes no capítulo de
adaptação para preparar a
infraestrutura e o poder público para o aumento da temperatura e
dos eventos extremos que ele acarreta, como ressacas portentosas.
Mais que apenas alargar praias, governantes necessitam prevenir a possibilidade de que algumas delas terminem riscadas do mapa.
A força e a fraqueza do Supremo
O Estado de S. Paulo
Apesar das corretas alterações regimentais de
2022, STF segue apegado à velha cultura, ignorando que o poder da Corte é
inversamente proporcional ao poder individual de cada ministro
No fim de 2022, sob a presidência da ministra
Rosa Weber, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou duas alterações em seu
Regimento Interno que, de forma prática, reduziam o poder individual dos
ministros. Os pedidos de vista passaram a ter prazo de 90 dias para devolução.
Após esse período, os autos ficariam automaticamente liberados para a análise
dos demais ministros. A segunda mudança referia-se às decisões cautelares
monocráticas, que deveriam ser submetidas imediatamente a referendo do Plenário
ou da Turma, a depender da competência do caso.
As duas mudanças regimentais contribuíam para
uma atuação mais colegiada da Corte constitucional. Não reduziam o poder do
STF, apenas limitavam o poder individual de seus ministros. Explicitavam,
assim, uma realidade institucional muitas vezes ignorada: quanto maior é o
poder individual dentro de um tribunal, mais fraco é o poder do colegiado.
Se um ministro sozinho pode determinar quando
devolverá os autos para a continuidade do julgamento, todos os restantes ficam
à mercê da vontade desse ministro. O mesmo ocorre com as decisões monocráticas.
Exemplo dessa distorção foi a liminar do ministro Luiz Fux suspendendo a
instalação do juiz de garantias. A posição dele era rigorosamente minoritária
dentro da Corte, mas, com a decisão liminar, ele conseguiu que sua posição
prevalecesse sobre a dos demais por mais de três anos. Ou seja, um só integrante
da Corte foi capaz de atrasar a eficácia da decisão da Corte, em uma situação
de clara fragilidade do tribunal.
Cabe um alerta, no entanto. Apesar de
corretas e necessárias, as alterações regimentais ainda não produziram os
efeitos esperados. Há ainda ministros confundindo poder individual com poder do
STF. Eles não entenderam o profundo sentido de defesa da Corte que as mudanças
de final de 2022 vieram promover. É realmente peculiar: há um novo Regimento,
mas a mentalidade de alguns ministros segue ainda apegada ao velho modo de
atuar.
Essa resistência ao fortalecimento da
colegialidade ficou explícita na reação do presidente do STF, ministro Luís
Roberto Barroso, e do decano da Corte, ministro Gilmar Mendes, à aprovação pelo
Senado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, que limita decisões
individuais dos tribunais contra atos legislativos. Os dois trataram a proposta
legislativa como uma afronta ao Supremo, mas, na verdade, ela fortalece o
tribunal, evitando situações como a da liminar de Luiz Fux no caso do juiz de
garantias, em que a uma só pessoa impediu que a vontade da maioria do Plenário
produzisse seus efeitos constitucionais. Reafirmando o que a Lei 9.868/99 já
estabelece, a PEC 8/2021 não diminui em nada o poder do Supremo, que continuará
podendo exercer, agora com mais plenitude e independência, o controle de
constitucionalidade das leis.
Mas o ano de 2023 indicou não apenas a
permanência no STF de uma cultura ultrapassada e incompatível com a realidade
institucional de uma Corte constitucional. Ele explicitou que a prática segue
muito similar ao que era antes. Há quem continue utilizando decisões
monocráticas como forma de definir sozinho situações jurídicas complexas. Mais
do que evitar eventuais danos irreparáveis – finalidade do poder geral de
cautela –, o objetivo de algumas liminares de ministros do STF é estabelecer
novos cenários que, por mais esdrúxulos que sejam, uma vez definidos, são de
difícil reversão. Foi o que se viu com duas canetadas do ministro Dias Toffoli
em casos antigos. Em setembro, ele anulou todas as provas obtidas por meio do
acordo de leniência celebrado em 2016 pela Odebrecht no âmbito da Lava Jato. E,
em dezembro, suspendeu a multa de R$ 10,3 bilhões do acordo de leniência do
Grupo J&F, celebrado em 2017. Não há nenhum sentido em fazer isso
monocraticamente, o que desgasta e desautoriza a Corte.
