Bolsonaro
deu voz aos que viviam nas sombras, esgueirando-se nos escuros da história
nunca visitados pela teoria política
A instalação
da CPI da Covid mexe com os bofes de Jair Bolsonaro. Agride o
seu senso de onipotência —injustificado segundo um crivo objetivo, mas
compreensível se visto por lentes clínicas. O golpista de primeira hora, que
nunca precisou de comissão de inquérito ou de oposição organizada para pregar o
rompimento da ordem —como provam os atos antidemocráticos que patrocinou já em
2019—, não aceita que sua obra seja questionada. Os, até agora, mais de 400
mil mortos são o seu grande legado ao lúmpen-milicianato que o
aplaude.
A política sempre deve ter precedência na análise da vida pública, embora os dados de personalidade não possam jamais ser ignorados. Uma leitura mais aberta de Maquiavel sugere que a “fortuna” e a “virtù” —a história herdada que condiciona alternativas e as escolhas ditadas pela personalidade— também podem ter um enlace negativo. Em vez de surgir o Príncipe, eis que aparece o ogro, que a democracia tem de esconjurar. Ou morreremos todos.
Assim, é claro que, ao não arredar um milímetro das posições as mais estúpidas e reacionárias, que muitos enxergam danosas e contraproducentes para seu próprio futuro político, Bolsonaro age com cálculo. Ele deu voz a esse público que existia nas sombras; que se esgueirava nos escuros da história; que se acoitava nos desvãos nunca visitados —não de modo suficiente ao menos— pela teoria política.
Há
nesses cafofos mentais um potencial de ressentimento odiento; de rancor
acumulado contra virtudes vistas como inalcançáveis —pouco importando se as
limitações são objetivas ou subjetivas—; de repulsa a tudo o que escapa de suas
escolhas, tidas como valores universais. Encontram no presidente a sua voz.
Essa
esfera de sentimentos e sensações é infensa a dados da realidade fática. A
evidência do erro só reforça a convicção. Daí a fúria
patológica contra a imprensa, por exemplo.
Querem
uma prova? A crítica ao
distanciamento social, sob a alegação de prejuízos à economia,
expressa uma racionalidade torta. É um erro, sim, mas faz sentido. O que
explica, no entanto, a repulsa de muitos à máscara senão a reação dos que se
sentem tolhidos na sua vontade e reprimidos por um mundo que não compreendem,
por valores que lhes são distantes, por um discurso que entendem ser só
afetação e hipocrisia?
Na arte
e na vida, esse caldo alimentou os fascismos. Leiam “M, o Filho do Século”, de
Antonio Scurati, sobre os primeiros anos da trajetória de Mussolini, o
trânsfuga. Vejam ou revejam o filme “Lacombe Lucien”, de Louis Male, e percebam
como o oprimido pode encontrar no peito do opressor o regaço para a sua ascese,
ainda que destrutiva.
Bolsonaro
pode não saber exatamente o nome do que pratica —embora viva cercado de alguns
que o sabem—, mas já
percebeu ter um público cativo —em mais de um sentido. O que um
olhar objetivo e crítico apontaria como um tiro no pé é precisamente a seiva,
vertida como fel, que plasma em eleitorado os ódios que ele açula e alimenta.
E, por essa razão, o presidente não desiste nem recua nunca. Aí está a sua
fortuna —este texto está pleno de palavras polissêmicas.
Nesse particular sentido, raramente houve no Brasil um representante que expressasse com tanta fidelidade o universo mental dos seus representados e que estivesse tão à altura do momento. Ele soube pôr as suas características pessoais a serviço da terra que a Lava Jato arrasou. É emblemático que, neste momento, o senador Renan Calheiros —uma das caças de predileção de procuradores— seja o homem mais temido pelo presidente e pelos fascistoides que ele mobiliza.
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