O mito da coragem como parteira de soluções políticas tem prosperado muito nesses tempos de isolamento social e não apenas no ambiente sombrio da extrema-direita. Entre nós, democratas - em especial quem se auto localiza como democrata à esquerda - muitas pessoas sentem-se “culpadas” por estarem “fazendo nada” numa hora tão dramática. Essa culpa - que não nos deixa perceber, de modo profundo, o isolamento como também um gesto de cooperação social - torna as pessoas mais inclinadas a ver como benigna e superior a atitude de quem expõe sua própria pessoa e as de seus concidadãos, incluindo familiares e amigos, a um vírus de potência letal, em nome de uma causa. O impulso, então, é o de atender a um chamado mobilizador, para fazer, na rua, a sua parte e não se sentir alienado, ainda que seu móvel pessoal não coincida com a causa de quem faz o chamado.
Esse impulso heroico faz democratas sinceros duvidarem da eficácia da prudência política. A justificativa racional para o ato imprudente é de que não resta alternativa diante da ineficácia do método político “convencional” (eu diria democrático), em seu necessário tempo lento. Vamos, então, fazer aquilo que os políticos, que têm o dever de fazer, não fizeram. Aquilo o que? Tirar Bolsonaro. Estamos certos, ou ao menos esperançosos, de que indo à rua agora, faremos isso?
Não, não estamos, ao menos a maioria das pessoas não delira. O que se espera é ficar em paz com a consciência e/ou obter reconhecimento social de que fez alguma coisa que está ao seu alcance, como cidadão ou cidadã. Cada caso é um caso, é óbvio, mas penso ser comum dar-se o oposto do que diz a justificativa do gesto corajoso. O juízo negativo sobre o tempo e o método da política é veraz. Mas ele é resultado, não causa, da força interna, de caráter ético-político, que pode nos levar à rua.
Quero argumentar contra a ida às ruas nesse momento, sem com isso desconhecer a legitimidade desse impulso humano, que é precioso para que a política não se reduza a cálculos utilitários. E quero argumentar contra a ida às ruas propondo a democratas que se sentem tomados por esse impulso que não virem as costas a um juízo sobre sua eficácia. Quando a convicção desconsidera a eficácia, a política se dissolve na ideologia. Age-se só por convicção, sem medir as consequências do ato, para si e os outros. Para se ir à rua em momento de pandemia é preciso ter mais que convicções. A ação precisa ser, além de digna, útil. Numa palavra, é preciso ter, também, objetivos. Eles precisam estar além do desejo de quem os traça para serem traduzidos em público. Compartilháveis e negociáveis para que gerem ação realmente coletiva. Sem isso, consciências individuais podem até ser aplacadas pela coragem. Mas a democracia acabará cedendo espaço a algum tipo de mito.
Antes de ter a ousadia de discutir a eficácia ou ineficácia dos atos programados para esse domingo, faço um convite a que se examine a eficácia ou ineficácia da conduta até aqui seguida pela maioria dos agentes políticos da democracia brasileira. Julgo-a, com simpatia, como uma conduta prudente. Tudo o que até agora foi possível construir, em termos de defesa civil, contra essa calamidade sanitária e contra as investidas autocráticas do Presidente da República, foi obra dessa prudência política de quem está à frente dos demais poderes da República e de estados federados.
Especialmente devemos esses instrumentos de defesa à firme atuação do Congresso Nacional, para a qual tem contribuído a liderança séria e discreta do Presidente da Câmara dos Deputados. Dali surgem, há meses, soluções legislativas para enfrentamento e mitigação das crises sanitária, econômica e social. E dali surgem também recusas seguidas a aceitar o confronto político que deseja o presidente e seu governo, cuja atitude de negação, irresponsabilidade e predação social perante as mesmas crises fornece um contraste gritante com a conduta do Congresso. Negando-se ao confronto nessa hora, o Congresso, como instituição, afirma sua própria pauta, a do país real que, diante das guerras particulares do presidente, sofre e não encontra outra representação política nacional, que não a do Poder Legislativo. Como mais um argumento em favor da sua eficácia, digo que, com essa atitude, o Congresso está atraindo o governo para o campo da política, o mais adverso ao Presidente. Quem não gostar da lentidão e tiver aversão à impureza desse campo, deve pensar duas vezes em trocá-lo pelo campo de batalha frontal que o adversário escolhe nessa hora de pandemia.
Concordo que não basta a atuação das lideranças democráticas presentes na elite política. É preciso também muita mobilização civil. E a vejo crescer, com energia diretamente proporcional à também crescente radicalização do presidente. Discrepâncias há entre democratas, assim como incompreensões e equívocos. Mas nada disso nega ou impede a concretização do rumo principal tomado pelo movimento, que é unir, cada vez mais, consciências cívicas a forças políticas. Já somos 70% e, se continuarmos nesse caminho, seremos mais. Nesse ponto não estou pessimista, porque tudo anda ao seu tempo. A hora da solução pode ainda não ter chegado, mas está, a cada dia, mais próxima. Estamos cada vez mais juntos e menos ocupados que antes com as divergências entre nós. Rodas de conversa, marchas virtuais, lives engajadas de artistas, jornalistas e outros especialistas, youtubers em atuação, tudo vai formando um caldo de cultura e energia democráticas. Os manifestos de conteúdo unitário levam tempo para ganhar cada vez mais assinaturas, mas avançam e não são uma lenta coisa em si mesma. Eles são termômetros e uma antecipação do “é da coisa” que estamos construindo, através desses movimentos todos.
