sábado, 4 de janeiro de 2020

Míriam Leitão - Em um mundo sem moderação

- O Globo

A morte do general iraniano não leva à disparada do petróleo, o maior risco é o da falta de instâncias de solução de conflitos

As crises no Oriente Médio sempre vinham para a economia como choques de preços de petróleo e seus derivados. Ontem, depois do assassinato pelos Estados Unidos do general iraniano Qassem Soleimani, a cotação do barril do brent teve forte alta, mas não disparou. Isso reflete a grande mudança que houve no mundo entre produtores e importadores de petróleo, na opinião do economista José Pio Borges, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Desde a revolução do shale gas e shale oil, os Estados Unidos passaram de grandes importadores a exportadores. Por isso, José Pio acredita que haverá volatilidade, mas não uma alta descontrolada dos preços.

— Os americanos importavam 12 milhões de barris/dia e hoje produzem 15 milhões, são os maiores produtores do mundo e são exportadores. Isso mudou a natureza e a intensidade do interesse americano no Oriente Médio — diz o presidente do Conselho Curador do Cebri.

Ainda assim, o mundo amanheceu ontem tenso com os possíveis desdobramentos dessa morte. Soleimani era pessoa-chave para a estrutura das forças de segurança do Irã e considerado um herói. Tinha fama de invencível e, segundo a “Economist”, deve ter acreditado no mito. Desembarcou em Bagdá sem maiores cuidados. Logo depois, estava morto em um ataque certeiro disparado por drones americanos. O governo de Teerã prometeu vingança e “retaliação severa”.

O dia amanheceu com estresse nos mercados de moedas e petróleo, mas no meio da tarde todos os movimentos ficaram mais suaves.

— Quando o petróleo supera US$ 60 ou US$ 65, a oferta aumenta rapidamente. Por isso não acredito em pressão de alta acima desses níveis, acho que pode ter pressão de baixa, com aumento de ofertas. Foi anunciada, há pouco mais de um mês, uma descoberta gigantesca de reservas de petróleo no Irã. Se for confirmada e se a situação se acalmar, a tendência será de queda dos preços. Para o setor de petróleo no Brasil, nada muda, porque o custo de produção do pré-sal está bem abaixo disso, em torno de US$ 20 e sempre caindo — diz Pio Borges.

Um efeito no país pode ser o aumento de preços dos combustíveis, principalmente se houver fortalecimento do dólar. A política de preços da Petrobras será novamente posta à prova.

Essa é mais uma crise, das muitas dos últimos tempos, como a do bombardeio das refinarias sauditas em Abqaiq e Khurais, atribuído ao Irã:

— Mesmo com todos os protestos dos sauditas na época do atentado, o governo de Riad não apresentou queixa formal contra o Irã na ONU. Esse sinal e o silêncio dos países de maioria sunita — o Irã é de maioria xiita — mostram que há preocupação com o agravamento da crise na região.

O problema hoje é o enfraquecimento da diplomacia e dos mecanismos de solução de conflitos, segundo análise feita por diplomatas no podcast jornalístico britânico The Globalist. O governo de Donald Trump age sempre de forma errática, e nunca se sabe ouvindo quem. As diplomacias profissionais vêm sendo postas de lado em vários países do mundo — China, Estados Unidos, Reino Unido, Brasil — e as instituições multilaterais estão sendo esvaziadas. Isso é mais grave do que qualquer evento isolado porque eleva a instabilidade global. Pio Borges concorda com a análise.

— Pode-se ver esse fenômeno (do afastamento dos profissionais da diplomacia) no episódio da malfadada conversa com o presidente da Ucrânia que está embasando o processo de impeachment. Embaixadores de carreira foram afastados com interferência do advogado de Trump, Rudolph Giuliani. Há subsecretarias do Departamento de Estado vagas. Entre 10 a 20 cargos de segundo escalão não foram preenchidos — diz Pio.

Em momentos como o de ontem, após um ato bélico inesperado do presidente americano e sem autorização do Congresso, deveria haver uma coordenação entre os Departamentos de Defesa e de Estado:

— A diplomacia é tão importante quanto a estratégia da defesa. Essas decisões erráticas do presidente Trump não demonstram haver uma ação organizada. Além disso, o multilateralismo está em crise. É até irônico o fato de que, no comércio, a China, que teve tanta dificuldade de ser aprovada na OMC, seja hoje a grande defensora da organização multilateral.

Isso eleva o grau de risco no mundo hoje. A política internacional tem sido feita pelos presidentes com os círculos de assessores próximos, não há coordenação entre agências governamentais e o multilateralismo está sob ataque. O mundo está ficando sem instâncias de moderação para deter a escalada de qualquer conflito.

A morte do general iraniano não leva à disparada do petróleo, o maior risco é o da falta de instâncias de solução de conflitos.

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