É
preciso que haja mais debates. Não importa quais serão os candidatos, eles
precisam falar mais sobre suas propostas
As
principais políticas públicas do país estão no caminho errado. O desempenho do
Ministério da Saúde no combate à covid-19 foi um dos piores do mundo. A área
ambiental foi destruída pelo antiministro e, enquanto ele continuar no cargo, o
mundo não vai acreditar nas promessas feitas pelo governo brasileiro. O MEC abandonou
os governos subnacionais e as escolas na pandemia, o que vai aumentar a
desigualdade entre os alunos, no curto e no longo prazo. A lista de equívocos é
longa e assustadora, e sua origem inicial está no processo eleitoral de 2018.
Como evitar a repetição desse erro é uma das tarefas fundamentais para sair das
trevas atuais.
Várias razões explicam as origens desse erro eleitoral, mas uma delas foi estratégica: a campanha foi muito curta e, sobretudo, houve poucos debates públicos com os principais candidatos, o que ficou ainda pior por causa da ausência do vencedor da eleição na controvérsia direta contra seus oponentes. Em defesa do presidente eleito pode-se dizer que ele sofrera um terrível atentado, o que é verdade. Mas no segundo turno Bolsonaro foi a inúmeros eventos públicos e deu entrevistas ao “jornalismo-amigo”, de modo que poderia ter ido aos debates contra seu adversário, mas preferiu fugir.
Bolsonaro
não foi aos debates porque estava despreparado para ocupar a Presidência da
República. Há três provas cabais disso, vinculadas ao seu plano de governo, às
qualidades técnicas e políticas dos apoiadores mais próximos e do próprio
futuro presidente, bem como à visão de mundo mais geral do bolsonarismo, tanto
em termos de projeção de futuro para o país, como também em seu comportamento
político.
Em
primeiro lugar, o programa de governo foi o pior feito por um presidente eleito
desde a retomada da democracia. Reduzido no tamanho e com pouquíssimo
aprofundamento das ideias propostas, o programa de governo bolsonarista
espalhava slogans e mitos sem a devida comprovação. Com erros básicos no uso
dos dados, que nem mesmo alunos do primeiro ano de faculdade cometeriam, o
projeto bolsonarista era claramente anticientífico, pois as principais
evidências em educação, meio ambiente, segurança pública e saúde foram
completamente ignoradas.
Uma
lição ficou dessa história: os programas de governo precisam ser mais
discutidos pela sociedade e, particularmente, pela imprensa de massa, como a
TV. Geralmente, a mídia faz umas poucas matérias sobre as propostas
formalizadas dos candidatos, mas o melhor caminho seria chamar, num primeiro
momento, os candidatos para discutirem os programas de todos, e, num segundo
momento, chamar especialistas nacionais e até internacionais, nas várias áreas
de políticas públicas, para discutir a pertinência das ideias de cada
concorrente. Quanto mais houver escrutínio público dos programas de governo,
mais chances haverá de se evitar que despreparados cheguem à Presidência da
República.
O
segundo fator que comprova o despreparo de Bolsonaro está na qualidade das
pessoas que apoiaram mais diretamente sua candidatura. Como já disse em artigo
recente, os piores nomes dominam hoje grande parte dos postos da Esplanada dos
Ministérios. Quem não percebeu isso, procure lembrar o nome do ministro da
Educação e compare suas ideias para a área com o que é feito pelos países com
melhor desempenho educacional. E não para por aí. Por mais de um ano, o
Ministério da Saúde foi ocupado por pessoas que desconheciam completamente o
setor - o próprio ex-ministro Eduardo Pazuello disse que nem sabia o que era o
SUS. A militarização da política sanitária provou que não se pode improvisar
com problemas coletivos complexos, pois uma pessoa pode ser habilitada para uma
função e ser completamente despreparada para outra.
O pior
de tudo isso é que o Brasil tem grandes acadêmicos, especialistas e gestores
governamentais reconhecidos internacionalmente. Uma procura em bons sites
especializados traria uma lista de nomes qualificados. Quantos desses foram
chamados pelo atual governo? Quase ninguém. Bolsonaro prometeu que só chamaria
“técnicos” para compor o núcleo de seu governo. Promessa descumprida: colocar
policiais militares no Ibama, gente com currículo acadêmico pífio na educação,
pessoas que nunca trabalharam com a cultura na respectiva secretaria, para
ficar só em alguns exemplos, demonstra como o governo Bolsonaro é formado por
amadores despreparados para as várias funções, que só estão lá porque obedecem
completamente ao chefe maior.
Os
debates na campanha deveriam discutir os principais nomes que assessoram os
candidatos e que podem se tornar peça-chave para a qualidade do futuro governo.
