sexta-feira, 30 de abril de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Os carnavalescos da CPI

O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro acusa a CPI de promover um “carnaval fora de época”. Depoimento de Pazuello pode ser a Quarta-Feira de Cinzas.

Opresidente Jair Bolsonaro acusou a CPI da Pandemia de promover um “carnaval fora de época”. A folia, em sua concepção, é protagonizada pelo bloco de independentes e oposicionistas, maioria na comissão. Para o presidente, esses desafetos exploram politicamente a CPI para prejudicá-lo, poupando governadores e prefeitos que, segundo ele, são os verdadeiros responsáveis pela tragédia da pandemia por terem “roubado” o dinheiro que o governo federal lhes repassou para enfrentar a crise.

“A CPI vai investigar o quê? Eu dei dinheiro para os caras (governadores e prefeitos). O total foi mais de R$ 700 bilhões, auxílio emergencial no meio. Muitos roubaram dinheiro, desviaram. Agora vem uma CPI investigar conduta minha?”, declarou o presidente.

A tática de Bolsonaro é confundir a opinião pública com a versão de que o governo federal fez sua parte, enviando dinheiro aos Estados e municípios – e se esses recursos foram “roubados” por “esses caras”, conforme o linguajar primitivo do presidente, que os verdadeiros responsáveis sejam punidos.

Sabe-se que efetivamente há casos de malversação do dinheiro destinado à emergência sanitária, mas estão muito longe de constituir um padrão, como Bolsonaro quer fazer parecer. Além disso, o valor mencionado pelo presidente mistura ajuda específica para a pandemia com repasses constitucionais regulares, na expectativa de que eleitores desinformados não saibam fazer a diferenciação.

A intenção bolsonarista, claro, é causar tumulto, escamotear a responsabilidade do presidente e incitar uma revolta contra os governadores insinuando que são corruptos, autoritários e sabotadores das ações benemerentes do presidente – que, nesse enredo delirante, desempenha o papel de campeão dos desempregados.

Mas a CPI da Pandemia não se deixou intimidar pela ofensiva bolsonarista. Em seu primeiro dia de trabalho, a comissão aprovou a convocação dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello, além do atual ministro, Marcelo Queiroga, e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres. Ademais, deu cinco dias úteis para que o Ministério da Saúde envie informações sobre o enfrentamento da pandemia, compra de vacinas, medidas de isolamento social e distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada.

Ou seja, a comissão, no dia em que o Brasil ultrapassou a trágica marca de 400 mil mortos em decorrência da covid-19, deixou claro que seu foco será o trabalho do governo federal na pandemia, como deve ser.

Bem que o governo tentou transformar a CPI num “carnaval fora de época”. Além do reiterado discurso de Bolsonaro contra governadores, os aliados do presidente tentaram inundar a comissão com requerimentos e pedidos de informação, com a intenção de travá-la. Vários desses requerimentos, que convocavam “especialistas” que defendem o uso de cloroquina contra a covid-19, foram produzidos dentro do Palácio do Planalto – o que é em si um absurdo, já que comissões parlamentares de inquérito são, por definição, um instrumento do Legislativo para fiscalizar o Executivo.

Mas o “carnaval” não parou por aí. Os senadores governistas tentaram mais uma vez impedir na Justiça que o senador Renan Calheiros continuasse na relatoria da CPI. De novo foram malsucedidos: o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, entendeu, como é óbvio, que a indicação de Calheiros constitui “matéria de cunho interna corporis” e, portanto, “escapa à apreciação do Judiciário”.

Em paralelo, as milícias digitais bolsonaristas foram acionadas para difamar nas redes sociais os senadores críticos do governo e também alguns dos convocados para depor na CPI, como o ex-ministro Mandetta. Na mesma toada, Mandetta, que tem sido bastante contundente em suas acusações contra Bolsonaro, foi alvo de dossiês apócrifos enviados nesta semana a parlamentares.

