Passado o furor que acompanhou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de aceitar os embargos infringentes no julgamento do "mensalão", trata-se agora de olhar para o que sobrou: praticamente tudo.
O valor simbólico do julgamento converteu-o em divisor de águas. Ensejou a expectativa de que se tenha criado jurisprudência específica para o julgamento da corrupção nas altas esferas políticas e governamentais, onde há foro privilegiado, e nessa medida deixou no ar a sensação de que a República poderia ser mais bem defendida pelo Poder Judiciário, ou, mais especificamente, por aquele tribunal superior. A partidarização do assunto, porém, fez o processo dilatar-se no tempo, exacerbar sua dinâmica de rito sumário e caminhar cercado pela suspeita de ter sido uma peça condenatória a serviço da oposição e, ao final, de se ter posto a serviço do Poder Executivo. O que era para ter seguido trâmites processuais mais técnicos, compatíveis com essa instância judicial, ganhou uma turbulência que despiu o tema de boa parte da seriedade de que se revestira: em vez do crime cometido, foram para a berlinda os critérios e procedimentos do tribunal. Hoje não se discute mais o "mensalão", mas seu julgamento.
Apesar disso, certas práticas ancestrais de corrupção - presentes em inúmeros grandes e pequenos ilícitos cotidianos - ganharam transparência e foram desnaturalizadas. O "mensalão" foi grave não pelas quantias que movimentou ou pelos procedimentos que se adotaram, mas pelo envolvimento do primeiríssimo escalão governamental. Não foi "o maior escândalo da História", fórmula sensacionalista que só serve para turvar o entendimento. Mas demarcou um estilo de fazer política que não conta mais com espaços ilimitados de reprodução. A partidarização cumpriu aqui sua maior função: impossibilitou a plena e cabal conclusão do processo, mediante a ressignificação do ocorrido e a introdução, nele, tanto de componentes épicos de "ataque à República" quanto de argumentos banalizadores do tipo "caixa 2". Perderam-se com isso o justo meio termo, a frieza analítica, a contundência pedagógica. Os opostos abraçaram-se e, querendo ou não, converteram o episódio em algo que a todos prejudicará. Ao serem condenados, os réus condenaram também o tribunal que os julgou, o bom senso, a política e a República.
Os embargos infringentes foram superdimensionados, como se representassem a salvação dos condenados ou o completo desvirtuamento do que foi feito durante o processo. É verdade que, ao serem aceitos, projetaram o risco de que o STF negue sua condição de última instância, se sobreponha a si mesmo e passe a funcionar na base de recursos em cascata, como numa Corte estadual ou regional. O Supremo poderá transformar-se em "tribunal penal de terceira instância", observou o ex-ministro Eros Grau. Outro jurista de ponta, o professor Virgílio Afonso da Silva, lembrou que o STF raramente julga casos penais e construiu sua imagem como Casa onde se examinam relevantes e complexas questões morais ignoradas pelo Legislativo. Está havendo um ajuste nessa imagem, mas não é razoável que se dê como favas contadas o abandono da trilha seguida até então pelo Supremo.
O novo julgamento não será ruim para o País. Mostrará, ou não, que os juízes têm coerência e, se for o caso, humildade para reconhecer que erraram. Mais um rei será desnudado. Deixará claro que os réus tiveram direito amplo de defesa. Se vierem a ter suas penas reduzidas com base em novas provas e em bons argumentos de sustentação, a justiça se fará. Se for por algum cambalacho, todo mundo perceberá. E se não forem beneficiados e tudo se confirmar, ninguém poderá dizer que o STF agiu de modo atrabiliário. A maior probabilidade é que se mantenha o que já foi decidido no julgamento original. Ministros do porte dos integrantes da Corte não costumam brincar com suas decisões.
O importante, agora, é saber o que virá pela frente.
Ao evidenciar que um ilícito gravíssimo era cometido na antessala do presidente, o "mensalão" fez com que a corrupção (endêmica na vida nacional) só pudesse ser abordada de forma hiperpolitizada. Ela não pode mais ser analisada por critérios técnicos ou segundo a ética e a norma jurídica. Virou expediente eleitoral, munição para jogar os "bons" contra os "maus". O julgamento e os embargos reforçaram tudo isso.
O Palácio do Planalto emitiu, discretamente, sinas de preocupação com a passagem para 2014 de uma discussão que não é bom elixir eleitoral. A manutenção do tema na agenda não é confortável para a situação, pois as águas turvas do processo respingarão nas operações governamentais e na opinião pública. A sensação de que a Justiça olha com benevolência para os mais fortes, em detrimento dos comuns, poderá crescer, misturando-se com a convicção de que a impunidade dos "de cima" é uma cláusula pétrea, difícil de ser alterada. O novo julgamento manterá o STF politizado, partidarizado e contestado.
O pior é que o prolongamento do caso no tempo dará mais combustível para a surrada polarização PT/PSDB invadir o ano eleitoral de 2014. Ambos os partidos querem isso, pois não conseguem respirar de outro jeito. Precisam ser adversários recíprocos para encontrar alguma função política. Não estão preocupados com a sociedade ou o País, nem atentos à voz das ruas. Giram em padrão analógico, ao passo que a vida já se digitalizou. Como escreveu dias atrás no Estadão o jornalista José Roberto Toledo, "a disputa política continua rodando em falso, cada lado repetindo as mesmas acusações de sempre. A única diferença é a quantidade crescente de bile a espumar nas timelines". Impulsionado pelo moralismo de uns e pelo desejo de vingança de outros, o ódio vai escorrendo das redes para as ruas, contaminando o debate democrático.
Enquanto isso, o País, que permanece vivo, continua sem ver luz no fim do túnel.
Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações internacionais da Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo
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