sexta-feira, 30 de abril de 2021

Nelson Motta - Romances fortes, verdades rudes

- O Globo

Não existe boa história sem ser bem contada, e nisso Marçal Aquino é mestre, com seu passado de repórter policial

Esperei 16 anos mas valeu a pena. “Baixo esplendor”, de Marçal Aquino, é sua volta triunfal ao livro depois de uma longa temporada como roteirista de séries barra pesada na televisão, como “Força tarefa” e “Supermax”, e de filmes como “O invasor” e “Eu receberia as piores notícias dos teus lindos lábios” (os dois inspirados em livros seus). Li todos os seus livros e vi seus filmes. Sou fã. Mas não perco o espírito crítico, nem meus critérios de qualidade da escrita e da trama, sou leitor exigente.

Com uma narração fluente e econômica, a história é ambientada no período mais violento da ditadura militar, com um policial que se infiltra em uma grande quadrilha de roubos de carga, se torna amigo de fé do chefe e se apaixona pela irmã dele, uma bela mulher de temperamento e sexualidade intensos. E tem que denunciá-los à polícia e decepcioná-los com a sua traição. Daí para diante tudo é spoiler em uma história eletrizante de crime, ética, amizade e amor.

Não existe boa história sem ser bem contada, e nisso Marçal é mestre, com seu passado de repórter policial, sua familiaridade com a linguagem e com os valores e malandragens da bandidagem e da polícia. É um PhD em submundo do crime. E no uso preciso das palavras, nos seus ritmos e cadências, na sua capacidade de hipnotizar o leitor e levá-lo ao próximo parágrafo, como recomenda mestre García Márquez.

Adorei “Suíte Tóquio”, de Giovana Madalosso, sobre um confronto entre uma patroa e uma babá que sequestra sua filha, com a história narrada do ponto de vista de cada uma, e fui atrás de seus outros livros. “Tudo pode ser roubado” é tão bom quanto, com as mesmas qualidades do “Suíte”, contando a história de uma encantadora garçonete de um restaurante chique de São Paulo que seduz e rouba seus clientes, uma ladra vocacional que rouba tudo, até corações. Mas tudo muda quando ela tenta roubar uma valiosa primeira edição de “O Guarani”, de José de Alencar, de 1857, de um professor universitário, e ninguém sabe mais quem está enganando quem. O resto é spoiler.

Sua escrita delicada e desbocada, violenta e amorosa, cheia de sexo, humor e ironia, faz o livro pegajoso, de que você não desgruda.

Parece ficção, mas é pura verdade, ou uma busca da verdade, sobre o mistério do desaparecimento de Belchior em “Viver é melhor que sonhar”, dos jornalistas Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti, com uma profunda investigação dos dez últimos anos do artista, que abandonou a carreira, a família e o patrimônio para se exilar no Uruguai com sua companheira Edna, personagem fundamental numa fase sofrida de Belchior, sem trabalho, cheio de dívidas e processos, fugindo de hotéis sem pagar a conta, morando de favor na casa de amigos, dormindo na rua. Sofrendo muita rejeição, e até fome. Dói no coração ver um artista de sua estatura, com uma poderosa obra musical e poética, ainda subavaliada, chorando pra cachorro com tantas dores. Morrendo um pouco cada ano.

“Eu quero que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”, cantou o poeta.

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