Contra tudo e (quase) todos, o deputado Feliciano e seu Partido Social Cristão se aferram ao cargo mais alto a que chegaram, a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. A situação é insustentável para o país, porém conveniente a ele e ao partido, até porque dificilmente obterão, um dia, outro posto dessa envergadura ou tanta repercussão na mídia.
O PSC, com seus 16 deputados federais e um senador, faz o seguinte cálculo: quer aumentar seus votos em 2014, valendo-se - paradoxalmente - da exposição num cargo que vai contra tudo em que o deputado crê. Falem mal de mim, mas falem: mesmo a mídia negativa ajudará a ganhar eleitores, numa franja inculta e preconceituosa da sociedade. Isso, mesmo sabendo que, ao pregar o que a opinião esclarecida repudia e que o Supremo Tribunal Federal descartou em vários julgados, o PSC inviabiliza sua presença no governo federal, atual ou futuro. Não se imagina que, no mandato a se iniciar em 2015, Dilma, Marina, Aécio ou Campos deem um ministério a um político dessa agremiação. Seria alto o custo de ter no primeiro escalão quem endossa a tese de que os negros descendem do filho amaldiçoado de Noé, e por isso merecem miséria, Aids e Ebola, ou de que a mulher deve obedecer sempre ao homem. Um custo, aliás, não só nacional - porque repercussão internacional negativa, se não houve, virá - até porque o deputado começou a gestão visitando a embaixada do Irã, país constantemente condenado por ações contrárias aos direitos humanos.
O caso ilustra um problema sério de nosso presidencialismo de coalizão. As bancadas que apoiam o governo se infantilizam: demandam vantagens, em vez de formular projetos. Assim, o presidente é quem dá racionalidade a uma coligação que, sem ele, seria puro negócio. A coalizão é irracional, o presidente é racional. A questão é quanto o presidente cede. Ele cede nas bordas, protege o essencial. Como disse certa vez Roberto Pompeu de Toledo, a Fazenda jamais irá para um partido duvidoso. Assim agiram Itamar, FHC, Lula e, hoje, Dilma. O saldo é positivo para a governabilidade, negativo para a reputação da política. O braço mais democrático de nosso sistema, o Legislativo e, nele, a Câmara, fica com a imagem ruim junto aos eleitores. E, a meu ver, todos os presidentes mencionados cederam mais do que deviam.
Direitos humanos, a ética pública de nosso tempo
O pior é que uma área fortemente ética, como os direitos humanos, fique nas bordas, seja negociável, não esteja protegida.
Se chegamos a essa crise, foi justamente porque, na hora do vamos-ver, os grandes partidos acharam que os Direitos Humanos (ou o Meio Ambiente, no Senado) eram moeda de troca barata. Mais importantes, para eles, são as grandes comissões. Quando o ministério se reúne, as Pastas da ética - Igualdade Racial, Mulheres, Meio Ambiente, Direitos Humanos - ficam no fundo da sala. Mas isso precisa, tem de mudar! Os ministérios econômicos são essenciais para o futuro do país, mas o que é este futuro? Ele será definido pela igualdade das pessoas, sem acepção de sexo ou cor, pelo respeito à natureza, pelo desenvolvimento de uma economia e de uma sociedade sustentáveis e, finalmente, pela possibilidade que todos tenham, não prejudicando o outro, de florescer.
Isso porque os direitos humanos são a ética pública de nosso tempo. O respeito ao outro surge em dezenas de artigos das grandes declarações nacionais de direitos humanos, a inglesa de 1689, a francesa e a americana de 1789. Esses direitos se ampliam com os da declaração universal de 1948, bem como outros documentos da ONU - e de muitos países. Ir contra eles é afrontar o melhor do espírito de nosso tempo. O que significam os direitos humanos? Numa só frase: permitir que uma pessoa floresça como queira. O grande limite aos direitos, assim, deriva deles mesmos: eles não autorizam ninguém a impedir outrem de, também, florescer. Essa ideia tão simples foi e é uma novidade histórica notável. Todos conhecemos histórias, passadas e presentes, de sofrimentos e mesmo desgraças que não existiriam, houvesse esse respeito. O que os direitos humanos procuram eliminar são algumas grandes causas de infelicidade.
Daí que seja decisivo, para nossa sociedade, na qual os direitos têm avançado graças a uma soma notável de esforços - os movimentos de minorias, a atuação aqui convergente de PSDB e PT, as decisões do Supremo Tribunal Federal e até as novelas da Globo -, que não haja ponto de retorno. Se eleitores desejam eleger um representante que se insurja contra esses direitos, desde que fique dentro dos limites constitucionais, isso a democracia permite. Mas, que um porta-voz do preconceito represente o país, seja no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário, eis o que passa dos limites aceitáveis. A opinião pública deve deixar isso bem claro, na mídia e para os partidos. Os direitos humanos são uma conquista que não se pode pôr em xeque.
Porque está em jogo, agora, a própria democracia. Nos Estados Unidos, uma das pátrias da democracia, já se impediu na prática, por mil pequenos ardis, a implementação de direitos humanos fundamentais. A Corte Suprema em certas épocas os reconhece, em outras não; ainda hoje, a pena de morte é aplicada por vezes sem defesa adequada dos réus nos tribunais. Em nosso país, onde o Supremo apoia mais os direitos humanos, corremos hoje risco comparável - quando uma comissão decisiva, em vez de debater crimes de ódio, vai tirá-los da agenda, porque é controlada por alguém que se opõe aos melhores valores de nossa época. A prática pode desfazer o que foi enunciado na teoria. É por isso que devemos, todos, impedir este retrocesso.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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