Tudo em vão, pois o governo foi derrotado em todas as suas investidas. E o que se espera é que esse “carnaval” bolsonarista na CPI tenha no depoimento do assombroso ex-ministro Pazuello, programado para a próxima quarta-feira, a sua Quarta-Feira de Cinzas.

A cooperação sino-brasileira

O Estado de S. Paulo

A ratificação pelo Partido Comunista Chinês, no início de março, do 14.º Plano Quinquenal de desenvolvimento socioeconômico suscita imediatamente a questão: o que isso implica para o Brasil? Entre os diversos institutos de pesquisa e think tanks empenhados na resposta, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) inaugurou, no dia 28 de abril, uma série de seminários destinados a explorar as perspectivas das relações sino-brasileiras. Coincidentemente, no mesmo dia, o Brics Policy Center realizou um seminário para analisar o 14.º Plano Quinquenal.

Entre as inovações do Plano estão uma série de diretrizes de desenvolvimento, mais genéricas, até 2035. Além disso, os aspectos meramente econômicos foram complementados por fatores de desenvolvimento como a educação e a proteção ambiental. O Plano também incluiu um conceito novo: a estratégia de “circulação dual”. Ao mesmo tempo que a China pretende se abrir mais aos mercados globais (circulação internacional), também quer reduzir sua dependência em relação a eles e fomentar sua capacidade de produção e de consumo internos (circulação doméstica).

Como lembrou no evento do Cebri o embaixador Marcos Caramuru, as relações entre Brasil e China sempre foram ambiciosas: nos anos 80, ambos iniciaram uma cooperação em matéria de satélites; nos anos 90, o Brasil foi o primeiro país a ser considerado um parceiro estratégico da China; a partir dos anos 2000, as relações comerciais se fortaleceram. Hoje a China é o maior parceiro comercial do Brasil.

A cooperação para a produção das vacinas, apontou o embaixador Sérgio Amaral, é o mais recente exemplo da força dessa complementariedade. Mas há outros. O Brasil tem terra e água em proporções que a China não tem, criando uma grande aproximação no agronegócio. Depois, os dois países são membros do Brics, com convergências em vários aspectos dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, assim como na reforma da Organização Mundial do Comércio. De resto, há uma nova zona de complementariedade: a questão ambiental. Entre os âmbitos de cooperação, um fundamental é a pesquisa e produção de energias alternativas.

Comentando o modelo de governança econômica chinês, o embaixador Sarquis José Buainain elencou áreas de atuação bem-sucedidas que podem subsidiar políticas públicas brasileiras, notadamente os investimentos em capital humano e infraestrutura em sentido amplo (saneamento, mobilidade urbana, logística, etc.).

Uma área especialmente subaproveitada é o comércio entre indústrias. O setor agrícola tem cooperado cada vez mais, mas, por causa da baixa intensidade do comércio intraindustrial, o Brasil não tem conseguido agregar valor às trocas comerciais com a China. Esse déficit pode e deve mudar. Ao apresentar no seminário do Brics Policy Center seus estudos sobre os horizontes de cooperação entre os dois países, o pesquisador chinês Wang Fei apontou que o maior potencial de crescimento de Investimentos Estrangeiros Diretos chineses no Brasil não está tanto nos recursos naturais, mas em equipamentos de comunicação e computadores, em equipamentos de transporte e no maquinário elétrico.

Como arcabouço extraeconômico para a cooperação BrasilChina, os diplomatas e pesquisadores brasileiros relembraram unanimemente que a atual diplomacia do confronto do governo Jair Bolsonaro é um hiato na tradição de diálogo da diplomacia brasileira, e que não cabe ao Brasil fazer uma escolha entre China e EUA, mas sim cooperar, de acordo com seus interesses, com ambos. De resto, todos apontaram a necessidade da promoção de um comércio cultural mais vibrante, sobretudo na educação e pesquisa. Enquanto os EUA, por exemplo, acolhem milhares de estudantes brasileiros, na China há pouco mais de 50. Universidades e think tanks têm um imenso horizonte de oportunidades para construir pontes de entendimento e trocas de conhecimento entre os dois países, e assim pavimentar o caminho para a prosperidade econômica e a cooperação geopolítica de ambos.

