Estou em uma aldeia de montanha fincada no topo de um vale florido desde tempos imemoriais. Salpicada de dezenas de casinhas de pedra com telhados que quas se tocam, a aldeiazinha parece feita sob medida para os silenciosos serões de inverno ao sopé dos Alpes. É o lugar ideal para quem aprecia os passeios a pé e gosta de ver o tempo fluir devagar.
Tourretes-sur-Loup nem existe direito nos mapas. Pelo menos naqueles mapas maiores, pouco detalhados, mais comuns talvez. Também pudera: vilarejo medieval encravado nos Alpes marítimos franceses, com menos de mil habitantes em seu centro histórico, Tourretes-sur-Loup é um típico lugarejo da velha Provence, a região do bem-viver da França. O que significa dizer, entre outras coisas, que a comida ali é boa e farta, a paisagem estupenda e os vinhos magníficos. Será que alguém precisa de mais nessa vida? Provavelmente não.
Na origem, Tourrettes-sur-Loup era uma fortificação, datada do século XI. Isto é, do ano mil, quando muitos acreditavam - em uma Europa então tomada por uma onda mística - que o mundo iria se acabar. Mas não foi bem assim. Já no século seguinte, os habitantes do vilarejo inauguravam uma igreja, prova de que o pior já havia passado. Os céus poderiam testemunhar. E no século XV a História registrava o fim da construção do Castelo de Villeneuve, de pé até hoje (é belíssimo e vale uma visita. É relativamente perto do centro histórico).
Todo de pedra, o vilarejo era, na verdade, um antigo leprosário. Suas ruas e ruelas, seus becos e travessas são pavimentados de pedra e de pedra também são edificadas quase todas as suas casas. Tem algo de presépio Tourretes-sur-Loup. A cidadezinha é cercada de pequenas plantações, feitas em terraços, ao velho estilo do Mediterrâneo. O clima, de tão quente, é quase tropical, com invernos pouco rigorosos.
Há muitas laranjeiras, limoeiros, oliveiras e existem até bananeiras na cidadezinha (com uma diferença em relação às mesmas plantações nas regiões tropicais: não frutificam). Nos dias de sol é possível avistar, dos pontos mais altos de Tourrettes-sur-Loup, a encantadora cidade de Nice, distante apenas 14 km de lá. Outra marca do lugar? As violetas. Tourrettes-sur-Loup é conhecida em toda a França como a Cité des Viollettes. As voltas que a História dá: com o advento das Cruzadas, as violetas são introduzidas na França, espalhando-se depois o seu cultivo por toda a Europa Ocidental. De certa maneira, uma vitória do Oriente. Foi quando alguma coisa começou a cheirar bem nisso tudo.
Os habitantes do lugarejo falam a língua francesa com um sotaque quase tão cantado quanto o dos italianos vizinhos. Um charme a mais. Aos sábados pela manhã, na feira-livre, os camponeses expõem os mais deliciosos produtos, das hortaliças às frutas de estação, dos azeites artesanais aos pães fabricados com receitas que saem do fundo da história. De dar água na boca. E os aprazíveis cafés do lugarejo vivem apinhados, praticamente o ano todo. Jovens e velhos jogam bocha na sua única praça, onde os casais de namorados (jovens e velhos também, pois o sol nasceu para todos e todas)costumam marcar os seus encontros, dar seus passeios.
Além do mais, a pequena Tourretes-sur-Loup possui uma área rural salpicada de oliveiras, árvore originária da distante Ásia Menor, onde já seria cultivada há mais de seis mil anos. Reza a mitologia que a Deusa Ísis, do Egito, a recomendava o azeite aos seus compatriotas. Quem somos nós para contrariar as deusas?
Boa parte desse arbusto (na França, a oliveira é mais um arbusto do que qualquer outra coisa) fornece a “olive de Nice”, azeitona de Nice, pequenina, muito preta, de sabor sem igual. Suculenta, presta-se como poucas azeitonas ao preparo do azeite. Em Tourretes-sur-Loup acompanhei, pela primeira vez, a elaboração do azeite de oliva. E tive vontade de chupar muita “olive de Nice” no pé, à maneira de jabuticabas.
Houve época em que eu viajava a Tourretes-sur-Loup duas vezes por ano, sobretudo quando o frio nos maltratava muito em Paris. Se me recordo bem, o sitiante instalado junto à casa onde eu costumava passar as minhas férias deixava as azeitonas descansarem cerca de seis meses em uns recipientes previamente salgados ou salinados. É a condição básica para a extração do azeite de oliva caseiro, certamente o primeiro óleo comestível do homem. Após dormitar todo esse tempo, extraía-se o seu sumo a partir de um sistema artesanal de prensas que lembrava as engenhocas de madeira utilizadas nas zonas rurais brasileiras para a extração do caldo de cana-de-açúcar. Surgia, então, diante de nossos olhos, no fundo dos encharcados vasilhames, um azeite extremamente puro, cuja coloração lembrava estranhamente a nossa garapa (se bem que esta fosse um pouco mais clara). Não era azeite, propriamente; era um néctar, tamanha a suavidade. De tomar de colher e tudo ali na hora. Feito criança que nunca comeu melado e que quando come se lambuza.
O azeite - do árabe az-zait - teria surgido na Turquia, há cerca de seis mil anos. Era utilizado, inicialmente, na iluminação. Não se sabe com precisão quando e onde passou a ser utilizado como alimento. Em Da República, Cícero lembrou que o zeloso Império Romano, proibiu "às nações transalpinas (cultivarem) oliveiras". Mas, de todo modo, Homero, Ésquilo, Virgílio e Ovídio cantaram o azeite na Antiguidade. Melhor: os Doze Juízes do Tribunal do Olimpo decidiram que a oliveira era a obra mais fantástica jamais criada na face da Terra, acatando uma sugestão de Atena, a Deusa da Razão. Quem somós nós para contrariá-la, assim o como aos juízes, não é mesmo?
Podemos ler em diversas passagens da Bíblia Sagrada que, após cear pela última vez com os seus discípulos, Jesus Cristo deslocou-se com eles para o Monte das Oliveiras. Ali, anunciou que Pedro o negaria três vezes. Denunciado logo depois por Judas, Jesus seria preso e crucificado. Mesmo assim, a oliveira simboliza invariavelmente a vida nas Escrituras Sagradas. Seria uma heresia contrariá-las. Façamos, portanto, das olivas e do seu óleo o pão nosso de cada dia.
Tourretes-sur-Loup é um cenário de filme. Difícil encontrar, em toda a França, um lugar mais pitoresco do que aquele.
Ivan Alves Filho, historiador e jornalista
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