- Valor Econômico
Impasse estatístico imobiliza e leva o país ao confronto
Em 11 de outubro de 2013, poucos meses após as manifestações de rua que sacudiram o país, o Datafolha foi a campo para mapear o perfil ideológico dos brasileiros. Naquele momento, 29% dos entrevistados consideravam que possuir uma arma deveria ser um direito de todo cidadão para se defender da violência e 46% acreditavam que a pena de morte seria a melhor punição para indivíduos que cometessem crimes graves.
O mesmo levantamento ainda indicava que 33% associavam a pobreza à preguiça de quem não queria trabalhar. E 26% defendiam que a homossexualidade deveria ser desencorajada por toda a sociedade.
Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 porque soube como ninguém captar o sentimento da maioria do eleitorado quanto à corrupção revelada pela Lava-Jato, à enorme recessão de 2015/2016 e aos temores gerados por um eventual retorno do PT ao poder.
O que muita gente esquece de levar em conta - ou teima em não reconhecer - é que a chegada do ex-capitão ao Palácio do Planalto foi a vitória, sobretudo, de uma parcela de 25% a 30% da população que comunga plenamente com sua visão conservadora e autoritária - um contingente expressivo de pessoas que defendem o uso da força militar para manter a ordem, prega a defesa da “moral e dos bons costumes” e é contrária às políticas de proteção social e redistribuição de renda.
Decorrido um terço de seu mandato, Bolsonaro perdeu o apoio de boa parte dos 57,8 milhões de eleitores que o elegeram em novembro de 2018 - seja porque não entregou o crescimento econômico espetacular prometido por Paulo Guedes, pela saída de Sergio Moro acusando-o de interferir na Polícia Federal em favor dos filhos ou ainda pela sua flagrante incapacidade de gestão em meio à grave crise do coronavírus. Se um mês após a posse 40% dos brasileiros consideravam seu governo ótimo ou bom, a última pesquisa realizada pela XP/Ipespe revelou que sua aprovação minguou para o patamar de 26%.
Em 13 de março de 2017, praticamente 18 meses antes de ser eleito presidente da República, Jair Bolsonaro deu uma entrevista à “Folha de S.Paulo”. Naquela ocasião, o então deputado afirmou duas vezes que iria indicar militares para metade dos cargos nos ministérios. E ao ser questionado sobre os processos que respondia por incitação ao crime de estupro e injúria, declarou: “Não é a imprensa nem o Supremo que vão falar o que é limite para mim”.
Da mesma forma que o presidente não mudou sua concepção sobre a democracia desde que foi investido no cargo mais importante do país, existe um eleitorado-raiz que continua firme e forte defendendo o presidente. Independentemente do contexto, entre 20% e 30% dos brasileiros concordam com a conduta de Bolsonaro, seja no que diz respeito à sua atuação no combate ao coronavírus (20% a consideram ótima ou boa), à avaliação do vídeo da reunião ministerial (30% de aprovação), à oferta de cargos ao Centrão (20% apoiam a guinada no discurso do presidente) ou à declaração de que “o povo armado não é escravizado” (24% concordam com a afirmação).
Nos últimos dias ganhou força nas redes sociais a hashtag #somos70porcento, tentando mobilizar a população contra o governo sob o argumento de que a maioria (resultante da soma dos percentuais que avaliam a atual gestão como regular, ruim ou péssima na maioria das pesquisas) discordam das principais políticas conduzidas por Bolsonaro.
Durante o fim de semana, o recém-criado Movimento Estamos Juntos também se valeu da estatística para pressionar Bolsonaro. Seu manifesto, assinado por políticos, artistas e personalidades de diferentes posições ideológicas, afirma que “somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.
Com o acirramento da situação política e social, estamos paralisados por um impasse entre os 30% de bolsonaristas radicais e os 70% de rivais, críticos e insatisfeitos com sua administração.
De um lado, mesmo contando com a adesão das Forças Armadas e das suas milícias virtuais, Bolsonaro não dispõe de uma base social capaz de garantir sucesso incondicional numa eventual ruptura institucional, como ocorreu em 1964. Basta lembrar que, naquela época, o golpe militar contou com a contribuição ou a complacência de boa parte da imprensa, da classe política, do empresariado e da população em geral - situação que nem de longe se assemelha ao Brasil de 2020.
Da mesma forma, muito dificilmente os autoproclamados 70% de oposição conseguiriam apear o presidente do poder nas atuais condições. Em primeiro lugar, Bolsonaro, como qualquer outro político, jamais renunciaria ao poder tendo um apoio cego e irrestrito de 30% das pessoas. Também é pouco provável que o Congresso tenha disposição de levar até o fim um processo de impeachment com um presidente com essa base de sustentação: só para se ter uma ideia, Fernando Collor e Dilma Rousseff foram processados quando suas aprovações tinham se esvaído para o nível de 10%. Por fim, um processo de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no Tribunal Superior Eleitoral como decorrência do processo de “fake news” geraria uma forte resistência do 1/3 que aprova cada ato e declaração seus.
As manifestações e confrontos ocorridos no sábado e no domingo são um prenúncio do caminho sombrio que poderemos trilhar caso os extremos não sejam contidos. Com uma pandemia ainda fora de controle e tendo à frente uma recessão econômica sem paralelos em nossa história, os riscos de uma convulsão social se potencializam.
Com o país caminhando perigosamente à beira do precipício, as lideranças dos Poderes Legislativo e Judiciário, das Forças Armadas e da Procuradoria-Geral da República precisam ter equilíbrio para evitar que, em busca de emparedar ou garantir o poder a Bolsonaro, acabem empurrando o Brasil para a barbárie.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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