Nas relações com a China, devemos manter a tradição do diálogo da diplomacia brasileira

Apoio tardio, mas bem-vindo

O Estado de S. Paulo

Aguardado ansiosamente por empresários que enfrentam o risco de colapso de seus negócios por causa das restrições necessárias ao combate à pandemia, o novo conjunto de medidas que permitem redução de jornada de trabalho e de salários chega com atraso. Logo após o fim da vigência do programa anterior em dezembro, veio o recrudescimento da crise sanitária, o que tornou mais complicada a manutenção das operações de muitas empresas. Daí o clamor delas para que o governo reinstituísse com rapidez as regras que vigoraram em 2020 e lhes deram condições de sobrevivência. Mesmo tardio, o novo programa foi recebido com alívio em diversos segmentos. Era necessário adotá-lo.

Não há grandes mudanças nas Medidas Provisórias (MPs) n.º 1.045 e n.º 1.046, publicadas na edição de 28/4/2021 do Diário Oficial da União, em relação às que haviam sido editadas há cerca de um ano (MPs 927 e 936) com a mesma finalidade. Isso indica que não havia dificuldades técnicas para a definição do novo programa de apoio às empresas e de proteção do emprego. Problemas fiscais, provavelmente associados às dificuldades características deste governo na tomada de decisões, podem ter retardado a edição das novas MPs.

Alguns segmentos sentiram mais do que outros os efeitos do recrudescimento da pandemia de covid-19. O comércio e os serviços – entre esses, os bares e restaurantes – estão entre eles.

Medidas compensatórias foram buscadas pela grande maioria das empresas. No campo operacional, os serviços online estiveram entre os mais utilizados. Comércio eletrônico, serviços de entrega por encomenda de bens perecíveis e outros floresceram no meio da crise da pandemia.

Mesmo assim, a manutenção de salários dos funcionários ou dos próprios empregos ficou seriamente ameaçada nos períodos mais difíceis, como foram os primeiros meses de 2021. “As empresas brasileiras estão atravessando essa segunda onda mais fragilizadas do que estavam no início do ano passado e a economia já mostra sinais de que a recuperação perdeu embalo”, observou o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade. “Ter instrumentos que permitam a preservação de empregos agora é essencial para que a retomada ocorra em condições menos desfavoráveis mais adiante.”

Não sem razão, a MP 1.045 institui o novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, mesmo nome adotado no programa do ano passado. O prazo de vigência do programa é de 120 dias; se o cenário econômico não melhorar, o governo poderá prorrogá-lo.

Como o de 2020, o novo programa permite a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários, na proporção de 25%, 50% ou 70%, bem como a suspensão temporária de contrato de trabalho. A adesão ao programa, como no anterior, será por meio de acordo entre empregadores e empregados.

O Benefício Emergencial (BEm) será pago como compensação pela redução de salário. Seu valor será calculado com base no valor do segurodesemprego a que o trabalhador teria direito se fosse demitido (de R$ 1.100 a R$ 1.911,84). O valor do benefício corresponderá ao porcentual de redução do salário aplicado ao valor do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito.

A MP 1.046, de sua parte, retoma algumas flexibilizações das regras trabalhistas, como a adoção do teletrabalho, a antecipação de férias individuais independentemente do período aquisitivo completo e a concessão de férias coletivas.

Projeções recentes apuradas pelo Estadão/Broadcast apontam que quase 5 milhões de acordos poderão ser celebrados em concordância com as regras das MPs agora publicadas.

Outra medida que compõe o conjunto voltado para a área trabalhista permite o adiamento do recolhimento do FGTS por quatro meses. Isso dará R$ 40 bilhões de folga para as empresas e poderá estimular a economia.

