sexta-feira, 10 de julho de 2020

Martin Wolf - O que as guerras comerciais nos contam

Financial Times | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

“A guerra no comércio exterior é frequentemente apresentada como guerra entre países. Não é: é conflito principalmente entre banqueiros e donos de ativos financeiros, de um lado, e consumidores comuns, do outro - entre os muito ricos e todos os demais.”

A ideia resume bem “Trade Wars Are Class Wars”. Seus autores, Matthew Klein e Michael Pettis, argumentam que os desdobramentos que estão sendo vistos no comércio exterior e nas finanças só podem ser compreendidos no contexto das patologias domésticas das principais economias. O resultado são graves desequilíbrios internacionais, dívidas insustentáveis e crises financeiras monstruosas.

É um enredo que importa a todos. As fundações desse excelente livro estão na teoria do “subconsumo”, proposta em 1902 pelo analista britânico John Hobson e retomada nos anos 1930 no trabalho de John Maynard Keynes. Agora, mais uma vez, volta a ser relevante.

“Por décadas, os custos de captação reais têm ficado abaixo das previsões de crescimento econômico real de longo prazo e permanecem em torno de zero”, destacam. Essa combinação de taxas de juros muito baixas com fraqueza na demanda mundial e baixa inflação é um sintoma cabal de subconsumo ou, no palavreado moderno, de “excesso de poupança”. A explicação dada por Klein, comentarista do semanário “Barron’s”, e Pettis, professor da Universidade de Pequim, é que há um movimento de maior transferência de renda para as pessoas mais ricas, que não gastam o que ganham. Esse é o quadro geral. Mas é o relacionamento entre as economias nacionais que produz esse quadro geral.

O ponto crucial é que não se pode analisar o que vem acontecendo nas economias isoladamente. Além disso, o balanço geral de bens e serviços é explicado por poupança, investimento e fluxos de capital, não pela balança comercial bilateral, como pensa Donald Trump.
Some-se a isso também, como argumentam Klein e Pettis, o fato de que “desequilíbrios financeiros agora determinam desequilíbrios comerciais”. Para ajustar-se aos déficits estruturais resultantes, a oferta doméstica de bens e serviços comercializáveis em países deficitários, como os EUA, precisa ser espremida. Os efeitos cruéis disso sobre a classe trabalhadora industrial estão bem exemplificados em outro importante livro recente, “Deaths of Despair and the Future of Capitalism” (de Anne Case e Angus Deaton).

“Trade Wars Are Class Wars” apresenta essas ideias nos primeiros capítulos, que discutem a história do comércio exterior, o papel da liberalização das finanças na criação de fluxos de capital insustentáveis e como a poupança, os investimentos e os “desequilíbrios” externos interagem. O cerne do livro, porém, é a análise da história da China, Alemanha e dos EUA nos últimos 30 anos. O sucesso econômico da China foi resultado de versão extrema do que os autores chamam de modelo de desenvolvimento da “alta poupança”, somado a uma exploração das oportunidades comerciais, na qual o Japão foi pioneiro. Portanto, desde início dos anos 1990 e particularmente depois do ano 2000, houve declínio acentuado na proporção do consumo doméstico no PIB da China.

“Em 2018, as famílias chinesas ainda consumiam menos de 40% da produção chinesa - proporção inferior à de qualquer outra grande economia no mundo”, escrevem. Isso se deve a uma série de mecanismos (alta poupança dos consumidores, baixas taxas de juros, falta de direitos dos migrantes rurais nas cidades, tributação regressiva, redes de segurança social frágeis e o fato de as estatais não pagarem dividendos) criados para transferir renda dos trabalhadores e dos aposentados para as empresas e o Estado.

A poupança bruta nacional atingiu o pico de quase 50% do PIB. Até a crise financeira mundial, essa poupança entrava no investimento doméstico e no superávit em conta corrente. Depois da crise, o declínio no superávit da conta corrente - a balança comercial de bens e de todos os serviços - foi neutralizado por novo aumento imenso nos investimentos alimentados por crédito, que chegaram a quase metade do PIB. O aumento no investimento foi financiado por enorme onda de crescimento na concessão de créditos.

Hoje, a proporção do consumo das famílias no PIB é pouco maior, mas ainda é notavelmente baixa para os padrões internacionais. A China está presa a três opções: investimentos ineficazes alimentados por crédito, superávits externos enormes ou gigantescas transferências de renda das mãos da elite para as das pessoas comuns.

Agora vejamos a Alemanha. Desde o fim da onda de expansão pós-reunificação nos anos 90 e da liberalização do mercado de trabalho nos anos 2000, os lucros das empresas têm sido altos e os investimentos domésticos das empresas, baixos. Mais notavelmente, o consumo “alemão não cresceu nada entre 2001 e 2005”. Os gastos domésticos ficaram bem abaixo da renda alimentada pelo comércio exterior. O governo alemão também exibia, até a covid-19, orçamento bem enxuto. Como resultado, surgiu um superávit em conta corrente gigante e persistente ou, em outras palavras, um excesso de poupança.

