Em 'Crise e Reinvenção da Política', ex-presidente defende pautas como cotas, aborto e mudanças na política de drogas
Marianna Holanda | O Estado de S.Paulo / Aliás
A seis meses das eleições, Fernando Henrique Cardoso conclama por uma mudança radical de renovação na política. Aos 86, o ex-presidente lançou um livro na semana passada em que alega que a polarização PT-PSDB está esgotada e defende que “ter vergonha na cara e amor à pátria não são noções de direita ou de esquerda”.
Crise e Reinvenção da Política no Brasil, da Companhia das Letras, é um longo comentário, fruto de entrevistas do tucano a Miguel Darcy de Oliveira e Sergio Fausto. Fernando Henrique defende nas 240 páginas o que em oito anos de Presidência não o fez com tanta contundência: cotas, aborto, revisão da política de drogas, a defesa do meio ambiente e até a renda mínima universal – agenda da vida do vereador petista Eduardo Suplicy, ignorada por seu partido.
Em diferentes trechos, o ex-presidente critica a leitura leninista de Gramsci e afirma que não faz mais sentido a mudança social vir de um partido revolucionário e ser obra do proletariado. “A esquerda diz que a questão central é reduzir as desigualdades. A direita diz que é aumentar a produtividade. Eu digo: temos de enfrentar o desafio de realizar uma coisa e outra, simultaneamente”, afirma.
Curiosamente, a obra dialoga com a célebre frase do socialista italiano de que o velho já morreu e o novo ainda não nasceu. Para o tucano de 86 anos, a mudança já está em curso e a realidade requer “um estilo radicalmente novo de liderança política”.
Por outro lado, as análises de como chegamos a esta crise e possíveis soluções o distanciam, na prática, do que defendem os atuais partidos de esquerda. “Para avançar é preciso abrir a economia e não fechar”, contrapõe.
O ex-presidente destrincha temas polêmicos, como a reforma da Previdência, e consegue se posicionar melhor que muitos pré-candidatos hoje no cenário eleitoral. Defende a reforma da Previdência, com idade mínima e tempo de contribuição, o voto distrital misto, a reforma trabalhista e a volta do financiamento empresarial de campanhas. As privatizações dos tempos que ocupou o Palácio do Planalto também foram defendidas: “Nunca perdemos de vista os interesses gerais da sociedade e os interesses de longo prazo no Brasil”.
Ainda sobre a Presidência, o tucano desafia os boatos de vaidade e faz uma crítica a si mesmo e ao seu partido. Um dos pontos levantados é que a legenda “nasceu com uma visão um pouco mais moderna, mas não muito”, por isso o apoio à sua gestão foi hesitante. O fato de os tucanos – e ele próprio – não saberem dialogar com a população, ou “cacarejar” como os petistas e, principalmente, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seria outro obstáculo.
Como é de se imaginar, a autocrítica parece tímida frente aos comentários sobre seus predecessores. “O petismo desabou ao impacto da crise econômica e da Lava Jato.” “Triste fim”, proclama, já no prefácio. O tucano não poupa a presidente destituída, Dilma Rousseff, de críticas, a quem responsabiliza pela crise. Mas é Lula quem aparece em cada um dos oito capítulos. O petista ainda não havia sido preso quando o livro foi concluído, mas em entrevista ao Estado semana passada, o tucano contestou a tese petista: “Lula não é preso político, é político preso”.
Um leitor desavisado pode não saber que o PSDB e seus atores políticos são também alvo de ações, inquéritos ou mesmo réus. Dois ex-presidentes da legenda, assim como Lula, estão na mira da Justiça: o senador Aécio Neves virou réu no Supremo Tribunal Federal neste mês, e o ex-governador mineiro Eduardo Azeredo pode ser preso, já que, mais recentemente, um dos últimos recursos da condenação a 20 anos e um mês foi negado na segunda instância.
O nome de Aécio, Azeredo ou outros investigados não aparece nos exercícios de autocrítica da obra. O ex-ministro José Serra, também alvo de inquérito na Lava Jato, aparece em um trecho elogioso, por ter seu projeto aprovado no ano passado corrigindo um “erro dos governos petistas” a respeito do pré-sal.
Em defesa do partido que criou, FHC diz que o “PSDB nunca se propôs a obter hegemonia no poder nem teve a visão sistemática de trocar vantagens por apoios”. Se o leitor se questiona sobre a hegemonia que a legenda exerce em São Paulo, a resposta vem no parágrafo seguinte:
“O PSDB governa São Paulo há 20 anos, e não há indícios de corrupção sistemática, do tipo da que se vê hoje exposta à luz do dia”. À luz do dia, de fato, muito pouco. O cartel de trens em São Paulo tem uma ação penal no Tribunal de Justiça para ser julgada nos próximos meses que, apesar de não citar autoridades, dificulta a vida do presidenciável tucano Geraldo Alckmin.
De toda forma, o livro faz uma defesa contundente da Operação Lava Jato e da luta contra a corrupção. Esta, defende, não é uma palavra de ordem udenista, mas “requisito para uma sociedade melhor e mais decente”. Liberal nos costumes e na economia, o octogenário aponta os princípios básicos que devem nortear a renovação, como o amor à pátria e ter vergonha na cara. Se a polarização está esgotada ou não, leitura obrigatória para seus críticos e correligionários.
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