O filme vencedor
do Oscar desperta sentimentos contraditórios. Desalento e esperança. Tristeza e
otimismo. Solidão e amizade. Medo e coragem. Luto e cura. É muito mais
existencial do que político, embora critique o capitalismo selvagem. É sobre o
sentido da vida e da morte. Por isso mesmo, ao receber o prêmio de melhor
direção, a chinesa Zhao honrou os atores e atrizes, quase todos nômades reais,
que buscaram a estrada para superar perdas pessoais ou financeiras.
“Tenho pensado muito sobre como continuo a seguir quando as coisas ficam difíceis. Quando eu era criança na China, meu pai e eu costumávamos memorizar textos e poemas clássicos chineses e recitar juntos”, disse. “Eu me lembro de um que dizia: 'As pessoas, ao nascer, são boas'. Ainda acredito nisso. Sempre encontrei bondade nas pessoas que conheci. Em todos os lugares do mundo. Este Oscar é para qualquer pessoa que tem a coragem de se manter boa e ver o que há de bom nos outros.”
Uma fala tocante,
em tempos terríveis no mundo e no Brasil. Mas “Nomadland” tem esse efeito.
Provocar o melhor em humanos. Frances McDormand, protagonista e produtora do
filme, disse ter aprendido muito ao escutar pessoas que perderam tudo: “A maior
coisa que aprendi foi deixar a boca fechada e ouvir”. Frances está magnífica em
seus silêncios e expressões. Esquecemos que é atriz – e por isso ganhou o
Oscar. Torcemos por ela no filme como se fosse mais uma da tribo nômade, em
busca de si mesma e de acolhimento.
Frances
interpreta Fern, uma mulher sem filhos que perde o marido, o emprego e a casa
onde morava porque a fábrica fechou. ‘Empire’ vira uma cidade-fantasma. Fern
sai pelos Estados Unidos, numa van que chama de “Vanguard”, à procura de
empregos temporários e uma razão para continuar vivendo. Descobre outro mundo,
precário e pungente, mas povoado por afetos “down the road”, no caminho.
Amizades profundas, forjadas em confidências, solidariedade e despedidas,
temporárias ou não.
Quando uma
menina, ex-aluna, lhe pergunta num supermercado se agora ela é
"homeless" (sem lar), responde que é “houseless” (sem casa). “Não é a
mesma coisa”. O lar sobre rodas de Fern atravessa estações, paisagens inóspitas
e de tirar o fôlego. Neve, rochas, desertos, mar revolto, estacionamentos sem
fim, onde só a honestidade e a união salvam. Lojas da Amazon, lanchonetes,
banheiros públicos, feiras, indústrias, lugares transitórios para fazer algum
dinheiro e partir de novo. A fotografia de “Nomadland” hipnotiza, das sombras à
luz.
Nômades não são
apenas quem deseja superar uma demissão ou um luto. Viver sobre rodas pode ser,
na Europa e nos EUA, um estilo de vida de quem busca aventura ou liberdade. Há
quem decida viajar por um tempo em motor homes, sem amarras. Em 1980, quando
vivia com meu companheiro na Inglaterra, compramos um trailer de segunda mão
num camping em Agadir, no Marrocos, e viajamos por muitos meses na Europa. O
que precisávamos cabia ali dentro. Portugal, Espanha, França, Itália, Grécia, a
então Iugoslávia, a então Tchecoslováquia, Áustria, as Alemanhas ainda
separadas pelo Muro de Berlim.
Ouvimos histórias bonitas e dolorosas de amigos efêmeros “down the road”. Há uma confiança que se constrói rápido entre desconhecidos na jornada. Aprendemos ao viajar. Colocamos a vida em perspectiva. “Nomadland” se baseou em livro-reportagem de Jessica Bruder, que abre com uma citação útil para tempos sombrios. “Há uma rachadura em todas as coisas. É assim que a luz entra”. Que venha a luz.
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