Mas estou preocupado, porque o adversário está vivo e joga no ataque. A sabedoria ofensiva de Garrincha e a elegância sutil de Bobô não nos deixavam esquecer o papel dos beques adversários. As dos nossos atuais zagueiros no Legislativo, no Judiciário, na imprensa e na sociedade é não subestimar o do atacante demolidor. A agitação de rua é o meio privilegiado até aqui usado por Bolsonaro para lançar torpedos contra a democracia. Aí ele consegue, no atual momento, avançar mais que na esgrima que trava com as instituições. É preciso realismo para entender que está sendo assim; confiança na democracia para prever que não ficará assim; paciência e inteligência política para ser tranquilo e infalível como Bruce Lee.
Já estou aqui comparando a eficácia do asfalto com as de outros espaços em que a luta democrática se dá nesse momento. Posso ser interrompido por alguém que, com razão, me dirá que não posso falar da eficácia, ou não, de uma mobilização de rua que ainda não aconteceu, ou melhor, apenas começou no domingo passado. Afinal, o que impede que política convencional, participação cívica virtual e mobilização física de cidadãos combinem-se, em vez de se excluírem?
Evitarei qualquer adivinhação sobre isso e até espero, de coração, que meus meros presságios negativos com a ida às ruas sejam desmentidos pelos fatos. Se isso ocorrer tenham certeza de que comemorarei o meu erro. O que tenho feito em outros textos e farei aqui é prestar atenção em experiências vividas e em traços da experiência atual. Sinais de dois tipos, que merecem comparação cuidadosa.
Em 2013, as manifestações, até um certo momento, foram tão massivas que nenhuma marca se sobrepunha à sua marca geral, que era a da diversidade. Era possível distinguir, entre os manifestantes, por exemplo, quem usava e quem não usava a tática black bloc. Hoje tende a haver confusão visual, uma busca de homogeneidade que complica a distinção, posto que não é possível distinguir os trajes do luto pela perda de vidas negras, dos trajes característicos de black blocs. Talvez essa indistinção corresponda, em alguma medida, ao traço de união civil que a luta contra o racismo no mundo pode propiciar. Então, qual é o problema? Sem entrar aqui em considerações políticas ou éticas sobre o mérito da tática black bloc, não se pode perder de vista que o estigma existente sobre ela é ouro na mão de quem quer construir uma narrativa para confundir as manifestações com guerrilha urbana. Uma narrativa dessas tem chances de prosperar no instante em que algum tipo de violência irrompa e não faltarão agentes interessados em provocá-la.
Em 2013, apareceram também depredadores destituídos de compromisso com qualquer objetivo político. Os black blocs decerto não podem ser confundidos com eles. Os próprios manifestantes entendiam e se entendiam sobre isso e até tinham a cooperação da polícia para identificar e isolar os desordeiros e provocadores. É isso o que Boulos promete fazer domingo, além de distribuir máscaras. Acontece que agora há duas novidades absolutas e explosivas a desafiar essas prevenções relativamente tranquilizadoras: os provocadores da direita abundam e as polícias vêm tendo uma conduta suspeita, parecendo mesmo estarem infiltradas por milícias. A gravidade da situação requer que nos interroguemos se governadores e comandantes de PMs poderão, em abstrato, manter sob controle a cumplicidade clandestina de policiais e milicianos, uns e outros bem concretos.
Por fim, eu que adoro futebol, sou tricolor militante e assíduo frequentador de estádios, vejo o protagonismo de torcidas organizadas como ingrediente a mais de tensão negativa. Sei que quem promove os atos não são os comandos das torcidas, mas, por se colocarem como antifascistas e democratas, não deixam de partilhar o espírito geral que caracteriza esses corpos de torcedores, em geral, exaltados. São terreno poroso também a infiltrações da extrema-direita e a lógicas predatórias e mercenárias. Como diz uma amiga minha, cujo nome não estou autorizado a revelar, são um ambiente culturalmente marcado por um machismo territorialista. Por andar se exibindo com camisas de clubes, querendo se comunicar diretamente com as torcidas, Bolsonaro talvez receba agora, como cogita outro amigo meu, o troco por ter tentado concorrer num terreno de galos, que não domina.
Parece claro que a esquerda está dividida quanto a associar-se a essa convocação. O PSOL embarcou e Guilherme Boulos anuncia que também lá estará a Frente Brasil sem Medo. O PSB emitiu uma nota em que se posiciona, claramente, em sentido oposto. O PT não emite mensagem clara. Sua bancada no Senado assinou uma nota conjunta com toda a oposição, desaconselhando participação nos atos.
Imagino que os governadores do partido e de toda a esquerda também não gostem da ideia, mas a militância está atiçada em direção ao movimento, certamente animada pelas recentes declarações de Lula e de Gleisi Hoffmann, pondo-se na contramão da convergência que cresce entre as forças de oposição. Quanto ao PC do B, salvo engano, ainda não falou. Espero que o faça em linha com Flavio Dino.
Pois bem, uma parte da esquerda embarca ou flerta com a "masculinidade tóxica" de achar que pode fazer o que a política conciliadora não pode ou, supostamente, não quer. E tempera essa atitude com uma gramática de agitação política que a traduz como coragem. Essa é a nitroglicerina que mais temo no domingo. Com o temor próprio de quem pensa nas sequelas equivalentes que a covardia e a temeridade podem deixar na democracia.
Desde ontem estou em corpo a corpo virtual com alunos, tentando que fiquem longe disso e se mobilizem noutra direção, sugerindo também que tentem fazer o mesmo com seus colegas. Apesar de não pessimista no atacado, sinto-me, nesse varejo tenso, como se fosse preciso fazer algo que lembra a lista de Schindler. A analogia é pretensiosa, mas acalma.
* Cientista político e professor da UFBa.
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