A força do STF está em sua colegialidade. Só
assim poderá prover uma compreensão estável e fundamentada da Constituição,
apta a orientar todo o sistema de Justiça. O resto é arbítrio.
Mais um pacote de incentivo às montadoras
O Estado de S. Paulo
Conceder benefícios para estimular a produção
de automóveis definitivamente se transformou numa regra, adotada por diferentes
governos há 70 anos; o pretexto agora é a descarbonização
N o apagar das luzes de 2023, o governo
lançou mais um pacote de incentivos para montadoras de veículos. A título de
promover a descarbonização, o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover) vai
oferecer um total de R$ 19,3 bilhões em incentivos fiscais até o fim de 2028.
Há uma condição adicional, no entanto, para
usufruir do benefício. A indústria terá de produzir os veículos no Brasil. E,
para bancar parte do benefício, o governo contará com a arrecadação oriunda do
Imposto de Importação sobre carros elétricos e híbridos, que voltou a ser
cobrado em 1.º de janeiro.
Quando foi anunciado, em novembro, o fim da
isenção de veículos eletrificados foi elogiado por este jornal. Era um bom
exemplo a explicar a regressividade da carga tributária brasileira. Afinal, sob
o pretexto de reduzir as emissões, o deficitário Estado abria mão de comprar
impostos para favorecer a compra de veículos para transporte individual por
consumidores de alto poder aquisitivo.
Agora, o governo Lula da Silva deixa claro
que a reversão da medida jamais teve como objetivo o reequilíbrio fiscal ou a
correção de injustiças tributárias. A intenção, desde o início, era preparar
terreno para editar, pela enésima vez, um plano para incentivar a indústria
automotiva a investir no Brasil, como admitiu o vice-presidente Geraldo
Alckmin, também ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.
O Mover nasceu para substituir o Rota 2030,
programa que estava em vigor desde 2018. O Rota 2030, por sua vez, surgiu no
lugar do Inovar-Auto, que funcionou de 2013 a 2017. Antes deles, vieram medidas
para reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), para retomar a
produção do Fusca e o Proálcool, entre muitas outras nos últimos 70 anos.
Conceder benefícios fiscais para estimular a
produção de automóveis não é, portanto, uma novidade, mas uma regra adotada e
mantida por diferentes governos para atender a interesses muito caros às
montadoras. O que mudou, ao longo desse tempo, foi o objetivo que, em tese,
justificava a adoção de cada uma dessas medidas: industrializar o País, gerar
empregos, aumentar os investimentos na cadeia de autopeças e fornecedores,
reduzir emissões, regionalizar a produção e reduzir o preço dos veículos.
Os números do setor mostram que os resultados
dessas propostas são, no mínimo, questionáveis. Algumas até funcionaram, mas
tiveram efeitos efêmeros. Já o custo dessas políticas foi muito palpável:
sempre na casa dos bilhões. Segundo um relatório do Tribunal de Contas da União
(TCU), cada emprego criado pela Stellantis em sua unidade no Pernambuco custava
R$ 34 mil por mês aos cofres públicos.
Seria esta a melhor forma de aplicar os
recursos? Para o governo federal, não há dúvidas de que sim. Incluída na
reforma tributária, a prorrogação do programa para favorecer os fabricantes de
veículos do Norte, Nordeste e Centro-Oeste não era unanimidade nem mesmo entre
as montadoras e criou um racha como poucas vezes se viu na história da
Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Teve, no
entanto, apoio explícito do Executivo.
Com o lançamento do mais recente regime
automotivo, a paz voltou a reinar na entidade. Para a Anfavea, o País
“mantém-se na vanguarda ao estabelecer regras que dão previsibilidade aos
investimentos privados no País”. “Excelente notícia para toda a cadeia da
indústria automobilística brasileira”, disse a entidade.
