Os
carnavalescos da CPI
O Estado
de S. Paulo
Jair Bolsonaro acusa a CPI de promover um “carnaval fora de época”. Depoimento de Pazuello pode ser a Quarta-Feira de Cinzas.
Opresidente
Jair Bolsonaro acusou a CPI da Pandemia de promover um “carnaval fora de
época”. A folia, em sua concepção, é protagonizada pelo bloco de independentes
e oposicionistas, maioria na comissão. Para o presidente, esses desafetos
exploram politicamente a CPI para prejudicá-lo, poupando governadores e
prefeitos que, segundo ele, são os verdadeiros responsáveis pela tragédia da
pandemia por terem “roubado” o dinheiro que o governo federal lhes repassou
para enfrentar a crise.
“A CPI vai investigar o quê? Eu dei dinheiro para os caras (governadores e prefeitos). O total foi mais de R$ 700 bilhões, auxílio emergencial no meio. Muitos roubaram dinheiro, desviaram. Agora vem uma CPI investigar conduta minha?”, declarou o presidente.
A tática
de Bolsonaro é confundir a opinião pública com a versão de que o governo
federal fez sua parte, enviando dinheiro aos Estados e municípios – e se esses
recursos foram “roubados” por “esses caras”, conforme o linguajar primitivo do
presidente, que os verdadeiros responsáveis sejam punidos.
Sabe-se
que efetivamente há casos de malversação do dinheiro destinado à emergência
sanitária, mas estão muito longe de constituir um padrão, como Bolsonaro quer
fazer parecer. Além disso, o valor mencionado pelo presidente mistura ajuda
específica para a pandemia com repasses constitucionais regulares, na expectativa
de que eleitores desinformados não saibam fazer a diferenciação.
A
intenção bolsonarista, claro, é causar tumulto, escamotear a responsabilidade
do presidente e incitar uma revolta contra os governadores insinuando que são
corruptos, autoritários e sabotadores das ações benemerentes do presidente –
que, nesse enredo delirante, desempenha o papel de campeão dos desempregados.
Mas a
CPI da Pandemia não se deixou intimidar pela ofensiva bolsonarista. Em seu
primeiro dia de trabalho, a comissão aprovou a convocação dos ex-ministros da
Saúde Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello, além do atual
ministro, Marcelo Queiroga, e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres.
Ademais, deu cinco dias úteis para que o Ministério da Saúde envie informações
sobre o enfrentamento da pandemia, compra de vacinas, medidas de isolamento
social e distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada.
Ou seja,
a comissão, no dia em que o Brasil ultrapassou a trágica marca de 400 mil
mortos em decorrência da covid-19, deixou claro que seu foco será o trabalho do
governo federal na pandemia, como deve ser.
Bem que
o governo tentou transformar a CPI num “carnaval fora de época”. Além do
reiterado discurso de Bolsonaro contra governadores, os aliados do presidente
tentaram inundar a comissão com requerimentos e pedidos de informação, com a
intenção de travá-la. Vários desses requerimentos, que convocavam
“especialistas” que defendem o uso de cloroquina contra a covid-19, foram
produzidos dentro do Palácio do Planalto – o que é em si um absurdo, já que
comissões parlamentares de inquérito são, por definição, um instrumento do
Legislativo para fiscalizar o Executivo.
Mas o
“carnaval” não parou por aí. Os senadores governistas tentaram mais uma vez
impedir na Justiça que o senador Renan Calheiros continuasse na relatoria da
CPI. De novo foram malsucedidos: o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo
Tribunal Federal, entendeu, como é óbvio, que a indicação de Calheiros
constitui “matéria de cunho interna corporis” e, portanto, “escapa à apreciação
do Judiciário”.
Em
paralelo, as milícias digitais bolsonaristas foram acionadas para difamar nas
redes sociais os senadores críticos do governo e também alguns dos convocados
para depor na CPI, como o ex-ministro Mandetta. Na mesma toada, Mandetta, que
tem sido bastante contundente em suas acusações contra Bolsonaro, foi alvo de
dossiês apócrifos enviados nesta semana a parlamentares.