Mas não só o time de assessores faz diferença. É necessário também analisar a
trajetória e as características pessoais dos presidenciáveis. Olhando para a
biografia de Bolsonaro, não só ele não tinha comprometimento com a democracia e
não fizera nada de relevante em 30 anos de Congresso Nacional, como nunca
aprendera nada com as mudanças no mundo. Como todo governante despreparado, não
é capaz de admitir e aprender com suas falhas. Isso poderia ter sido mais
colocado em questão durante a campanha.
Há um
terceiro e último elemento que já antecipava o despreparo para o cargo presidencial.
Trata-se da forma como Bolsonaro e seu grupo se colocam frente ao mundo, em
termos de ideias sobre o futuro almejado para o Brasil, formas de reagir à
adversidade e a disposição em dialogar e aprender com os outros. Desde a
campanha, percebeu-se que o bolsonarismo tinha um modus operandi muito claro:
queria a volta ao passado em termos de valores e políticas públicas, não tinha
muito respeito pela democracia e incentivava o ódio aos adversários.
O que
vigora no grupo governante é o que pode ser chamado de “Planeta Bolsonaro”.
Neste lugar distópico, imperam ideias e propostas que não são adotadas e/ou
implementadas por nenhum outro país bem-sucedido nas diversas políticas
públicas. A proposta educacional bolsonarista contém o contrário dos cardápios
utilizados por nações que melhoraram sua educação nos últimos anos. A visão
sobre a questão ambiental do bolsonarismo é o inverso do que está se firmando
como um consenso mundial. Na mesma linha, a luta contra a desigualdade, não só
de renda, mas com ações de defesa de minorias e da diversidade, é um processo
crescente no mundo, enquanto as políticas do governo brasileiro vão no sentido
contrário.
A
construção do “Planeta Bolsonaro”, como um “mindset” que organiza o atual
governo, não dialoga com as ideias e grupos que procuram enfrentar os desafios
do século XXI. O Brasil ficará ainda mais para trás com as políticas do governo
do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, que vão inspirar boa parte do
mundo. A fonte desse reacionarismo radical vem de uma parcela da sociedade
brasileira, que pode ter de um quinto a um terço dos eleitores, que está
preocupada em evitar que as transformações do mundo contemporâneo cheguem aos
seus lares. Não detém a maioria da população, mas consegue emperrar as
necessárias decisões que deveríamos tomar para não construirmos aqui um
salazarismo do século XXI, para lembrar o ditador português que atrasou por
décadas a modernização da sociedade portuguesa.
A
campanha de 2022 não pode repetir a de 2018. Os programas de governo devem ser
discutidos exaustivamente. Não importa quais serão os candidatos: eles precisam
falar mais sobre suas ideias, definirem como lidarão com situações difíceis,
debaterem com outros concorrentes e serem testados pelo contraditório de
especialistas, jornalistas independentes e cidadãos. Afinal, bons governos
baseiam-se em propostas consistentes que necessariamente têm de passar pelo
debate público.
Além
disso, os nomes dos assessores devem ser conhecidos e analisados profundamente.
Uma prévia de boa parte da equipe governamental deveria ser apresentada por
todos os concorrentes. Desse modo, seria possível confrontar o plano de governo
com a biografia e qualidade de seus prováveis implementadores. Soma-se ainda a
isso a necessária análise das trajetórias e características de cada um dos
presidenciáveis, tomando como principais qualidades a habilidade de dialogar e
de agregar, além da capacidade de aprender com seus próprios erros.
Tão
importante quanto o programa de governo e o conhecimento dos membros que o implementarão
é a análise do “mindset” de cada grupo que disputa a Presidência. Sugiro quatro
questões orientadoras aos condutores dos debates que deveriam ser feitas para
todo concorrente a presidente. Primeira: como o senhor imagina que deve ser o
país daqui a 20 anos num conjunto amplo de áreas (educação, meio ambiente,
saúde, economia, cultura)? Segunda: que medidas adotará para que esse cenário
se realize? Terceira: em que ideias, experiências de países e líderes
governamentais o senhor se inspira para propor mudanças ao Brasil? E, por fim,
como reunirá as pessoas em torno de suas propostas?
Para que
uma campanha melhor aconteça em 2022, o período eleitoral deve ser maior e as
regras sobre os debates deveriam ser melhoradas, fortalecendo o contraditório
baseado em conhecimento sobre as políticas públicas. É sobre isso que o
Congresso Nacional e a sociedade deveriam estar debruçados agora se quiserem
que o Brasil tenha futuro. Seria a melhor reforma política para enfrentar as
barbaridades produzidas no “Planeta Bolsonaro”.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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