- O Estado de S.Paulo
As gargalhadas diante do fogo no Pantanal revelam a pobreza da
mentalidade dominante
As
chamas ardem na Costa Oeste dos Estados Unidos e em dois importantes biomas
nacionais, Amazônia e Pantanal. Debates essenciais nascem desses incêndios. O
primeiro deles subiu para o topo da agenda na campanha para a presidência dos
EUA: o aquecimento global. Lá, como aqui, há os que aceitam as evidências
científicas e os que as negam.
Um
segundo debate decorre do próprio princípio de precaução. Se há realmente
mudanças climáticas, os incêndios serão mais intensos a cada ano. Logo, é
razoável nos preparamos melhor, em vez de sermos anualmente derrotados por
eles.
No
Pantanal já foram destruídos mais de 22 mil km2 de vegetação, uma área do
tamanho de Israel. Serpentes e jacarés carbonizados estão por toda parte, o
refúgio das araras azuis está ameaçado, chamas em Porto Jofre, onde se
concentra uma centena de onças-pintadas.
O
desastre neste ano é muitas vezes maior que o do ano passado, que tive a
oportunidade de documentar. Muito possivelmente, a julgar pelas notícias, a
maioria dos focos de incêndio foi provocada. Talvez por pessoas que sonham com
um Pantanal transformado apenas em pastagens e campos plantados. Ignoram a
riqueza que estão destruindo. São os mesmos que sonhavam em transformar a
região em grandes canaviais. Não percebem que ao destruir a vegetação arruínam
todo o ecossistema, os próprios peixes que se alimentam de pequenos frutos
tendem a desaparecer.
Essa
incompreensão básica está também no Palácio do Planalto. Bolsonaro sonha com
campos de soja, muito gado, o que na cabeça dele significa aumento da produção.
Deve ser por isso que todos riram no palácio quando uma jovem blogueira
perguntou pelo incêndio no Pantanal.
Bolsonaro
nega o aquecimento global. E pratica sua negação. As verbas para a prevenção de
incêndios caíram sistematicamente de 2018 para cá. As destinadas a brigadas,
que eram de R$ 23 milhões, foram reduzidas a R$ 9, 9 milhões.
Ele
caminha decisivamente na contramão das tendências climáticas. Acha que seu
voluntarismo pode afrontá-las com a mesma naturalidade com que muda as regras
de trânsito. Em ambos os casos colheremos mortes e destruição.
Cessado
o fogo, será difícil articular um projeto de replantio. Os bichos e a mata
atrapalham a produção. A ajuda internacional será vista como ameaça à soberania
nacional.
Apesar
do negacionismo de Trump, o horizonte no Brasil é mais sombrio. Bolsonaro
representa um tipo de pensamento que existe também em parte dos fazendeiros e
amplamente nas Forças Armadas. Esse tipo de pensamento relaciona destruição
ambiental com progresso. O próprio ministro Paulo Guedes disse que os
americanos tinham destruído suas florestas e acabado com índios.
É
o tipo de argumento clássico do pensamento dominante no governo brasileiro,
hoje uma estranha amálgama de generais do Exército e pastores evangélicos. Não
há outro caminho senão tentar convencê-los, antes que consigam destruir o País
na suposição de que fortalecem a soberania terrena e nos aproximam do reino dos
céus.
A
produtividade de agrofloresta é um exemplo na Amazônia. Os lucros da exploração
sustentável de açaí e castanha são outro. O potencial turístico do Pantanal, a
própria capacidade do bioma de atrair investimentos, tudo isso tem de ser
repetido à exaustão.
As
gargalhadas diante das chamas que devoram um bioma como o Pantanal revelam
apenas a distância entre a pobreza da mentalidade dominante e a riqueza de
nossos recursos naturais. A utopia de um mundo plantado de soja, subsolo
revolvido em busca de minérios, gado pastando na relva – tudo guardado por um
exército vigilante, que pinta de branco as poucas árvores que restam, é, na
verdade, um pesadelo. Seríamos uma nação que construiu com tenacidade um imenso
deserto, teríamos transformado o mundo no espelho do nosso universo mental.
Quem
acompanha o desastre do Pantanal desejaria que Bolsonaro tivesse uma ideia
mínima do que está acontecendo. Com um pouco de humildade, ele se arrependeria
de chamar as ONGs de um câncer que gostaria de extirpar. São as ONGs que se
põem em campo, salvando grande parte dos animais feridos, sem nenhuma estrutura
ou base financeira além da cooperação voluntária.
Quando
cobri um desastre na Galícia constatei que o próprio governo pôs à disposição
um pequeno hospital para as aves marinhas atingidas. Comparadas com a fauna do
Pantanal, as aves marinhas da Galícia são só um pequeno grupo.
Aqui,
no Brasil, o trabalho é feito pela sociedade. Não importam os insultos vindos
do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do
fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho
voluntário. E tudo isso nos alcança num momento de pandemia, em que a
capacidade de reação é limitada.
Ao
intenso ataque do vírus soma-se a fumaça que atinge as grandes cidades da
região. Restou-nos apenas a negação da dupla negação do governo: coronavírus e
aquecimento global. Em ambos os casos, resistimos. Mas é impossível deixar de
sonhar com um país em que governo e sociedade enfrentem juntos os desastres
naturais e sanitários. A vida seria menos difícil.
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