Chega a ser cansativo observar o governo
insistir nas mesmas políticas de sempre na expectativa de obter resultados
diferentes. Se os incentivos para montadoras, de fato, funcionassem, o Brasil
certamente teria uma produtividade invejável, seria um dos maiores exportadores
de veículos do mundo e produziria automóveis modernos e competitivos.
Uma vez que não é, e que as mais de 20
montadoras e suas 27 fábricas estão com alto nível de ociosidade, seria, no
mínimo, recomendável investigar as razões que podem explicar esse problema. Mas
para o governo – e não apenas para este governo em particular – nada disso
importa.
O recado do Ibama
O Estado de S. Paulo
Servidores ambientais decretam greve e expõem relação esgarçada com governo de Lula da Silva
A paralisação de todos os serviços de campo
anunciada pelos servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) logo nos primeiros dias do ano estica a
corda em relação ao tratamento dado pelo governo à atividade ambiental. De
acordo com a carta dos funcionários à direção do órgão, estão suspensas
fiscalizações em todos os biomas e em territórios indígenas, além de
procedimentos de prevenção e combate a incêndios florestais. Procedimentos de
licenciamento ambiental também ficam interrompidos com a greve.
A preocupação imediata que surge com o
anúncio de suspensão total das práticas de campo – inclusive atendimentos a
emergências ambientais – é sobre as consequências desastrosas que podem advir
de um período livre de fiscalização ambiental. Num momento em que ainda são
intensos os efeitos da crise climática sobre os principais biomas brasileiros,
uma “carta branca” ao avanço de atividades irregulares, como desmatamentos,
mineração clandestina e incêndios criminosos, mesmo que por tempo limitado,
representa um alto risco.
Mas tão alarmante quanto os eventuais danos
ambientais é a relação política esgarçada entre a categoria e o governo
petista. Na carta, que já conta com mais de 1.700 assinaturas, os servidores do
Ibama declaram que o movimento grevista é uma resposta “à falta de ação e
suporte efetivo” do governo. Para uma categoria que se autoatribui o título de
mais assediada e perseguida durante o governo de Jair Bolsonaro – uma gestão de
fato marcada pelo abandono ambiental –, classificar como “deslealdade” o primeiro
ano do terceiro mandato de Lula dá a medida da insatisfação.
Pois foi dessa forma que funcionários do
Ibama e do ICMBio se referiram ao governo Lula, também em carta, em dezembro
passado, durante a realização da COP-28, em Dubai. Ressaltaram as contradições
da gestão petista e falaram em redução de expectativas entre promessas e
discursos e a prática.
A greve, por certo, é por melhoria salarial e
pela instituição de um plano de carreira. E passou das ameaças à prática depois
de o governo ter autorizado reajustes salariais para servidores da Polícia
Federal e da Polícia Rodoviária Federal, no fim de 2023. Mas os funcionários do
Ibama reclamam também do descaso que imaginavam ter ficado no passado com o fim
do governo Bolsonaro.
Não é o que tem sido constatado. O órgão
incumbido de formular e pôr em prática políticas públicas de proteção ao meio
ambiente continua sucateado e opera com um corpo técnico muito aquém do
necessário para cobrir todo o território. São pouco mais de 2.800 agentes,
menos da metade dos 6.200 que teve num passado recente.
De acordo com dados de dezembro do Sistema Global de Informação sobre Incêndios Florestais (GWIS, na sigla em inglês), 2023 registrou uma temporada recorde de incêndios florestais, com 80 milhões de hectares queimados. No Brasil, foram 27,5 milhões de hectares. Na questão ambiental, o governo precisa decidir rápido se passa da teoria à prática no fortalecimento à ação fiscal.