Medidas repetem as que vigoraram no ano passado e dão fôlego às empresas

Ao bater 400 mil mortos, país vive momento crucial

O Globo

O Brasil atingiu ontem a marca de 400 mil mortos pela Covid-19 — recorde que o mantém atrás apenas dos Estados Unidos nessa corrida inglória. Significa dizer que o número de baixas pelo novo coronavírus desde 12 de março do ano passado, quando foi registrada a primeira no país, supera toda a população de Vitória, capital do Espírito Santo, ou da cidade de Olinda, em Pernambuco. Não se trata de estatística fechada. A escalada macabra continua, rumo aos 500 mil — ou sabe-se lá até onde.

Se há uma boa notícia em meio à tragédia, é que a epidemia dá sinais de desaceleração. Apenas um estado entre as 27 unidades da Federação apresentava ontem alta na média semanal de mortes. A maior parte (16) registrava estabilidade. O número de novos casos também parou de subir, um alívio para as redes de saúde pública e privada, que viveram meses de um colapso inédito.

A trégua — bem-vinda e necessária — não deve ser superestimada. É preciso que todos tenham em mente que ainda precisaremos lidar com a pandemia por um bom tempo, por meio de ondas que vão e voltam. O epidemiologista Wanderson Oliveira, ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde, alerta que, com a chegada do inverno, período propício à propagação de vírus respiratórios, o número de casos de Covid-19 deverá voltar a subir. Por isso, ninguém deve relaxar nas medidas de prevenção, como distanciamento, uso de máscaras e higienização.

Preocupa que a população ainda esteja vulnerável a uma terceira onda. O número de vacinados é baixo. O país, que já foi referência no setor, imunizou 31,2 milhões, ou 15% da população, não tendo alcançado nem metade dos grupos prioritários. Não há perspectiva de aumentar esse percentual com mais rapidez, pois não existem doses disponíveis. Enquanto isso, novas cepas do coronavírus, mais agressivas que a original, se espalham silenciosamente, já que o país faz pouquíssimos sequenciamentos de genoma, que permitiriam identificar essas mutações.

O governo federal, com sua conhecida negligência para lidar com a pandemia, imprimiu suas digitais na tragédia. Assim como governadores, prefeitos e secretários de Saúde que se aproveitaram da maior crise sanitária em um século para saquear recursos públicos. Trabalho para a CPI da Covid.

Mas não adianta pôr a culpa apenas nas autoridades. A sociedade também precisa exercer seu papel. Não pode dar de ombros, achando que a pandemia acabou, só porque os números deram pequena trégua. Não acabará tão cedo. Impossível eximir o governo de responsabilidade, mas a verdade é que a população nunca levou a pandemia a sério, como deveria. Praias cheias, festas clandestinas, aglomerações, desprezo pelo uso de máscaras formam um repertório que não combina com a situação calamitosa vivida pelo país.

Na marca de 400 mil mortos, o presidente Jair Bolsonaro continua empenhado em minar a CPI da Covid e em se defender das inevitáveis acusações de erros e omissões. Espera-se que a pressão das investigações leve o governo a assumir maior responsabilidade no combate à pandemia, especialmente na vacinação. Mas a população também precisa fazer sua parte. Este momento em que os números dão sinal de queda é crucial. Já vimos no final do ano passado, quando os mortos não eram nem metade, o filme do descaso. Todo mundo conhece o roteiro e sabe como acaba.

As consequências do intervencionismo trilionário preconizado por Joe Biden

O Globo

Joe Biden desmente o célebre ditado segundo o qual o poder é como o violino, pega-se com a esquerda e toca-se com a direita. Na campanha eleitoral, foi apresentado como resposta moderada dos democratas ao furacão Trump, pelo contraste com os esquerdistas Bernie Sanders e Elizabeth Warren. Acreditou-se, com razão, que era preciso unir o partido em torno de uma figura capaz de aglutinar polos antagônicos, da esquerda universitária aos republicanos moderados. Os primeiros 100 dias do governo bastaram para mostrar que Biden prefere tocar o violino do poder com a mão esquerda.