Tudo em
vão, pois o governo foi derrotado em todas as suas investidas. E o que se
espera é que esse “carnaval” bolsonarista na CPI tenha no depoimento do
assombroso ex-ministro Pazuello, programado para a próxima quarta-feira, a sua
Quarta-Feira de Cinzas.
A cooperação sino-brasileira
O Estado
de S. Paulo
A ratificação pelo Partido Comunista Chinês, no início de março, do 14.º Plano Quinquenal de desenvolvimento socioeconômico suscita imediatamente a questão: o que isso implica para o Brasil? Entre os diversos institutos de pesquisa e think tanks empenhados na resposta, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) inaugurou, no dia 28 de abril, uma série de seminários destinados a explorar as perspectivas das relações sino-brasileiras. Coincidentemente, no mesmo dia, o Brics Policy Center realizou um seminário para analisar o 14.º Plano Quinquenal.
Entre as
inovações do Plano estão uma série de diretrizes de desenvolvimento, mais
genéricas, até 2035. Além disso, os aspectos meramente econômicos foram
complementados por fatores de desenvolvimento como a educação e a proteção
ambiental. O Plano também incluiu um conceito novo: a estratégia de “circulação
dual”. Ao mesmo tempo que a China pretende se abrir mais aos mercados globais
(circulação internacional), também quer reduzir sua dependência em relação a
eles e fomentar sua capacidade de produção e de consumo internos (circulação
doméstica).
Como
lembrou no evento do Cebri o embaixador Marcos Caramuru, as relações entre
Brasil e China sempre foram ambiciosas: nos anos 80, ambos iniciaram uma
cooperação em matéria de satélites; nos anos 90, o Brasil foi o primeiro país a
ser considerado um parceiro estratégico da China; a partir dos anos 2000, as
relações comerciais se fortaleceram. Hoje a China é o maior parceiro comercial
do Brasil.
A
cooperação para a produção das vacinas, apontou o embaixador Sérgio Amaral, é o
mais recente exemplo da força dessa complementariedade. Mas há outros. O Brasil
tem terra e água em proporções que a China não tem, criando uma grande
aproximação no agronegócio. Depois, os dois países são membros do Brics, com
convergências em vários aspectos dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
da ONU, assim como na reforma da Organização Mundial do Comércio. De resto, há
uma nova zona de complementariedade: a questão ambiental. Entre os âmbitos de
cooperação, um fundamental é a pesquisa e produção de energias alternativas.
Comentando
o modelo de governança econômica chinês, o embaixador Sarquis José Buainain
elencou áreas de atuação bem-sucedidas que podem subsidiar políticas públicas
brasileiras, notadamente os investimentos em capital humano e infraestrutura em
sentido amplo (saneamento, mobilidade urbana, logística, etc.).
Uma área
especialmente subaproveitada é o comércio entre indústrias. O setor agrícola
tem cooperado cada vez mais, mas, por causa da baixa intensidade do comércio
intraindustrial, o Brasil não tem conseguido agregar valor às trocas comerciais
com a China. Esse déficit pode e deve mudar. Ao apresentar no seminário do
Brics Policy Center seus estudos sobre os horizontes de cooperação entre os
dois países, o pesquisador chinês Wang Fei apontou que o maior potencial de
crescimento de Investimentos Estrangeiros Diretos chineses no Brasil não está
tanto nos recursos naturais, mas em equipamentos de comunicação e computadores,
em equipamentos de transporte e no maquinário elétrico.
Como
arcabouço extraeconômico para a cooperação BrasilChina, os diplomatas e
pesquisadores brasileiros relembraram unanimemente que a atual diplomacia do
confronto do governo Jair Bolsonaro é um hiato na tradição de diálogo da
diplomacia brasileira, e que não cabe ao Brasil fazer uma escolha entre China e
EUA, mas sim cooperar, de acordo com seus interesses, com ambos. De resto,
todos apontaram a necessidade da promoção de um comércio cultural mais
vibrante, sobretudo na educação e pesquisa. Enquanto os EUA, por exemplo,
acolhem milhares de estudantes brasileiros, na China há pouco mais de 50.
Universidades e think tanks têm um imenso horizonte de oportunidades para
construir pontes de entendimento e trocas de conhecimento entre os dois países,
e assim pavimentar o caminho para a prosperidade econômica e a cooperação
geopolítica de ambos.
