sexta-feira, 18 de setembro de 2020

José de Souza Martins* - Trabalho degradante na infância

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Hoje o menor não pode trabalhar antes dos 16 anos. Mas pode trabalhar como aprendiz a partir dos 14 anos. Tudo na mesma. Mudaram para manter

Há dias, o presidente da República voltou a defender o trabalho infantil com argumentos simplórios que revelam grave desconhecimento da realidade social do país. Sobretudo do que é, propriamente, infância e adolescência, e maior desconhecimento, ainda, do que a ciência tem a dizer contra aquilo que, nessa questão, ele defende, aprova e recomenda.

O “papo”, para ficar na linguagem própria da circunstância do pronunciamento presidencial, ocorreu em encontro promovido por uma associação de bares e restaurantes, em Brasília. Segundo “O Estado de S. Paulo”, estiveram presentes “donos de botequim”. Na verdade, não era o público mais recomendável e mais indicado para ouvir e aplaudir a defesa de uma prática que põe em risco a saúde moral e a formação de imaturos indefesos.

Sou autoridade no assunto. Quando terminei o curso primário na periferia de São Paulo, na roça, minha família voltou para o subúrbio operário. Aos 11 anos de idade eu já estava trabalhando numa fabriqueta clandestina, de fundo de quintal, em trabalho perigoso e insalubre. Oito horas de trabalho por dia, seis dias por semana. Cem cruzeiros por mês de salário. Apenas um sexto do salário-mínimo obrigatório para o menor de idade, na época.

O presidente alega e defende o trabalho infantil que ele fazia: trabalhava num botequim de 4 a 5 horas por dia, quando havia pouca gente, antes que chegasse a “galera que gosta de uma birita”. Passava, pois, mais tempo sendo socializado por frequentadores de boteco do que por professores da escola. Aliás, já na época, a legislação trabalhista previa a possibilidade do trabalho do menor, a partir dos 14 anos de idade, como aprendiz. Mas, num botequim, aprendiz de quê?

Jair Messias, em quase tudo que indevidamente faz de transgressivo como presidente, revela a influência que em sua socialização secundária pode ter tido a cultura de botequim. São deformações e insuficiências que ficam para sempre, no senso comum tosco e na visão de mundo pobre e distorcida que dela se dissemina. O que ficou dolorosamente evidente na deplorável reunião ministerial de 22 de abril.

Ele atrai gente que vê o mundo como ele o vê. A socialização imprópria, no boteco de Sete Barras, por meio dele, criou uma concepção de poder no Brasil.

Ele não vê os estigmas que em sua personalidade ficaram em decorrência da familiaridade precoce com o que há de pior no mundo adulto, que ao prejudicá-lo nos prejudica a todos. Um exemplo é a conduta transgressiva que adotou em relação à pandemia. Ele se firma na transgressão.

Seu raciocínio binário reflete as enormes limitações dessa cultura de balcão, de um lado de lá e um lado de cá. Para ele, o menor que não está trabalhando está fumando “um paralelepípedo de crack”, afirmou. Ou seja, para o brasileiro menor de idade só há duas alternativas: trabalhar ou fumar crack.

Existe, porém, a alternativa da lei: a educação, a escola, o direito ao estudo e à formação profissional. É só o governo cumprir a lei.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não proíbe o trabalho do menor. Apenas estabelece algumas precárias restrições a ele. No que disse, o presidente da República quer uma legislação mais permissiva e transgressiva em relação às restrições ao trabalho moralmente arriscado à formação do caráter do menor. É a interpretação possível do que disse.

Nos tempos de Vargas, o salário do menor, metade do salário do adulto pelo mesmo trabalho, supostamente correspondia a um período compulsório de aprendizado até que chegasse aos 18 anos de idade e à maioridade. Era uma forma de baratear o trabalho, mas não necessariamente de educar. Os pais diziam que seus filhos estavam aprendendo um ofício.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não resolveu essa injustiça. Criou-lhe um novo álibi. Hoje o menor não pode trabalhar antes dos 16 anos. Mas pode trabalhar como aprendiz a partir dos 14 anos. Tudo na mesma. Mudaram para manter.

Na verdade, os despistamentos do governo nesse assunto cai no agrado da população, cúmplice da injustiça laboral. A valorização do trabalho da criança é tradição muito forte na classe trabalhadora. Proibir o trabalho infantil parece aos pais, de fato, estímulo à deseducação da vagabundagem e dos riscos que a rua representa na socialização das novas gerações.

Os que quiseram proibir o trabalho infantil para proteger a criança não cuidaram devidamente da contrapartida, os direitos da criança, o que colocar no lugar do trabalho proibido, que seja ao mesmo tempo remunerador e educativo. Sabemos contra o que somos, mas não sabemos a favor do que somos e de como viabilizá-lo. Qual a moral que temos para combater ditos e decisões irracionais do governante?

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê). 

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