Não apenas no campo social e comportamental, com atitudes determinadas contra o racismo na polícia, em prol do controle de armas e a favor de transgêneros no Exército. Mas sobretudo na economia. Biden lançou três pacotes de investimento público somando US$ 6 trilhões, nível de intervenção estatal que não se vê desde antes da Era Reagan. A crença subjacente é que só o dirigismo tirará o país da crise para torná-lo líder de uma economia de baixo carbono (modelo não tão distante do preconizado pela China).

Das três iniciativas, uma já foi aprovada no Congresso, o pacote emergencial de US$ 1,9 trilhão relativo à pandemia. Outros dois ainda tramitam: o pacote de investimentos em infraestrutura e empregos (US$ 2,3 trilhões) e outro, enviado esta semana, de estímulo à educação e à saúde (US$ 1,8 trilhão). Para financiá-los, Biden propõe aumentar o imposto de renda da faixa de 1% com maior rendimento, ampliar taxas sobre herança, sobre ganhos de capital e dividendos (para quem ganha mais de US$ 1 milhão ao ano). Seu programa soa como música aos ouvidos dos preocupados com justiça social (dificilmente Sanders ou Warren teriam imaginado algo tão ambicioso).

Em discurso no Congresso, fez questão de acenar aos adversários republicanos, de cujo apoio precisa para aprovar tudo. Do outro lado, as reações não foram muito amistosas. O senador Mitt Romney, republicano moderado que votou duas vezes pelo impeachment de Trump, reagiu com bom humor: “Se ele fosse mais novo, eu diria pro pai cortar o cartão de crédito”.

Com 78 anos, é pouco provável que Biden arque com as consequências de sua prodigalidade. Se é verdade que o sistema tributário americano, cheio de desequilíbrios, precisa de revisão, é um desafio não trivial criar um modelo de taxação que não afugente o capital nem iniba investimentos. Não se trata simplesmente de “cobrar mais dos mais ricos”. Um estudo da Universidade da Pensilvânia concluiu que o plano de Biden reduziria o PIB em 0,8% até 2050.

A maior consequência do intervencionismo de Biden será o recado torto transmitido ao resto do planeta. Numa pandemia, é necessário que o Estado coordene uma resposta eficaz à crise e tenha recursos para isso (Biden demonstrou a importância dessa coordenação com o salto imprimido à vacinação). Passada a emergência, porém, a situação será outra. A conta a pagar poderá ficar mais alta do que uma economia ainda enfraquecida, em recuperação, será capaz de suportar.

Morticínio brasileiro

Folha de S. Paulo

Não surpreende a marca de 400 mil mortos ante a conduta do governo Bolsonaro

A romper recordes lúgubres e diante de perspectivas desanimadoras para o futuro próximo, o Brasil acumulou 400 mil vidas perdidas para o flagelo da Covid-19.

A vantagem de ter sido uma das últimas nações a ser atingida pela pandemia iniciada na China —e ter tido tempo para aprendizado e preparo— foi desperdiçada pelo Brasil, cujo presidente fazia blagues da preocupação sanitária e incentivava comportamentos de risco.

O método logo cedo identificado como o mais eficaz para frear o espalhamento da infecção na ausência de vacinas —a testagem copiosa, o rastreamento microgeográfico da epidemia e o isolamento das redes de contágio— foi desprezado. Como símbolo da desídia ficaram milhões de kits diagnósticos abandonados num galpão do Ministério da Saúde em São Paulo.

Com a porta arrombada pelo vírus, restava coordenar e reforçar as iniciativas municipais, metropolitanas e estaduais para reduzir ao mínimo a circulação de pessoas quando a marcha da doença ameaçava a capacidade hospitalar.

Mas Jair Bolsonaro despenhou-se de novo na contramão. Abriu fogo contra governadores e prefeitos e exigiu do Supremo Tribunal Federal e do Congresso enorme energia institucional para neutralizar os arroubos tresloucados do Planalto, no momento em que ela deveria estar sendo toda utilizada no combate ao apuro sanitário.

