O
governo Bolsonaro não percebeu que a cúpula do clima já é episódio decisivo da
nova geopolítica que reordena o mapa do mundo
O
discurso que o presidente Bolsonaro fez na cúpula sobre o clima, convocada pelo
presidente americano, Joe Biden, não foi um discurso autoexplicativo. É
desmentido por tudo o que o governo é, faz e deixa de fazer em relação à
questão ambiental e aos problemas sociais nela contidos.
O
problema é saber quem manda na Amazônia e, portanto, quem vai decidir o que
fazer com ela. As anomalias relativas à questão ambiental têm raízes profundas
e são persistentes. Têm sua base no direito fundiário brasileiro, que nasceu
com a Lei de Terras de 1850, e no modo e no formato de sua origem.
Com ela, instituiu-se a propriedade absoluta da terra, que, artificialmente, tornou-se equivalente do que era o escravo como garantia de empréstimos hipotecários aos fazendeiros. Com essa lei, o Estado abriu mão do domínio sobre o território e, portanto, da imposição de limites e limitações ao uso da terra e ao que nela havia, rios e florestas. O oposto do que fora o regime de sesmarias da época colonial.
Só aos
poucos, na República, medidas do Estado brasileiro foram lenta e
progressivamente tomadas para atenuar e corrigir a propriedade abusiva. Com a
Lei de Águas, o subsolo retornou à tutela do Estado. As margens dos rios
também. Com o tempo, as áreas indígenas passaram a ser protegidas pelo Estado,
reconhecimento de um direito ancestral dos nativos, tradicionais zeladores da
natureza.
Os bens
históricos foram alcançados por limitações decorrentes de tombamentos em defesa
da memória social que representam.
Finalmente,
já na ditadura militar, o direito de propriedade foi restringido à regulação do
uso da terra. O latifúndio por extensão e por exploração, por descumprirem a
função social da propriedade, ficaram sujeitos à desapropriação para fins de
reforma agrária.
Se essas
medidas atenuaram muitos problemas decorrentes do uso arbitrário da
propriedade, os abusos continuaram a existir na extensa parte do território
ocupada indevida e irregularmente por invasores de terras e usurpadores de
direitos. Há alguns anos, levantamento oficial indicou que eram dezenas de
milhões de hectares de terras fora da lei, as de cadeia dominial
indemonstrável.
É,
portanto, amplo o território em que a legislação e a fiscalização fundiária e
florestal não podem ser eficazes. Nem o governo Bolsonaro tem demonstrado
interesse em fazer essas terras retornarem ao patrimônio da nação, quando então
poderia regulamentar, vigiar e punir. E, portanto, ali, de fato, impedir o
desmatamento e as queimadas.
A
própria ditadura militar desenvolveu, mediante incentivos fiscais, uma política
de associação entre o grande capital moderno e a propriedade fundiária
atrasada. Alterou irremediavelmente o modelo de capitalismo que queria para o
Brasil, um capitalismo rentista e retrógrado, predatório e desumano.
Nem
mesmo faltou trabalho escravo. Nos anos 1970, estimativas fundamentadas em
fotografias aéreas de desmatamentos indicaram que entre 200 mil e 400 mil
trabalhadores escravizados foram empregados na derrubada da mata e na formação
de pastagens. A própria madeira usada como fonte pré-capitalista de capital. Um
modelo de capitalismo que estimula a ilegalidade.
A
mentalidade negacionista do bolsonarismo tem tido a força de atrair e aglutinar
como poder todas as concepções e protagonistas de interesses antissociais que
historicamente dominam o Brasil há séculos. Bolsonaro representa, nesse
sentido, a insurreição e a insubordinação anticapitalista e antissocial do
atraso programado e deliberado. E, nisso, desde 1964, os militares não têm sido
inocentes.
Finalmente,
outro lado do problema é o geopolítico. Conforme esclarecimentos do general
Mourão, vice-presidente, antes da posse, o alinhamento geopolítico do governo
seria com os Estados Unidos, um alinhamento natural. Mas não levou em conta que
o mundo havia mudado e que Trump, nessa mudança, não representava o possível
reajustamento da própria orientação americana.
O
governo Bolsonaro nem mesmo percebeu que a cúpula do clima já é episódio
decisivo da nova geopolítica que reordena o mapa do mundo. Não é a geopolítica
da polarização entre anticomunismo e anti-imperialismo.
A única
potência politicamente comunista, a China, contrariando a doutrina e a teoria,
criou um novo e vibrante capitalismo, do qual o Brasil já é dependente.
A nova
geopolítica é a de um capitalismo profundamente transformado por suas próprias
crises, um capitalismo de conciliação com a sociedade consciente de que as
crises sociais são crises do capital. E a hegemonia moral dessa nova
geopolítica não está apenas nos polos, mas na Europa. É a Europa que coloca o
meio ambiente na agenda civilizada do novo capitalismo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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