Nas
relações com a China, devemos manter a tradição do diálogo da diplomacia
brasileira
Apoio tardio, mas bem-vindo
O Estado
de S. Paulo
Aguardado ansiosamente por empresários que enfrentam o risco de colapso de seus negócios por causa das restrições necessárias ao combate à pandemia, o novo conjunto de medidas que permitem redução de jornada de trabalho e de salários chega com atraso. Logo após o fim da vigência do programa anterior em dezembro, veio o recrudescimento da crise sanitária, o que tornou mais complicada a manutenção das operações de muitas empresas. Daí o clamor delas para que o governo reinstituísse com rapidez as regras que vigoraram em 2020 e lhes deram condições de sobrevivência. Mesmo tardio, o novo programa foi recebido com alívio em diversos segmentos. Era necessário adotá-lo.
Não há
grandes mudanças nas Medidas Provisórias (MPs) n.º 1.045 e n.º 1.046,
publicadas na edição de 28/4/2021 do Diário Oficial da União, em relação às que
haviam sido editadas há cerca de um ano (MPs 927 e 936) com a mesma finalidade.
Isso indica que não havia dificuldades técnicas para a definição do novo
programa de apoio às empresas e de proteção do emprego. Problemas fiscais,
provavelmente associados às dificuldades características deste governo na
tomada de decisões, podem ter retardado a edição das novas MPs.
Alguns
segmentos sentiram mais do que outros os efeitos do recrudescimento da pandemia
de covid-19. O comércio e os serviços – entre esses, os bares e restaurantes –
estão entre eles.
Medidas
compensatórias foram buscadas pela grande maioria das empresas. No campo
operacional, os serviços online estiveram entre os mais utilizados. Comércio
eletrônico, serviços de entrega por encomenda de bens perecíveis e outros
floresceram no meio da crise da pandemia.
Mesmo
assim, a manutenção de salários dos funcionários ou dos próprios empregos ficou
seriamente ameaçada nos períodos mais difíceis, como foram os primeiros meses
de 2021. “As empresas brasileiras estão atravessando essa segunda onda mais
fragilizadas do que estavam no início do ano passado e a economia já mostra
sinais de que a recuperação perdeu embalo”, observou o presidente da
Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade. “Ter
instrumentos que permitam a preservação de empregos agora é essencial para que
a retomada ocorra em condições menos desfavoráveis mais adiante.”
Não sem
razão, a MP 1.045 institui o novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego
e da Renda, mesmo nome adotado no programa do ano passado. O prazo de vigência
do programa é de 120 dias; se o cenário econômico não melhorar, o governo
poderá prorrogá-lo.
Como o
de 2020, o novo programa permite a redução proporcional de jornada de trabalho
e de salários, na proporção de 25%, 50% ou 70%, bem como a suspensão temporária
de contrato de trabalho. A adesão ao programa, como no anterior, será por meio
de acordo entre empregadores e empregados.
O
Benefício Emergencial (BEm) será pago como compensação pela redução de salário.
Seu valor será calculado com base no valor do segurodesemprego a que o
trabalhador teria direito se fosse demitido (de R$ 1.100 a R$ 1.911,84). O
valor do benefício corresponderá ao porcentual de redução do salário aplicado
ao valor do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito.
A MP
1.046, de sua parte, retoma algumas flexibilizações das regras trabalhistas,
como a adoção do teletrabalho, a antecipação de férias individuais
independentemente do período aquisitivo completo e a concessão de férias
coletivas.
Projeções
recentes apuradas pelo Estadão/Broadcast apontam que quase 5 milhões de acordos
poderão ser celebrados em concordância com as regras das MPs agora publicadas.
Outra
medida que compõe o conjunto voltado para a área trabalhista permite o
adiamento do recolhimento do FGTS por quatro meses. Isso dará R$ 40 bilhões de
folga para as empresas e poderá estimular a economia.