Chegou o momento de pré-contratar vacinas, todas as que tivessem potencial no planeta, e o fracasso de Bolsonaro não foi menor, nem suas consequências menos mortíferas. A empáfia ignorante com a China e o governador João Doria, a aposta alucinada em emplastos ineficazes e a incompetência de assessores de terceira linha amalgamaram-se para semear a catástrofe humanitária ora colhida.

Com as linhas de defesa sabotadas, a ubiquidade do vírus no território brasileiro e a eclosão de segundas ondas precursoras na Europa e nos Estados Unidos, o Brasil tampouco acautelou-se para o choque que se previa a partir do verão.

Enquanto faltavam leitos de UTI e oxigênio em Manaus, o governo Bolsonaro promovia cloroquina na capital do Amazonas. O colapso se repetiu em outras cidades do país em meio à desmobilização de infraestrutura emergencial pelo SUS e à carência de fármacos para intubar pacientes críticos.

Diante de tamanha incúria, não surpreende, infelizmente, o tamanho do morticínio pela Covid-19.

Como proporção dos habitantes, a epidemia já matou tantos brasileiros quanto britânicos e mais que norte-americanos. Estas duas populações, extensamente cobertas pela vacinação, começam a voltar à normalidade com segurança. A brasileira ainda está longe disso.

Anvisa sob pressão

Folha de S. Paulo

Cabe ao fabricante da Sputnik apresentar evidências, não retórica ameaçadora

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária teve sua reputação abalada quando o presidente, Antonio Barra Torres, médico e contra-almirante, acompanhou sem máscara o presidente Jair Bolsonaro em manifestação de março de 2020.

Depois houve a suspensão de ensaio clínico com a Coronavac por efeito adverso grave não relacionado à vacina do Butantan.

As suspeitas de interferência política esmaeceram quando a agência chancelou o uso emergencial da Coronavac e da Covishield, do consórcio AstraZeneca/Oxford.

A apresentação minuciosa de dados e razões, na sessão de 17 de janeiro, evidenciou a ação técnica e escorreita de um órgão de Estado.

O prestígio reconquistado pela Anvisa se submete a novo teste com sua recusa a aprovar a vacina Sputnik V, do Instituto Gamaleya de Moscou. A decisão unânime da diretoria desencadeou despropositada reação de Kirill Dmitriev, diretor do fundo soberano russo que bancou o desenvolvimento do imunizante.

Dmitriev acusou a agência de ceder a demandas geopolíticas provenientes dos Estados Unidos, segundo ele de maneira antiprofissional e mentirosa. A seguir, ameaçou processá-la por difamação, ao supostamente espalhar informações falsas e imprecisas, de modo intencional, sobre o produto.

Entende-se que a dezena de governadores interessados em reforçar a prevenção com a Sputnik, diante da inépcia federal, fiquem frustrados com o parecer negativo. Mais obscuras são as pressões nos bastidores brasilienses.

Tal movimentação não pode criar atalhos para contornar os obstáculos levantados pela Anvisa. A agência apresentou argumentos sólidos, segundo especialistas, para não concluir a análise antes que o fabricante demonstre de maneira cabal a segurança do imunizante.

Houve várias inconformidades e informações deficientes apontadas. Chamou a atenção, acima de tudo, a questão da presença de adenovírus ativos entre os vetores empregados na vacina, que deveriam ser inativados.

Cumpre ao Gamaleya e a Dmitriev comprovar com evidências, e não arroubos retóricos, que esse risco fica dentro de limites estipulados soberanamente.

Como qualquer órgão estatal, a Anvisa não está acima de críticas. Entretanto estas têm de ser fundadas na ciência e nas melhores práticas, não na truculência descabida de partes interessadas.

Sob pressão, Paulo Guedes remaneja equipe econômica

Valor Econômico

À solta, o Centrão destruirá a atual política sem colocar nada no lugar, abrindo uma fase de incerteza total

A agenda econômica do governo está paralisada há tempos, e parte dela que sobrevive, como a reforma administrativa, perdeu potência imediata, ou corre risco de não seguir adiante, como a tributária. A cada tropeço dos planos do ministro Paulo Guedes, há defecções em sua equipe e trocas no alto escalão. O ministro fez outra agora, oficialmente para melhorar as relações com o Congresso, depois do vexame da aprovação orçamentária, em que a equipe econômica não se saiu bem e o Centrão conseguiu boa parte do que desejava, ampliando seu poder sobre o Orçamento federal e sua tutela sobre um Executivo acuado.

