sexta-feira, 30 de abril de 2021

José de Souza Martins* - Pelo verde, um discurso amarelo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O governo Bolsonaro não percebeu que a cúpula do clima já é episódio decisivo da nova geopolítica que reordena o mapa do mundo

O discurso que o presidente Bolsonaro fez na cúpula sobre o clima, convocada pelo presidente americano, Joe Biden, não foi um discurso autoexplicativo. É desmentido por tudo o que o governo é, faz e deixa de fazer em relação à questão ambiental e aos problemas sociais nela contidos.

O problema é saber quem manda na Amazônia e, portanto, quem vai decidir o que fazer com ela. As anomalias relativas à questão ambiental têm raízes profundas e são persistentes. Têm sua base no direito fundiário brasileiro, que nasceu com a Lei de Terras de 1850, e no modo e no formato de sua origem.

Com ela, instituiu-se a propriedade absoluta da terra, que, artificialmente, tornou-se equivalente do que era o escravo como garantia de empréstimos hipotecários aos fazendeiros. Com essa lei, o Estado abriu mão do domínio sobre o território e, portanto, da imposição de limites e limitações ao uso da terra e ao que nela havia, rios e florestas. O oposto do que fora o regime de sesmarias da época colonial.

Só aos poucos, na República, medidas do Estado brasileiro foram lenta e progressivamente tomadas para atenuar e corrigir a propriedade abusiva. Com a Lei de Águas, o subsolo retornou à tutela do Estado. As margens dos rios também. Com o tempo, as áreas indígenas passaram a ser protegidas pelo Estado, reconhecimento de um direito ancestral dos nativos, tradicionais zeladores da natureza.

Os bens históricos foram alcançados por limitações decorrentes de tombamentos em defesa da memória social que representam.

Finalmente, já na ditadura militar, o direito de propriedade foi restringido à regulação do uso da terra. O latifúndio por extensão e por exploração, por descumprirem a função social da propriedade, ficaram sujeitos à desapropriação para fins de reforma agrária.

Se essas medidas atenuaram muitos problemas decorrentes do uso arbitrário da propriedade, os abusos continuaram a existir na extensa parte do território ocupada indevida e irregularmente por invasores de terras e usurpadores de direitos. Há alguns anos, levantamento oficial indicou que eram dezenas de milhões de hectares de terras fora da lei, as de cadeia dominial indemonstrável.

É, portanto, amplo o território em que a legislação e a fiscalização fundiária e florestal não podem ser eficazes. Nem o governo Bolsonaro tem demonstrado interesse em fazer essas terras retornarem ao patrimônio da nação, quando então poderia regulamentar, vigiar e punir. E, portanto, ali, de fato, impedir o desmatamento e as queimadas.

A própria ditadura militar desenvolveu, mediante incentivos fiscais, uma política de associação entre o grande capital moderno e a propriedade fundiária atrasada. Alterou irremediavelmente o modelo de capitalismo que queria para o Brasil, um capitalismo rentista e retrógrado, predatório e desumano.

Nem mesmo faltou trabalho escravo. Nos anos 1970, estimativas fundamentadas em fotografias aéreas de desmatamentos indicaram que entre 200 mil e 400 mil trabalhadores escravizados foram empregados na derrubada da mata e na formação de pastagens. A própria madeira usada como fonte pré-capitalista de capital. Um modelo de capitalismo que estimula a ilegalidade.

A mentalidade negacionista do bolsonarismo tem tido a força de atrair e aglutinar como poder todas as concepções e protagonistas de interesses antissociais que historicamente dominam o Brasil há séculos. Bolsonaro representa, nesse sentido, a insurreição e a insubordinação anticapitalista e antissocial do atraso programado e deliberado. E, nisso, desde 1964, os militares não têm sido inocentes.

Finalmente, outro lado do problema é o geopolítico. Conforme esclarecimentos do general Mourão, vice-presidente, antes da posse, o alinhamento geopolítico do governo seria com os Estados Unidos, um alinhamento natural. Mas não levou em conta que o mundo havia mudado e que Trump, nessa mudança, não representava o possível reajustamento da própria orientação americana.

O governo Bolsonaro nem mesmo percebeu que a cúpula do clima já é episódio decisivo da nova geopolítica que reordena o mapa do mundo. Não é a geopolítica da polarização entre anticomunismo e anti-imperialismo.

A única potência politicamente comunista, a China, contrariando a doutrina e a teoria, criou um novo e vibrante capitalismo, do qual o Brasil já é dependente.

A nova geopolítica é a de um capitalismo profundamente transformado por suas próprias crises, um capitalismo de conciliação com a sociedade consciente de que as crises sociais são crises do capital. E a hegemonia moral dessa nova geopolítica não está apenas nos polos, mas na Europa. É a Europa que coloca o meio ambiente na agenda civilizada do novo capitalismo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).

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