Medidas
repetem as que vigoraram no ano passado e dão fôlego às empresas
Ao bater 400 mil mortos, país vive momento crucial
O
Globo
O Brasil atingiu ontem a marca de 400 mil mortos pela Covid-19 — recorde que o mantém atrás apenas dos Estados Unidos nessa corrida inglória. Significa dizer que o número de baixas pelo novo coronavírus desde 12 de março do ano passado, quando foi registrada a primeira no país, supera toda a população de Vitória, capital do Espírito Santo, ou da cidade de Olinda, em Pernambuco. Não se trata de estatística fechada. A escalada macabra continua, rumo aos 500 mil — ou sabe-se lá até onde.
Se
há uma boa notícia em meio à tragédia, é que a epidemia dá sinais de
desaceleração. Apenas um estado entre as 27 unidades da Federação apresentava
ontem alta na média semanal de mortes. A maior parte (16) registrava
estabilidade. O número de novos casos também parou de subir, um alívio para as
redes de saúde pública e privada, que viveram meses de um colapso inédito.
A
trégua — bem-vinda e necessária — não deve ser superestimada. É preciso que
todos tenham em mente que ainda precisaremos lidar com a pandemia por um bom
tempo, por meio de ondas que vão e voltam. O epidemiologista Wanderson
Oliveira, ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde, alerta que, com a
chegada do inverno, período propício à propagação de vírus respiratórios, o
número de casos de Covid-19 deverá voltar a subir. Por isso, ninguém deve
relaxar nas medidas de prevenção, como distanciamento, uso de máscaras e
higienização.
Preocupa
que a população ainda esteja vulnerável a uma terceira onda. O número de
vacinados é baixo. O país, que já foi referência no setor, imunizou 31,2
milhões, ou 15% da população, não tendo alcançado nem metade dos grupos
prioritários. Não há perspectiva de aumentar esse percentual com mais rapidez,
pois não existem doses disponíveis. Enquanto isso, novas cepas do coronavírus,
mais agressivas que a original, se espalham silenciosamente, já que o país faz
pouquíssimos sequenciamentos de genoma, que permitiriam identificar essas
mutações.
O
governo federal, com sua conhecida negligência para lidar com a pandemia,
imprimiu suas digitais na tragédia. Assim como governadores, prefeitos e
secretários de Saúde que se aproveitaram da maior crise sanitária em um século
para saquear recursos públicos. Trabalho para a CPI da Covid.
Mas
não adianta pôr a culpa apenas nas autoridades. A sociedade também precisa
exercer seu papel. Não pode dar de ombros, achando que a pandemia acabou, só
porque os números deram pequena trégua. Não acabará tão cedo. Impossível eximir
o governo de responsabilidade, mas a verdade é que a população nunca levou a
pandemia a sério, como deveria. Praias cheias, festas clandestinas,
aglomerações, desprezo pelo uso de máscaras formam um repertório que não
combina com a situação calamitosa vivida pelo país.
Na
marca de 400 mil mortos, o presidente Jair Bolsonaro continua empenhado em
minar a CPI da Covid e em se defender das inevitáveis acusações de erros e
omissões. Espera-se que a pressão das investigações leve o governo a assumir
maior responsabilidade no combate à pandemia, especialmente na vacinação. Mas a
população também precisa fazer sua parte. Este momento em que os números dão
sinal de queda é crucial. Já vimos no final do ano passado, quando os mortos
não eram nem metade, o filme do descaso. Todo mundo conhece o roteiro e sabe
como acaba.
As
consequências do intervencionismo trilionário preconizado por Joe Biden
O
Globo
Joe Biden desmente o célebre ditado segundo o qual o poder é como o violino, pega-se com a esquerda e toca-se com a direita. Na campanha eleitoral, foi apresentado como resposta moderada dos democratas ao furacão Trump, pelo contraste com os esquerdistas Bernie Sanders e Elizabeth Warren. Acreditou-se, com razão, que era preciso unir o partido em torno de uma figura capaz de aglutinar polos antagônicos, da esquerda universitária aos republicanos moderados. Os primeiros 100 dias do governo bastaram para mostrar que Biden prefere tocar o violino do poder com a mão esquerda.
