Deveria
escrever sobre a polícia fluminense ter multiplicado o número de operações e
pessoas mortas em favelas em 2021, apesar de proibidas pelo Supremo Tribunal
Federal. Desde o início do ano, segundo a plataforma Fogo Cruzado, a Região
Metropolitana do Rio registrou 1.415 tiroteios, que deixaram 305 mortos e 313
feridos. Em 454 ocorrências havia agentes do estado, 22 morreram, 27 foram
feridos. Houve 21 chacinas, quando uma só situação deixa pelo menos três
vítimas fatais. A Rede de Observatórios de Segurança contabilizou 257 operações
policiais com 69 mortes no primeiro trimestre deste ano, respectivamente, 55% e
33% a mais que no mesmo período de 2020.
Pensei em festejar o tombamento do terreiro de Joãozinho da Gomeia, espaço de memória e resistência dos cultos afro-brasieiros, agora preservado, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, epicentro da intolerância religiosa no estado. Ou a transformação do 27 de março, data de nascimento do pai de santo mais famoso do Rio, no Dia Estadual de Conscientização contra o Racismo Religioso. Ou o plano de investimentos do presidente Joe Biden, que pretende apresentar aos EUA o Estado de bem-estar social estabelecido na Constituição brasileira, mas nunca inteiramente aplicado.
Precisei
expressar pesar e raiva pela marca nefasta de 400 mil vítimas da Covid-19 e
também da necropolítica de um governo assentado na incompetência, na mentira,
na indiferença, na brutalidade. Um mês e meio atrás, quando a pandemia
completou um ano e 270 mil óbitos, enumerei neste espaço a quantidade de
pessoas de meu círculo de convivência que tinham perdido seus queridos.
Foram-se o neto do Luiz Sacopã, o avô e o padrasto do Felipe, a avó e o tio da
Daiene, o pai da Fabricia, a mãe e o pai do Stanley, o pai da Fernanda, o
sobrinho e a irmã da Ana Claudia, a mãe da Rachel, o pai da Telma, o pai da
Juliana, o pai da Thux. De lá para cá, morreram o Sandro, o avô da Gabriela, o
pai da Lucia Helena, a prima da Rita, o Aloy, a Najá, o padrasto da Georgia, o
pai da Raquel, o irmão do Caíque, a irmã da Charlene.
Não há
uma família no Brasil que não tenha sido alcançada pela doença, pela morte ou
pelos efeitos socioeconômicos perversos do enfrentamento precário à pandemia.
Jair Bolsonaro e seu entorno minimizaram a gravidade da crise sanitária. Desprezaram
o protocolo de prevenção, recomendaram medicamentos comprovadamente ineficazes,
negligenciaram a compra de vacinas, são incapazes de administrar a escassez de
imunizantes.
Não por
acaso, o presidente brasileiro ainda ontem foi criticado no Parlamento Europeu
pelo negacionismo e acusado pelo eurodeputado espanhol Miguel Urbán de crime
contra a Humanidade. Foi a mesma insinuação que fez o senador Renan Calheiros
no severo discurso de posse na CPI da Covid:
—Não foi
o acaso ou flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há
culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência, e eles serão
responsabilizados. Essa será a resposta para nos reconectarmos com o planeta.
Os crimes contra a Humanidade não prescrevem jamais e são transnacionais.
Slobodan Milosevic e Augusto Pinochet são exemplos da História. Façamos nossa
parte —declarou.
Eu me
alongaria em cada um desses temas que me atravessaram na última semana, mas
tenho de me ocupar de uma conquista civilizatória desprezada por uma autoridade
brasileira. No rol de declarações infelizes que integram o currículo do
ministro da Economia, nenhuma se compara a maldizer a medicina por ampliar a
vida dos brasileiros, como fez esta semana:
—O
Estado brasileiro é um Estado quebrado. Quebrou. E ele quebrou no exato momento
em que o avanço da medicina... Não falo nem da pandemia, falo do direito à
vida. Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130. Todo mundo vai procurar o
serviço público. E não há capacidade do Estado.
À
ciência, às vacinas, aos medicamentos, ao sanitarismo, à queda da mortalidade
infantil, Paulo Guedes deve a longevidade que lhe permitiu chegar ao cargo.
Nascido em 1949, quando a esperança de vida dos brasileiros não passava de 45
anos, chegou à cúpula da República aos 69. Viveu para maldizer a mais celebrada
etapa das tendências populacionais, quando as famílias são preservadas pela
sobrevivência das crianças e pela longevidade dos idosos. Desde os anos 1940, a
esperança de vida no Brasil aumentou três décadas, batendo 76 anos em 2019 (73
para homens, 80 para mulheres).
Cresceu ininterruptamente até o ano passado. Por causa da pandemia, que abateu principalmente pessoas com 60 anos ou mais de idade, principal grupo de risco da doença, demógrafos estimam que, em 2020, os brasileiros tenham perdido um par de anos de vida. Neste 2021, ainda mais mortal, a diferença entre os registros de nascimentos e óbitos vem caindo, o que sugere que a população do país pode diminuir em termos absolutos entre 2035 e 2040, uma década antes do previsto. É difícil sobreviver à malévola trindade Covid-Bolsonaro-Guedes. Vade-retro.
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