DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O que melhor poderia ocorrer ao Brasil em 2009? Cada brasileiro tem uma resposta na ponta da língua. Mais dinheiro no bolso, saúde, garantia de emprego, maior segurança nas cidades, harmonia social. Da parte dos governantes, o termo-chave é crescimento. A indicação a resumir as expectativas gerais pode ser esta: a expansão do Produto Nacional Bruto da Felicidade, o PNBF, que é o grau de satisfação das classes, medida por um conjunto de fatores econômicos e sociais. A meta, vale reconhecer, resvala pelas tortuosas curvas da imponderabilidade, comum às nações e desafio permanente de núcleos burocráticos que buscam e testam modelos para viabilizar as administrações e driblar os obstáculos, principalmente em ciclos de crise como este que abala as economias mundiais e cujo impacto - de acordo com todas as previsões - será mais forte no País no primeiro trimestre deste ano. Existe, porém, um amplo espaço de previsibilidade, com crise ou sem crise, que pode ser preenchido com decisões focadas para a melhoria do bem-estar social. Este território é o do entendimento sobre a abrangência da política e leva em conta o fato de que ela não é apenas a arte do possível, mas a vontade de viabilizar coisas que parecem impossíveis.
A começar, por exemplo, com as tão propaladas reformas política e tributária. O País vive uma crise crônica porque a natureza de sua política é incompatível com um modelo racional de Estado e uma gestão moderna de democracia. Em consequência, vive-se uma situação de precária governabilidade, agravada por tensões entre instituições. Há consenso sobre o diagnóstico. Entre as ações prementes, precisamos reformar o sistema político-eleitoral; modernizar a estrutura do Estado, a partir de limites sobre competências entre Poderes e redefinição de atribuições entre entes federativos; consolidar a legislação infraconstitucional, que mantém buracos desde 1988, e atualizar os eixos das relações do trabalho. Os cidadãos - de todas as classes, vale lembrar - precisam enxergar no Estado braços protetores, e não uma bocarra para engolir impostos, encargos e contribuições. Querem um sistema previdenciário que lhes retribua o peso de anos de contribuição. Uma escola pública de qualidade e capaz de abrigar milhões de brasileiros que permanecem fora do sistema educacional. Sonham com os tempos bucólicos de segurança nas calçadas de suas casas. Será que o governo não pode avançar em matéria de segurança pública? Ninguém pode ser contrário a programas de redistribuição de renda. Mas assistir 11 milhões de famílias por meio de bolsas, sem lhes dar uma saída para esse modelo acomodatício, é aprofundar o buraco, construir a cama perpétua da inércia.
Como interstício entre anos eleitorais, 2009 é chave para abrir a porta de reformas. O argumento é o de que medidas de cunho político só serão adotadas em 2014, e não em 2010. Dar-se-ia prazo suficiente para maturação das decisões. Não dá mais para esticar o cordão da crise intermitente que amarra o País às raízes arcaicas. O xeque-mate no jogo é a crise econômica. Diques pontuais para atenuar as ondas da pororoca (maior que a marolinha de Lula) só serão eficazes se acompanhados de reformas do Estado e de padrões políticos. Reformar, como se sabe, é mudar, inovar, avançar, recondicionar, conceitos que ultrapassam limites físicos para abrigar questões comportamentais. Implica mudança de atitudes. O presidente da República deve ser o primeiro a dar o exemplo, impulsionando vontades transformadoras, incentivando avanços, empurrando o Executivo em direção às reformas, sem pretensão de expandir o mandonismo do sistema presidencialista. Sob essa inspiração, o Palácio do Planalto só usaria o instrumento excepcional da medida provisória em caso de urgência e relevância. A sinalização de boa vontade e respeito ao sistema normativo seria reconhecida, contribuindo para aperfeiçoar sua imagem burilada de maneira tosca pelo cinzel do populismo.
Os corpos parlamentares, do Senado e da Câmara, tocados pela ideia de que as crises - a econômica e a política - apontam para a necessidade de decisões altaneiras, haverão de encontrar aquele traço de união, raro, mas não impossível, em que visões egocêntricas olharão para o altar da Pátria para ali depositar o fruto do consenso, consubstanciado em ações para combater o atraso. Se não é possível avançar muito, pelo menos se tente fazer o máximo. O que não se admite é intransigência por obra e graça de artimanhas com vista ao jogo eleitoral futuro.
No que diz respeito ao Judiciário, já se percebe que a justiça sai dos longos corredores das Cortes para chegar às ruas. Ainda é lenta e pouco acessível ao cidadão comum. Não se nega, porém, que os juízes começam a vestir uma toga de matiz mais humano. O ano poderá ser menos inóspito no campo das relações harmônicas entre o Supremo Tribunal Federal e os Poderes Executivo e Legislativo. O que parece inadmissível é ouvir o presidente da República falando mal de ministros. E estes, mesmo sob a elogiável intenção de popularizar a locução, poderiam ser mais cautelosos e menos afoitos no uso de adjetivos. Que tal um acordo para ajustar condutas ao tempero constitucional da harmonia, autonomia e independência dos Poderes?
O que se espera, enfim, dos atores do cenário institucional é o compromisso com os valores mais sagrados do sistema democrático e, sobretudo, a vontade de contribuir para elevar os padrões da cidadania. Em suma, espírito público, aquela chama cívica que Tocqueville enxergou, há 170 anos, quando descreveu a democracia norte-americana: “Existe um amor à pátria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem ao lugar em que nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna.”
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
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