Não
apenas no campo social e comportamental, com atitudes determinadas contra o
racismo na polícia, em prol do controle de armas e a favor de transgêneros no
Exército. Mas sobretudo na economia. Biden lançou três pacotes de investimento
público somando US$ 6 trilhões, nível de intervenção estatal que não se vê
desde antes da Era Reagan. A crença subjacente é que só o dirigismo tirará o
país da crise para torná-lo líder de uma economia de baixo carbono (modelo não
tão distante do preconizado pela China).
Das
três iniciativas, uma já foi aprovada no Congresso, o pacote emergencial de US$
1,9 trilhão relativo à pandemia. Outros dois ainda tramitam: o pacote de
investimentos em infraestrutura e empregos (US$ 2,3 trilhões) e outro, enviado
esta semana, de estímulo à educação e à saúde (US$ 1,8 trilhão). Para
financiá-los, Biden propõe aumentar o imposto de renda da faixa de 1% com maior
rendimento, ampliar taxas sobre herança, sobre ganhos de capital e dividendos
(para quem ganha mais de US$ 1 milhão ao ano). Seu programa soa como música aos
ouvidos dos preocupados com justiça social (dificilmente Sanders ou Warren
teriam imaginado algo tão ambicioso).
Em
discurso no Congresso, fez questão de acenar aos adversários republicanos, de
cujo apoio precisa para aprovar tudo. Do outro lado, as reações não foram muito
amistosas. O senador Mitt Romney, republicano moderado que votou duas vezes
pelo impeachment de Trump, reagiu com bom humor: “Se ele fosse mais novo, eu
diria pro pai cortar o cartão de crédito”.
Com
78 anos, é pouco provável que Biden arque com as consequências de sua prodigalidade.
Se é verdade que o sistema tributário americano, cheio de desequilíbrios,
precisa de revisão, é um desafio não trivial criar um modelo de taxação que não
afugente o capital nem iniba investimentos. Não se trata simplesmente de
“cobrar mais dos mais ricos”. Um estudo da Universidade da Pensilvânia concluiu
que o plano de Biden reduziria o PIB em 0,8% até 2050.
A
maior consequência do intervencionismo de Biden será o recado torto transmitido
ao resto do planeta. Numa pandemia, é necessário que o Estado coordene uma
resposta eficaz à crise e tenha recursos para isso (Biden demonstrou a
importância dessa coordenação com o salto imprimido à vacinação). Passada a
emergência, porém, a situação será outra. A conta a pagar poderá ficar mais
alta do que uma economia ainda enfraquecida, em recuperação, será capaz de
suportar.
Morticínio brasileiro
Folha de
S. Paulo
Não
surpreende a marca de 400 mil mortos ante a conduta do governo Bolsonaro
A romper
recordes lúgubres e diante de perspectivas desanimadoras para o futuro próximo,
o Brasil acumulou 400 mil vidas perdidas para o flagelo da Covid-19.
A
vantagem de ter sido uma das últimas nações a ser atingida pela pandemia
iniciada na China —e ter tido tempo para aprendizado e preparo— foi
desperdiçada pelo Brasil, cujo presidente fazia blagues da preocupação
sanitária e incentivava comportamentos de risco.
O método
logo cedo identificado como o mais eficaz para frear o espalhamento da infecção
na ausência de vacinas —a testagem copiosa, o rastreamento microgeográfico da
epidemia e o isolamento das redes de contágio— foi desprezado. Como símbolo da
desídia ficaram milhões de kits diagnósticos abandonados num galpão do
Ministério da Saúde em São Paulo.
Com a
porta arrombada pelo vírus, restava coordenar e reforçar as iniciativas
municipais, metropolitanas e estaduais para reduzir ao mínimo a circulação de
pessoas quando a marcha da doença ameaçava a capacidade hospitalar.
Mas Jair
Bolsonaro despenhou-se de novo na contramão. Abriu fogo contra governadores e
prefeitos e exigiu do Supremo Tribunal Federal e do Congresso enorme energia
institucional para neutralizar os arroubos tresloucados do Planalto, no momento
em que ela deveria estar sendo toda utilizada no combate ao apuro sanitário.
Chegou o
momento de pré-contratar vacinas, todas as que tivessem potencial no planeta, e
o fracasso de Bolsonaro não foi menor, nem suas consequências menos mortíferas.
