sexta-feira, 10 de julho de 2020

José de Souza Martins* - Autoritarismo oportunista


- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Direitismo e fascismo não são apenas opção eleitoral pela direita, mas também disposição para transgredir normas como as normas sanitárias de resistência à pandemia

Sempre que há no país um “surto” de autoritarismo, como no Estado Novo, na ditadura de 1964 ou no regime bolsonarista, nossa reação tem sido a de buscar para ele explicação em traços, supostamente excepcionais, de personalidade de quem chega ao poder em nome da vocação autoritária. Como se fosse mero defeito de caráter do governante, que impõe ao povo, tido como manso e democrático, sua vontade pessoal.

A personalidade autoritária é um fenômeno social e duradouro porque sobrevive e até se robustece nos períodos democráticos da história social. Os direitos sociais e políticos são tratados pelos oportunistas do autoritarismo como brechas de penetração na organização do Estado para subvertê-la. E revogá-los. Está acontecendo agora.

Historicamente, devemos essa nossa característica à escravidão e aos regimes de trabalho teoricamente livre, mas opressivo, que os sucederam. A opressão escravista criou entre nós estruturas peculiares de personalidade básica, de prontidão autoritária, tanto no mando quanto na sujeição. O que em outros países foi ou tem sido objeto de estudos preventivos de antropólogos, psicólogos e sociólogos. Aqui não.

São vários os fatores sociais e históricos que formam e consolidam personalidades que abrigam a disposição para a opção autoritária nas circunstâncias de crise e ruptura sociais. É quando as normas perdem a eficácia e a situação anômala se expressa nos medos e desafios da anomia.

A crise decorrente das transformações na organização e nas metas da economia, inspiradas no neoliberalismo econômico herdado da ditadura, ao desorganizar as bases de referência e estabilidade da sociedade, criou uma situação de incerteza social que desafia cada um a reagir com o que lhe indica sua visão de mundo que tem. E o que tem é o que sobrou na personalidade básica profunda. Sobretudo a dos setores mais consumistas da classe média.

Direitismo e fascismo não são apenas opção eleitoral pela direita, mas também disposição para transgredir normas como as normas sanitárias de resistência à pandemia, como se viu nestes dias no Rio de Janeiro e em outros lugares. É o egoísmo antissocial e a opção individualista por viver apenas o agora, mesmo que isso ponha em risco vidas alheias, especialmente a dos que cuidam da saúde e da vida dos enfermos.

Essa insegurança tem sido no Brasil a matéria-prima de que se valem os aventureiros para a tomada do poder, ainda que sob formas mal disfarçadas como a de agora. Podem organizar e pôr em funcionamento uma eficiente máquina de produção e manipulação da intolerância, por meio da qual o autoritarismo se concretiza como poder e política de Estado. Só que dotado de recursos econômicos e técnicos de acobertamento.

Indícios fortes de um poder paralelo. É o que viabiliza manter a eficácia da manipulação do pensamento e da conduta, ocultados nos interstícios e nas rebarbas do poder, e nos traz ao regime de minorias obscurantistas de agora.

Não nos dedicamos a estudar persistências e fenômenos como esse. Os progressistas deste país têm certezas demais e dúvidas de menos, mesmo em face da realidade adversa. Desconhecem o engendramento recíproco e oposto dos fatores da história.

Não cuidamos de interpretar os muitos sinais dos riscos de autoritarismo, como fizeram nos EUA os pesquisadores, sobretudo alemães, do Instituto de Pesquisa Social.

Em 1950, Theodor Adorno (1903-1969) e colaboradores publicaram, nos EUA, os dois robustos volumes do livro “The Authoritarian Personality” (A Personalidade Autoritária), resultados de uma pesquisa multidisciplinar sobre os fatores do autoritarismo e das tendências fascistas na personalidade dos americanos.

Muito concretamente os americanos nunca foram os paladinos da democracia, a não ser na parcela relativamente minoritária de sua população mais identificada com os valores da tradição democrática e igualitária. O estudo de Adorno e colaboradores permitiu definir os focos concretos de ameaça à democracia e a seus valores. Eram os anos da intolerância macarthista e sectária.

Mesmo assim, no Brasil nunca nos interessamos, propriamente, por esse tema, embora este seja um país notoriamente autoritário. Nossa visão do autoritarismo e da escravidão que aqui lhe deu origem é limitante e restritiva.

Aqui o autoritarismo é, no mínimo o de mandar nos outros, fazer-se obedecer, minimizar os demais, considerá-los inferiores e limitados.

Diferentemente de outros países, em que a diferença social vem da competência, aqui, para muitos, vem de alguma modalidade de poder. De modo que dá lugar à prepotência da ignorância e ao fascismo do poder ignorante. Gera, aqui, a oportunidade da compensação para os desprovidos de outros canais de afirmação e de ascensão social.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de " O Cativeiro da Terra" (Contexto).

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