Falta de
censo proporciona escuridão desejada
“Porque no acúmulo de sabedoria, acumula-se
tristeza, e quem aumenta a ciência, aumenta a dor.” A julgar pelas ações do
governo Bolsonaro e pela sua devoção ao Livro Sagrado, o lema de sua
administração deveria ser esta constatação que está em Eclesiastes 1:18, e não
o sempre citado João 8:32 (“Conhecereis a verdade e ela vos libertará”). O
aumento do conhecimento, com suas incômodas revelações, parece torturar a
administração federal, em que desde seu início declarou guerra aos radares,
questionou o mapeamento da devastação na Amazônia, lançou suspeitas sobre as
estatísticas de desemprego, tentou interferir na contagem de mortos da pandemia
de covid-19 e por fim sabotou o censo demográfico que deveria ter sido feito em
2020 e talvez só ocorra em 2023.
Vivemos tempos estranhos, como gosta de dizer o ministro Marco Aurélio Mello, que no Supremo Tribunal Federal acatou anteontem um pedido de liminar do governo do Maranhão para obrigar a realização do censo ainda este ano. Não dá para arriscar prognóstico sobre o que o plenário do STF fará em relação a essa liminar, já na próxima semana.
O
Supremo tornou-se o escoadouro último de todos os contenciosos da sociedade e
cabe a Marco Aurélio, por exemplo, decidir tanto sobre a realização do censo
quanto sobre o peso da embalagem dos sacos de cimento produzidos no Espírito
Santo. Executivo e Legislativo, os Poderes a quem cabe a definição e a gestão
do Orçamento, estabeleceram que o censo não é prioridade, embora a sua
realização decenal esteja prevista em lei.
O
governo deve usar a pandemia como argumento para o cancelamento do censo, mas a
inicial apresentada pelo governo do Maranhão mostra que fechar o visor da
sociedade sobre o que nós nos tornamos na era Bolsonaro parece ser deliberado.
Lá se
historia que Bolsonaro assumiu com uma previsão orçamentária de R$ 3,4 bilhões
para a consulta. A presidência do IBGE foi trocada em fevereiro de 2019, a
diretoria de pesquisas substituída em maio deste ano e em junho foi apresentada
a redução do censo, de 112 para 76 perguntas no questionário da amostra e de 34
para 25 no formulário básico. Com isso diminuiu-se a verba para R$ 2,3 bilhões.
A dupla formada pelo relator do Orçamento e o ministro da Economia fizeram o
resto do serviço este ano para deixar somente R$ 53 milhões em recursos.
Se em
2021 pareceu tão pouco importante realizar o censo, certamente em 2022, um ano
eleitoral, haverá para governo e base parlamentar gastos mais relevantes do que
fazer a medição. Não realizá-lo agora é adiá-lo mais dois anos, e não um ano
só.
Os
efeitos mais graves do atraso do censo são bem conhecidos. Prejudica políticas
públicas que envolvam alocação de recursos federais de modo geral. No universo
de danos há um, entretanto, que mesmo não sendo nem de longe o mais importante,
está encoberto e causa dano político: os estragos nas pesquisas de opinião
pública, particularmente as eleitorais.
As
pesquisas precisam definir um universo para iniciar a amostra. Entrevistar na
medida certa pessoas que retratem no microcosmo a diversidade social que
permita transpor os achados da parte para o todo
Mesmo
sem atraso do censo isso é difícil no Brasil, país onde a realidade social é
porosa, com variações bruscas em curto espaço de tempo. Na escuridão
proporcionada pelo governo Bolsonaro, todos vão ter que tatear.
“Qual o
percentual de evangélicos que existe atualmente no Brasil? Qual exatamente a
porcentagem da população que se autodeclara preta? Qual o tamanho da classe C?
O prejuízo é enorme”, comenta o diretor científico do Ipespe, Antonio Lavareda.
Como se
sabe que o presidente Jair Bolsonaro tem mais aceitação entre os evangélicos e
menos entre os que se autodeclaram pretos; há viés para todos os gostos nos
levantamentos feitos.
“Nossos
modelos vão ficando defasados. Outro exemplo é o perfil demográfico. A
população brasileira está envelhecendo. A estimativa de jovens pode estar
superdimensionada nas pesquisas”, diz Mauricio Moura, do Instituto Ideia Big
Data.
Uma
estratégia para contornar essa dificuldade é limitar a amostra apenas aos dados
para os quais há estimativas oficiais da Pesquisa Nacional por Amostragem
Domiciliar (Pnad), que não foi interrompida. Mas ainda assim a base é movediça.
“A Pnad também é uma pesquisa, com margem de erro. Portanto, o levantamento
eleitoral é uma pesquisa que toma como base outra pesquisa”, diz Márcia
Cavallari, CEO do Ipec, empresa de pesquisas.
A partir
de uma amostra com cotas mais reduzidas do universo social, pesquisas como a do
Ipec procuram identificar nas entrevistas o total de evangélicos, por exemplo.
Márcia diz que levantamentos situam a população evangélica no Brasil entre 27%
e 30% na atualidade, significativamente mais do que o censo.
O
problema é como submeter os achados das pesquisas a um controle para se saber
se há ou não problemas no universo amostral. Pesquisadores como Andrei Roman,
do Atlas Político, tentam fazer esse controle pelo resultado da última eleição.
Sabe-se
que em 2018 Bolsonaro teve 49,8% dos votos totais no segundo turno e Haddad
40,5%. Se o total das entrevistas de uma pesquisa de hoje for feita com este
percentual de eleitores que optaram por Bolsonaro e Haddad na eleição passada,
a chance de se ter um quadro fidedigno da sociedade no universo pesquisado
aumenta. Mas quem garante que o bolsonarista arrependido fala a verdade quando
perguntado sobre seu voto há três anos? Não há controle perfeito.
“A gente
calibra a pesquisa com esses controles, mas não é uma situação confortável. É
difícil até explicar no exterior o grau de incerteza que existe no caso
brasileiro”, diz Roman.
Voar por instrumentos é o que resta, não apenas em relação a pesquisas eleitorais, mas a qualquer tipo de pesquisa. As consequências de apostas feitas pelo governo federal desaparecem da linha do horizonte. Há loucura no método, como sempre.
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