A empáfia ignorante com a China e o governador João Doria, a aposta alucinada
em emplastos ineficazes e a incompetência de assessores de terceira linha
amalgamaram-se para semear a catástrofe humanitária ora colhida.
Com as
linhas de defesa sabotadas, a ubiquidade do vírus no território brasileiro e a
eclosão de segundas ondas precursoras na Europa e nos Estados Unidos, o Brasil
tampouco acautelou-se para o choque que se previa a partir do verão.
Enquanto
faltavam leitos de UTI e oxigênio em Manaus, o governo Bolsonaro promovia
cloroquina na capital do Amazonas. O colapso se repetiu em outras cidades do
país em meio à desmobilização de infraestrutura emergencial pelo SUS e à
carência de fármacos para intubar pacientes críticos.
Diante
de tamanha incúria, não surpreende, infelizmente, o tamanho do morticínio pela
Covid-19.
Como
proporção dos habitantes, a epidemia já matou tantos brasileiros quanto
britânicos e mais que norte-americanos. Estas duas populações, extensamente
cobertas pela vacinação, começam a voltar à normalidade com segurança. A
brasileira ainda está longe disso.
Anvisa
sob pressão
Folha de
S. Paulo
Cabe ao
fabricante da Sputnik apresentar evidências, não retórica ameaçadora
A
Agência Nacional de Vigilância Sanitária teve sua reputação abalada quando o
presidente, Antonio Barra Torres, médico e contra-almirante, acompanhou sem
máscara o presidente Jair Bolsonaro em manifestação de março de 2020.
Depois
houve a suspensão de ensaio clínico com a Coronavac por efeito adverso grave
não relacionado à vacina do Butantan.
As
suspeitas de interferência política esmaeceram quando a agência chancelou o uso
emergencial da Coronavac e da Covishield, do consórcio AstraZeneca/Oxford.
A
apresentação minuciosa de dados e razões, na sessão de 17 de janeiro,
evidenciou a ação técnica e escorreita de um órgão de Estado.
O
prestígio reconquistado pela Anvisa se submete a novo teste com sua recusa a
aprovar a vacina Sputnik V, do Instituto Gamaleya de Moscou. A decisão unânime
da diretoria desencadeou despropositada
reação de Kirill Dmitriev, diretor do fundo soberano russo que
bancou o desenvolvimento do imunizante.
Dmitriev
acusou a agência de ceder a demandas geopolíticas provenientes dos Estados
Unidos, segundo ele de maneira antiprofissional e mentirosa. A seguir, ameaçou
processá-la por difamação, ao supostamente espalhar informações falsas e
imprecisas, de modo intencional, sobre o produto.
Entende-se
que a dezena de
governadores interessados em reforçar a prevenção com a
Sputnik, diante da inépcia federal, fiquem frustrados com o parecer negativo.
Mais obscuras são as pressões nos bastidores brasilienses.
Tal
movimentação não pode criar atalhos para contornar os obstáculos levantados
pela Anvisa. A agência apresentou argumentos sólidos, segundo especialistas,
para não concluir a análise antes que o fabricante demonstre de maneira cabal a
segurança do imunizante.
Houve
várias inconformidades e informações deficientes apontadas. Chamou a atenção,
acima de tudo, a questão da presença de adenovírus ativos entre os vetores
empregados na vacina, que deveriam ser inativados.
Cumpre
ao Gamaleya e a Dmitriev comprovar com evidências, e não arroubos retóricos,
que esse risco fica dentro de limites estipulados soberanamente.
Como
qualquer órgão estatal, a Anvisa não está acima de críticas. Entretanto estas
têm de ser fundadas na ciência e nas melhores práticas, não na truculência
descabida de partes interessadas.
Sob pressão, Paulo Guedes remaneja equipe econômica
Valor
Econômico
À solta,
o Centrão destruirá a atual política sem colocar nada no lugar, abrindo uma
fase de incerteza total
A agenda
econômica do governo está paralisada há tempos, e parte dela que sobrevive,
como a reforma administrativa, perdeu potência imediata, ou corre risco de não
seguir adiante, como a tributária. A cada tropeço dos planos do ministro Paulo
Guedes, há defecções em sua equipe e trocas no alto escalão. O ministro fez
outra agora, oficialmente para melhorar as relações com o Congresso, depois do
vexame da aprovação orçamentária, em que a equipe econômica não se saiu bem e o
Centrão conseguiu boa parte do que desejava, ampliando seu poder sobre o
Orçamento federal e sua tutela sobre um Executivo acuado.