Até 2008, o excesso de poupança da Alemanha e de países menores (como a Holanda) foram contrabalanceados por surtos insustentáveis de gastos e crédito em países como Grécia, Irlanda e, acima de tudo, Espanha. A crise financeira mundial acabou com isso. Desde então, toda a região do euro passou a um estado de superávit em conta corrente que foi mundialmente desestabilizador, em tentativa nociva de transformar o bloco, a segunda maior economia do mundo, em uma Alemanha tamanho-família, em meio a um excesso global de poupança.

Que vantagens os alemães conseguiram com seu enorme excesso de poupança? Consideravelmente poucas. “Os alemães, que foram ávidos exportadores de capital financeiro nos últimos 20 anos, são quase exclusivamente ruins em investir no exterior”, escrevem os autores.

“Desde o início de 1999, o setor privado alemão, coletivamente, gastou pouco mais de €5,1 trilhões comprando ativos em outros países. Ao longo do mesmo período, contudo, o total desses ativos cresceu apenas € 4,8 trilhões.”

Por quase 20 anos, compras insensatas de hipotecas subprime americanas e de títulos de dívida do governo grego resultaram em perda de valor de 7%. Essa é uma forma infrutífera de frugalidade. Para que alguns países tenham excesso de poupança, outros precisam estar na ponta oposta. 

Ocasionalmente, os fluxos de capital geraram grandes déficits em países emergentes ou em países de alta renda mais frágeis, como a Espanha. Mas o país com déficit mais alto e mais persistente é os EUA. A oferta e demanda mundiais são balanceadas lá, principalmente pelo Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA), que na prática é o banco central do mundo.

Isso não é tarefa fácil, particularmente porque os EUA, também, tiveram maior transferência de renda para os que são grandes poupadores. Com o déficit em conta corrente em grande medida possibilitado pela demanda externa por ativos seguros dos EUA, há contraparte na forma de excesso de demanda doméstica que vem de duas fontes: bolhas financeiras e déficit federal.

Houve a bolha do mercado acionário dos anos 1990 e, novamente, a bolha imobiliária dos anos 2000; o déficit federal emergiu depois de as duas bolhas estourarem e, mais recentemente, com Trump. A bolha imobiliária foi particularmente fascinante, não apenas por seu fim desastroso, mas pela forma como Wall Street gerou, por alquimia, esses ativos seguros em dólar que o mundo tanto queria: a conversão de financiamentos imobiliários de má qualidade em ativos classificados com rating “AAA”.

Como destacam Klein e Pettis: “A pouca disposição do resto do mundo em gastar - que, por sua vez, se deve às guerras de classe em economias superavitárias importantes e ao desejo de autosseguro depois da crise asiática - foi a causa subjacente tanto da bolha das dívidas dos EUA quanto da desindustrialização dos EUA”.

Mais notavelmente: “Bancos centrais estrangeiros e outros gestores de reservas gastaram cerca de US$ 4,1 trilhões em ativos em dólar entre o início de 1998 e meados de 2008”.

Na prática, o excesso de poupança de vários países impulsionou gigantesca entrada líquida de capital nos EUA, que resultou em déficit comercial imenso e na perda de empregos industriais no coração dos EUA. Foi a conta de capital que importou. A balança comercial foi subproduto. O papel dos EUA como fornecedor dos ativos mais seguros e líquidos do mundo é vital. Estamos tentando operar uma economia global com dinheiro nacional. Há muito se sabe que isso é problemático. Não deixou de ser depois da mudança para as taxas de câmbio flutuantes. Se estrangeiros quiserem ter ativos líquidos americanos em amplos volumes, os EUA precisam ter altos déficits externos, a menos que o setor privado queira se carregar com volume correspondente de ativos estrangeiros de maior risco.

Qualquer política econômica começa a partir de análise clara. Os desequilíbrios que causaram a crise da região do euro, o crescimento explosivo do endividamento nos EUA e na periferia da Europa e na China pós-crise financeira remontam a dois erros básicos: a transferência de renda da maior parte da população para as elites mais ricas e o papel global singular do dólar.

A solução óbvia para o primeiro erro é distribuir a renda a pessoas que a gastem sem precisar incorrer mais em dívidas. Na região do euro, isso provavelmente exigiria a criação de autoridade fiscal central, com capacidade para redistribuir os recursos. Na Alemanha, isso exigiria aumento nos gastos do governo em bem-estar social e em investimentos. Na China, isso exigiria a reforma dos direitos de propriedade, a ampliação dos direitos dos migrantes em áreas urbanas, melhor rede de segurança social, a capacidade de organização dos trabalhadores e mudança na tributação dos mais ricos.

Quanto ao papel do dólar, devemos nos lembrar que o próprio Keynes recomendou a criação de uma moeda global em Bretton Woods, em 1944. Isso pode nunca acontecer. Mas está claro que ter uma economia integrada globalmente com uma moeda nacional cria problemas insolúveis.

Não deveríamos nos surpreender quando eles emergem uma e outra vez. Na verdade, não deveríamos nem nos surpreender se eles acabarem destruindo a economia mundial aberta.

Se não reconhecermos e reagirmos a esses problemas, podemos nos ver atolados persistentemente em um mundo de desequilíbrios e guerras de comércio exterior. Não é um bom lugar onde se estar. Deveríamos fugir disso. (Tradução de Sabino Ahumada)

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