Democracia fortalecida
Correio Braziliense
Um ano depois da infâmia do 8 de janeiro,
quando golpistas invadiram as sedes dos Três Poderes, o regime que preserva as
liberdades e o direito ao contraditório está mais forte do nunca
A democracia brasileira tem muito a
comemorar. Um ano depois da infâmia do 8 de janeiro, quando golpistas invadiram
as sedes dos Três Poderes, o regime que preserva as liberdades e o direito ao
contraditório está mais forte do nunca. Não fosse, porém, a reação rápida e
firme do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, o Brasil poderia estar
amargando uma autocracia, em que os civis estariam com seus direitos cerceados.
A sociedade deve se pautar pelo dia da barbárie para não permitir que o país
flerte novamente com o autoritarismo.
Apesar do fortalecimento da democracia e do
compromisso inequívoco da maior parte da população com esse regime, há um longo
caminho a ser percorrido para que o Brasil seja pacificado. Infelizmente, a
divisão política inflamada pelas redes sociais e pela disseminação de fake news
continua alimentando o ódio e semeando a discórdia. Há profundas feridas
abertas por anos seguidos de ataques às instituições, aos Poderes constituídos,
que precisam ser cicatrizadas. A cura passa pelo diálogo e pelo respeito à Constituição.
Não há dúvidas de que a regulação das redes
sociais é um dos remédios a serem prescritos. O submundo digital se transformou
numa ferramenta vital para que grupos que desprezam os sistemas democráticos
usem a mentira para destruir a história e minar as bases dos pilares que
sustentam o que se aprendeu chamar de civilidade. Trata-se de um movimento
global, em que o Brasil é uma peça importante para a ação dos que repudiam as
liberdades. Não por acaso, há, hoje, no mundo, um número maior de países com
autocracias do que nações democráticas. É assustadora, por exemplo, a
constatação de que metade dos jovens alemães não sabe exatamente o que foi o
nazismo, fruto do desinteresse pelo fato, uma arma para os manipuladores.
Um ano após as atrocidades que ocorreram em
Brasília, o país deve repudiar, com veemência, a tentativa de alguns segmentos
da sociedade de minimizar os fatos. Os atos terroristas, que resultaram na
destruição do coração da República e de parte importante do patrimônio
histórico não foram coisas de maluco. As terríveis imagens guardadas na memória
de todos escancaram que havia métodos e muito planejamento por trás das
invasões ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Palácio
do Planalto.
A punição aos que atentaram contra a
democracia não pode se restringir aos que praticaram o vandalismo, deve
atingir, sobretudo, aqueles que financiaram e idealizaram os movimentos
golpistas. Não pode haver complacência, independentemente da origem, do poder
econômico ou da farda vestida pelos que conspiraram a favor do autoritarismo.
As penas devem decorrer de julgamentos justos e com amplo direito de defesa,
tudo o que desprezam os artífices da infâmia. Assim como foi fundamental para
evitar a ruptura institucional, o Judiciário brasileiro deve mostrar isenção e
responsabilidade nesse processo.
Há que se ressaltar a coerência dos chefes
das Forças Armadas. A despeito da tentação imperando dentro dos quartéis, todos
optaram pelo compromisso com a democracia. Tiveram a consciência de que não
poderiam abraçar uma aventura, sob o risco de empurrarem o Brasil para o caos e
para o isolamento no mundo. A reação internacional, repudiando a tentativa de
golpe, explicitou que 1964 não se repetiria. A partir de agora, cabe às
instituições redefinirem o papel dos militares, para que fantasias golpistas sejam
extirpadas de vez.
Nesta segunda-feira, 8 de janeiro de 2024,
quando as instituições reforçarão o importante compromisso com a democracia, é
fundamental que os brasileiros repudiem todo e qualquer movimento autoritário,
que despreze as liberdades e os direitos básicos dos cidadãos. Quase 40 anos
pós o fim da ditadura, o Brasil deve concentrar todos os esforços para se
tornar uma nação mais justa, com menos desigualdades sociais e mais
oportunidades, em especial, para os mais pobres. É preciso reforçar que, nesse
compromisso, previsto na atual Constituição, o 8 de janeiro de 2023 jamais se
repetirá. E jamais será esquecido.
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