O espaço
de ação de Guedes, já severamente limitado pelas convicções nada liberais e
corporativas do presidente Jair Bolsonaro, diminuiu bastante. As trocas de
equipe como as de agora, que preservam a competência técnica, estão se tornando
irrelevantes. A substituição na secretaria especial da Fazenda de Waldery
Rodrigues, braço direito do ministro, pelo igualmente fiscalista Bruno Funchal,
que deixou a Secretaria do Tesouro, retira da linha de frente um titular
“chamuscado” pela suposta intransigência sobre propostas do Congresso para
ampliar gastos sem respeitar as regras fiscais. Seu sucessor provavelmente fará
a mesma coisa, apenas com mais tato, mas as demandas continuarão chegando e
exigindo as idênticas negativas.
O
próprio Guedes queimou várias pontes no Congresso e no governo, tendo diante de
si não apenas um Centrão viciado em verbas como uma “ala política” pouco afeita
à austeridade fiscal, que fala diretamente aos ouvidos do presidente. Guedes e
equipe cometeram erros na negociação do Orçamento, aprovado com inacreditáveis
cortes nas despesas obrigatórias para dar espaço a um recordista volume de
emendas parlamentares. Isto nunca havia acontecido antes - a tanto está
disposto o Centrão, com a condescendência de Bolsonaro, que quer se reeleger e
escapar de impeachment.
O
episódio do orçamento, que colocou o Centrão dentro do Planalto, foi uma
derrota para o governo, um revés para Guedes e um desastre para a nação. Foi
necessária a atuação do STF para obrigar o governo a realizar o Censo, já
atrasado, porque seu orçamento encolheu de R$ 2 bilhões para R$ 50 milhões para
garantir emendas de deputados. É também um divisor de águas - o teto quase foi
rompido, sobrevive com escoras e daqui para a frente a perspectiva é de que as
investidas sobre os cofres públicos só piorem.
As
promessas hiperbólicas de Paulo Guedes não se concretizaram. O R$ 1 trilhão com
privatizações não veio, nem o outro trilhão com a venda de imóveis e terrenos
da União. O presidente, com seu jeito ríspido de ser, vetou em público que as
principais estatais fossem vendidas e ordenou que a reforma administrativa não
valesse para os atuais funcionários, jogando seus efeitos para décadas à
frente.
A
aliança de sobrevivência de Bolsonaro com o Centrão começa a enterrar a ilusão
de que, com alguma maioria no Congresso, o governo poderia, enfim, deslanchar
as reformas. Mas elas estão andando de lado, e apesar do presidente da Câmara,
Arthur Lira, ter prometido levar a reforma tributária à aprovação, ela é a mais
incerta. Guedes quer aprová-la em quatro fatias, começando pela Contribuição
sobre Bens e Serviços (CBS), como se houvesse todo o tempo do mundo para isso.
Possivelmente no quarto trimestre do ano o calendário eleitoral se imporá e a
agenda do Congresso vai se adequar, evitando temas polêmicos, como são quase
todas as reformas.
Parte
das energias do Congresso estarão voltadas para a Comissão Parlamentar de
Inquérito sobre a pandemia, na qual o governo tem minoria, e que será uma
vitrine do descaso inacreditável da União com o combate à covid-19, que matou
mais de 400 mil pessoas até ontem.
Guedes,
por seu lado, terá de enfrentar a ofensiva da base governista sobre a Economia,
para desmembrá-lo em mais duas pastas, Trabalho e Planejamento. Se o centrão
atingir esse objetivo, o ministro verá redobrada a artilharia de “fogo amigo”
contra seu “fiscalismo”, sem que possa contar com o apoio do presidente
Bolsonaro.
Paulo Guedes, por outro lado, ainda é no governo o representante de alguma racionalidade na política econômica e de alguma seriedade no manejo do dinheiro público. À solta, o Centrão destruirá a atual política sem colocar nada no lugar, abrindo uma fase de incerteza total.
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