O espaço de ação de Guedes, já severamente limitado pelas convicções nada liberais e corporativas do presidente Jair Bolsonaro, diminuiu bastante. As trocas de equipe como as de agora, que preservam a competência técnica, estão se tornando irrelevantes. A substituição na secretaria especial da Fazenda de Waldery Rodrigues, braço direito do ministro, pelo igualmente fiscalista Bruno Funchal, que deixou a Secretaria do Tesouro, retira da linha de frente um titular “chamuscado” pela suposta intransigência sobre propostas do Congresso para ampliar gastos sem respeitar as regras fiscais. Seu sucessor provavelmente fará a mesma coisa, apenas com mais tato, mas as demandas continuarão chegando e exigindo as idênticas negativas.

O próprio Guedes queimou várias pontes no Congresso e no governo, tendo diante de si não apenas um Centrão viciado em verbas como uma “ala política” pouco afeita à austeridade fiscal, que fala diretamente aos ouvidos do presidente. Guedes e equipe cometeram erros na negociação do Orçamento, aprovado com inacreditáveis cortes nas despesas obrigatórias para dar espaço a um recordista volume de emendas parlamentares. Isto nunca havia acontecido antes - a tanto está disposto o Centrão, com a condescendência de Bolsonaro, que quer se reeleger e escapar de impeachment.

O episódio do orçamento, que colocou o Centrão dentro do Planalto, foi uma derrota para o governo, um revés para Guedes e um desastre para a nação. Foi necessária a atuação do STF para obrigar o governo a realizar o Censo, já atrasado, porque seu orçamento encolheu de R$ 2 bilhões para R$ 50 milhões para garantir emendas de deputados. É também um divisor de águas - o teto quase foi rompido, sobrevive com escoras e daqui para a frente a perspectiva é de que as investidas sobre os cofres públicos só piorem.

As promessas hiperbólicas de Paulo Guedes não se concretizaram. O R$ 1 trilhão com privatizações não veio, nem o outro trilhão com a venda de imóveis e terrenos da União. O presidente, com seu jeito ríspido de ser, vetou em público que as principais estatais fossem vendidas e ordenou que a reforma administrativa não valesse para os atuais funcionários, jogando seus efeitos para décadas à frente.

A aliança de sobrevivência de Bolsonaro com o Centrão começa a enterrar a ilusão de que, com alguma maioria no Congresso, o governo poderia, enfim, deslanchar as reformas. Mas elas estão andando de lado, e apesar do presidente da Câmara, Arthur Lira, ter prometido levar a reforma tributária à aprovação, ela é a mais incerta. Guedes quer aprová-la em quatro fatias, começando pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), como se houvesse todo o tempo do mundo para isso. Possivelmente no quarto trimestre do ano o calendário eleitoral se imporá e a agenda do Congresso vai se adequar, evitando temas polêmicos, como são quase todas as reformas.

Parte das energias do Congresso estarão voltadas para a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a pandemia, na qual o governo tem minoria, e que será uma vitrine do descaso inacreditável da União com o combate à covid-19, que matou mais de 400 mil pessoas até ontem.

Guedes, por seu lado, terá de enfrentar a ofensiva da base governista sobre a Economia, para desmembrá-lo em mais duas pastas, Trabalho e Planejamento. Se o centrão atingir esse objetivo, o ministro verá redobrada a artilharia de “fogo amigo” contra seu “fiscalismo”, sem que possa contar com o apoio do presidente Bolsonaro.

Paulo Guedes, por outro lado, ainda é no governo o representante de alguma racionalidade na política econômica e de alguma seriedade no manejo do dinheiro público. À solta, o Centrão destruirá a atual política sem colocar nada no lugar, abrindo uma fase de incerteza total.

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