terça-feira, 9 de março de 2010

Ameaça do crescente déficit em transações correntes:: Yoshiaki Nakano

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Com a recuperação da economia brasileira, as importações estão voltando a crescer rapidamente e as previsões são de um déficit em transações correntes de mais de US$ 50 bilhões neste ano. Mantida a tendência, o déficit poderá atingir US$ 80 bilhões em 2011, com déficit na balança comercial depois de muitos anos de superávit. Além da recuperação econômica, esse quadro deve-se à sobreapreciação do real. O aumento do compulsório dos bancos comerciais e a sinalização clara, pelo Banco Central, de que a taxa de juros sofrerá elevação, deve agravar o quadro de sobre apreciação, pois a elevação da taxa de juros neutralizará os efeitos sobre os custos de IOF dos especuladores com o real. Volto a recolocar neste artigo algumas questões de fato muito simples para desmistificar a ideia de que a taxa de câmbio flutuante responderia antecipadamente a esse déficit, fazendo o ajuste necessário.

Se nós vivêssemos em meados do século passado em que todos os países controlavam os fluxos de capitais sob comando do Fundo Monetário Internacional (FMI), cumprindo uma cláusula do acordo de Bretton Woods, essa organização recomendaria ao Brasil a depreciar a taxa de câmbio provendo, para isso, financiamento para evitar danos ao nível de emprego.

Com o rompimento do acordo de Bretton Woods e com taxa de câmbio flexível nos anos 70 e 80, essa ainda respondia, em alguma medida, às exportações e às importações. A perspectiva de crescente déficit em transações correntes e aumento do passivo externo levariam a uma depreciação da taxa de câmbio. Assim, se eu tivesse parado no tempo poderia afirmar que o real deverá agora iniciar um ciclo de depreciação, pois o mercado, diante do crescente déficit e antevendo a inevitável necessidade de depreciação da taxa de câmbio, em algum momento, iniciaria já um processo de depreciação até que as transações correntes se ajustassem.

Mas o que aconteceu ao longo das últimas décadas foi a integração dos mercados financeiros com crescimento explosivo dos ativos financeiros de forma que, cada vez mais, as operações de câmbio estão voltadas para fazer transações financeiras diárias de trilhões de dólares. As estimativas indicam que apenas 1% das operações de taxa de câmbio estão atreladas a operações de exportações e importações de bens e serviços. Assim, podemos dizer que a taxa de câmbio é 99% determinada pelo mercado de ativos financeiros, dependendo da política monetária dos Estados Unidos, superávit em transações correntes (excesso de poupança) da China e dos exportadores de petróleo, portanto, dos fluxos de capitais e da estratégia daqueles que especularam nesses mercados. Sabidamente esses especuladores têm diferentes apetites ao risco de acordo com as circunstâncias e têm comportamento de manada.

Assim, o déficit em transações correntes pode persistir por muitos anos independentemente da taxa de câmbio? Não. A longo prazo a taxa real de câmbio acaba sendo depreciada, mas ex post, isto é, pela crise de balanço de pagamentos. Em outras palavras, quando as nossas transações correntes se deterioram suficientemente, os bem informados e "insiders" começam a deixar de financiar e retirar seus recursos do Brasil, sendo, em seguida, acompanhados pela manada quando todo o mercado financeiro deixa de apostar no Brasil.

Isso desencadeia a "parada súbita" no fluxo de capitais e a disparada na taxa de câmbio. Daí o chamado "overshooting" e drástico ajuste com elevados custos sociais. Fique claro que a taxa de câmbio responde ao déficit em transações correntes, mas com a parada súbita no fluxo de capitais e crise de balanço de pagamentos. Nesse quadro, se o déficit acumulado for elevado, isto é, se o estoque de passivo externo for significativo, as reservas cambiais, por mais elevadas que sejam, podem desaparecer rapidamente.

O problema de países como o Brasil é a crença numa mão invisível que regula o mercado de câmbio de forma a ajustar antecipadamente as transações correntes ou de que a divina providência faz o dólar cair do céu nos leva a políticas populistas. A apreciação da taxa de câmbio traz surtos de crescimento baseados no aumento de consumo, com elevação do salário real, sem sustentação na elevação da produtividade física do trabalhador, podendo até aumentar o investimento com compras de máquinas e equipamentos importados com "subsídio" do câmbio apreciado. Mas esse surto não se sustenta no longo prazo, pois o déficit de transações correntes acumulado acaba provocando, ainda que ex post, a depreciação bem como a apreciação da taxa de câmbio, e a elevação do salário real reduz a margem de lucro das empresas, neutralizando o "subsídio" do câmbio apreciado. Além do mais, a livre flutuação gera volatilidade excessiva da taxa de câmbio, aumentando o risco de câmbio de investimento no setor de "tradables" de forma que, a longo prazo, deprime os investimentos.

Analisando a experiência brasileira podemos afirmar que é possível o país acumular pequenos déficits em transações correntes, digamos uma média de 1% a 1,5% do PIB, ao longo de muitos anos se as exportações estiverem crescendo e o passivo externo sob controle, como aconteceu com o Brasil desde a Segunda Guerra Mundial até o início do fim da década de 60. Alguns estudos empíricos mostram que um pequeno endividamento de até 60% das exportações pode até ajudar o país a crescer mais, mas quando passa desse nível, a sua contribuição é cada vez menor e quando passa o valor das exportações começa a ter efeitos negativos. É o que aconteceu com o Brasil ao longo da década de 70. Os déficits acumulados geraram um passivo externo crescente que desencadeou a crise de balanço de pagamentos e a maxidesvalorização cambial no final de 1980. Assim, o endividamento da década de 70 passou a ser entrave ao crescimento e resultou na década perdida dos nos 80 e semi-estagnação dos anos 90. Da mesma forma, os déficits em transações correntes dos primeiros anos do Plano Real desencadearam a crise de balanço de pagamentos e a depreciação cambial de 1999. A lógica é tão simples quanto óbvia que quem se endivida tem que pagar a dívida. Se quisermos evitar desastres como da década de 80 e a crise de balanço de pagamentos de 1999, é melhor administrar a taxa de câmbio levando-a ao nível que resulta em um déficit em transações correntes aceitável de longo prazo.

Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.

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