- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Hoje o menor não pode trabalhar antes dos 16 anos. Mas pode trabalhar como aprendiz a partir dos 14 anos. Tudo na mesma. Mudaram para manter
Há dias, o presidente da República voltou a defender o trabalho
infantil com argumentos simplórios que revelam grave desconhecimento da
realidade social do país. Sobretudo do que é, propriamente, infância e adolescência,
e maior desconhecimento, ainda, do que a ciência tem a dizer contra aquilo que,
nessa questão, ele defende, aprova e recomenda.
O
“papo”, para ficar na linguagem própria da circunstância do pronunciamento
presidencial, ocorreu em encontro promovido por uma associação de bares e
restaurantes, em Brasília. Segundo “O Estado de S. Paulo”, estiveram presentes
“donos de botequim”. Na verdade, não era o público mais recomendável e mais
indicado para ouvir e aplaudir a defesa de uma prática que põe em risco a saúde
moral e a formação de imaturos indefesos.
O
presidente alega e defende o trabalho infantil que ele fazia: trabalhava num
botequim de 4 a 5 horas por dia, quando havia pouca gente, antes que chegasse a
“galera que gosta de uma birita”. Passava, pois, mais tempo sendo socializado
por frequentadores de boteco do que por professores da escola. Aliás, já na
época, a legislação trabalhista previa a possibilidade do trabalho do menor, a
partir dos 14 anos de idade, como aprendiz. Mas, num botequim, aprendiz de quê?
Jair Messias, em quase tudo que indevidamente faz de transgressivo como
presidente, revela a influência que em sua socialização secundária pode ter
tido a cultura de botequim. São deformações e insuficiências que ficam para
sempre, no senso comum tosco e na visão de mundo pobre e distorcida que dela se
dissemina. O que ficou dolorosamente evidente na deplorável reunião ministerial
de 22 de abril.
Ele
atrai gente que vê o mundo como ele o vê. A socialização imprópria, no boteco
de Sete Barras, por meio dele, criou uma concepção de poder no Brasil.
Ele
não vê os estigmas que em sua personalidade ficaram em decorrência da
familiaridade precoce com o que há de pior no mundo adulto, que ao prejudicá-lo
nos prejudica a todos. Um exemplo é a conduta transgressiva que adotou em
relação à pandemia. Ele se firma na transgressão.
Seu
raciocínio binário reflete as enormes limitações dessa cultura de balcão, de um
lado de lá e um lado de cá. Para ele, o menor que não está trabalhando está
fumando “um paralelepípedo de crack”, afirmou. Ou seja, para o brasileiro menor
de idade só há duas alternativas: trabalhar ou fumar crack.
Existe,
porém, a alternativa da lei: a educação, a escola, o direito ao estudo e à
formação profissional. É só o governo cumprir a lei.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente não proíbe o trabalho do menor. Apenas
estabelece algumas precárias restrições a ele. No que disse, o presidente da
República quer uma legislação mais permissiva e transgressiva em relação às
restrições ao trabalho moralmente arriscado à formação do caráter do menor. É a
interpretação possível do que disse.
Nos
tempos de Vargas, o salário do menor, metade do salário do adulto pelo mesmo
trabalho, supostamente correspondia a um período compulsório de aprendizado até
que chegasse aos 18 anos de idade e à maioridade. Era uma forma de baratear o
trabalho, mas não necessariamente de educar. Os pais diziam que seus filhos
estavam aprendendo um ofício.
O Estatuto da Criança e do Adolescente não resolveu essa injustiça. Criou-lhe
um novo álibi. Hoje o menor não pode trabalhar antes dos 16 anos. Mas pode
trabalhar como aprendiz a partir dos 14 anos. Tudo na mesma. Mudaram para
manter.
Na
verdade, os despistamentos do governo nesse assunto cai no agrado da população,
cúmplice da injustiça laboral. A valorização do trabalho da criança é tradição
muito forte na classe trabalhadora. Proibir o trabalho infantil parece aos
pais, de fato, estímulo à deseducação da vagabundagem e dos riscos que a rua
representa na socialização das novas gerações.
Os
que quiseram proibir o trabalho infantil para proteger a criança não cuidaram
devidamente da contrapartida, os direitos da criança, o que colocar no lugar do
trabalho proibido, que seja ao mesmo tempo remunerador e educativo. Sabemos contra
o que somos, mas não sabemos a favor do que somos e de como viabilizá-lo. Qual
a moral que temos para combater ditos e decisões irracionais do governante?
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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