sexta-feira, 30 de abril de 2021

Poesia | Joaquim Cardozo - Recife Morto

Recife. Pontes e canais.
Alvarengas, açúcar, água rude, água negra.
Torres da tradição desvairadas, aflitas,
Apontam para o abismo negro-azul das estrelas.
Pátio do Paraíso. Praça de São Pedro.
Lages carcomidas, decrépitas calçadas.
Falam baixo na pedra as vozes da alma antiga.
Gotas de som sobre a cidade,
Gritos de metal
Que o silêncio da treva condensa em harmonia.
As horas caem dos relógios do Diário,
Da Faculdade de Direito e do Convento de São Francisco:
Duas, três, quatro... a alvorada se anuncia.
Agora ao ouvir as horas que as torres apregoam
Vou navegando o mar de sombra das vielas
E o meu olhar penetra o reflexo, o prodígio,
A humilde proteção dos telhados sombrios,
O equilíbrio burguês dos postes e dos mastros,
A ironia curiosa das sacadas.
As janelas das velhas casas negras,
Bocas abertas desdentadas, dizem versos
Para a mudez imbecil dos espaços imóveis.
Vagam fantasmas pelas velhas ruas
Ao passo que em falsete a voz fina do vento
Faz rir os cartazes.
Asas imponderáveis, úmidos véus enormes.
Figuras amplas dilatadas no tempo,
Vultos brancos de aparições estranhas.
Vindos do mar, do céu... sonhos!... evocações!...
A invasão! Caravelas no horizonte!
Holandeses! Vryburg!
Motins. Procissões. Ruído de soldados em marcha.

Os andaimes parecem patíbulos erguidos.

Vão pela noite na alva do suplício
Os mártires
Dos grandes sonhos lapidados.

Duendes!
Manhã vindoura. No ar prenúncio dos sinos.
Recife,
Ao clamor desta hora noturna e mágica,
Vejo-te morto, mutilado, grande,
Pregado à cruz das novas avenidas.
E as mãos longas e verdes
Da madrugada
Te acariciam.

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