Nesta já são
conhecidos os fatos sobre a responsabilidade do governo e de Bolsonaro
A instalação da CPI da pandemia inaugura uma nova fase na política, embora não tenha efeito imediato sobre a crise sanitária em si. Acompanhei muitas CPIs no passado, mas esta tem características especiais. Não pede oposicionistas exaltados, muito menos documentos ou testemunhas bombásticos. A singularidade desta investigação é a de trabalhar com fatos conhecidos, que precisam apenas ser articulados e documentados para que a responsabilidade do governo, especificamente a de Jair Bolsonaro, fique muito clara.
Nesse sentido, a
experiência dos senadores envolvidos é um dado positivo, porque, embora não se
tenham destacado nesse gênero de trabalho, têm as condições necessárias para
suprir lacunas que ainda existem na compreensão dessa tragédia humana.
Pela experiência
passada, tendo a pensar que uma CPI nunca produz resultados jurídicos
imediatos. De modo geral, seu impacto é político, as consequências jurídicas
seguem um curso necessariamente mais lento.
Foi assim, por exemplo, com a CPI dos Sanguessugas. Ela derrotou a maioria dos envolvidos nas eleições de 2006, porém quase nenhum deles chegou a ser julgado nos anos que se seguiram.
Parece que o
plano de trabalho da comissão vai enfocar inicialmente a questão das vacinas. É
uma opção, porque nesse particular os erros repercutem em vidas perdidas e
Bolsonaro tem uma posição especial. Ele foi, segundo o Le Figaro, o único
presidente que resistiu às vacinas como instrumento estratégico.
Inicialmente,
Bolsonaro flertou com o movimento antivacina, insinuando os perigos de efeitos
colaterais. Está gravado o famoso episódio em que mencionou a possibilidade de
o vacinado virar jacaré, de homem falar fino ou de crescer barbas nas mulheres.
Embora não tenha sido explícito, referia-se às vacinas produzidas com a técnica
de RNA mensageiro, especificamente as da Pfizer e da Moderna. Nas redes
bolsonaristas, afirmava-se até que esse tipo de vacina iria alterar o DNA das
pessoas.
Bolsonaro também
combateu a Coronavac, por causa de sua origem, a China, e de seu intermediário
no Brasil, o governador paulista, João Doria.
No capítulo dos
documentos, acaba de ser noticiado que Bolsonaro recusou 11 propostas de compra
de vacinas. Quem não se lembra de sua arrogância: o Brasil é um grande
consumidor, os laboratórios têm de nos procurar? Como se não bastassem essas
indicações para o trabalho, houve uma entrevista do ex-secretário de Comunicação
do governo Fabio Wajngarten revelando como a incompetência impediu a compra de
vacinas da Pfizer no momento em que foram oferecidas.
Isso são apenas
trilhas para um dos tópicos. O próprio governo enunciou 23 acusações para as
quais prepara a sua defesa, numa espécie de demonstração antecipada da própria
culpa.
Outro ponto que a
CPI deve examinar é o episódio de Manaus, com quase três dezenas de mortos por
falta de oxigênio. O Ministério da Saúde sabia da crise e a discutia desde
dezembro do ano passado. Não soube antecipar-se a ela e tentou caminhos
equivocados, como o tratamento com hidroxicloroquina.
Nesse campo, a
Polícia Federal (PF) já deve ter avançado um pouco, pois foi aberto inquérito a
partir de determinação do STF. A CPI certamente vai munir-se desse material,
mas seria interessante seguir um roteiro próprio. A pressão sobre a PF é muito
grande. Recentemente foi afastado o delegado Alexandre Saraiva, por ter
denunciado a cumplicidade de Ricardo Salles com madeireiros ilegais.
Num tema tão
vasto, é preciso distinguir os erros que influem diretamente na morte das
pessoas e no seu sofrimento. Um deles é a incompetência em abastecer o País de
sedativos e relaxantes musculares, indispensáveis para a intubação. Há
documentos sobre esse desleixo.
O episódio da
hidroxicloroquina vai tomar semanas. Desde a importação dos insumos da Índia e
a escolha dos laboratórios do Exército para processar a cloroquina até as
campanhas abertas de propaganda de Bolsonaro para o uso do remédio e os ofícios
do Ministério da Saúde, existe farto material, que se pode estender aos
empresários que possivelmente lucraram com esses medicamentos.
Na
impossibilidade de percorrer as duas dezenas de tópicos, limito-me a lembrar um
deles: a mortandade nas aldeias indígenas. Pouco discutida no Brasil, é o que
mais repercute no exterior, sobretudo nos processos enviados ao Tribunal
Internacional.
Esse tema acabou
no STF, que se incumbiu de obter do governo um comportamento compatível com o
dever de proteger as diferentes etnias. O ministro Barroso tem tentado, mas
seria bom ouvi-lo sobre o que não conseguiu nesse campo. Naturalmente, os
líderes indígenas devem ser ouvidos e analisados os vetos de Bolsonaro a uma
série de medidas que originalmente se dedicam à proteção das aldeias durante a
pandemia. Isso também é documento.
Enfim, é um
trabalho tão longo que não consigo sintetizá-lo aqui. Como em outras CPIs, o
apoio da opinião pública será vital, mas nesta o conhecimento do tema a
qualifica para exigir um trabalho sério e profundo.
*Jornalista
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