A recidiva fascista frustrada de 2021 não foi
um ponto fora da curva, consiste, ao contrário, em mais uma confirmação da
natureza trágica da nossa sociedade nascida no ventre malsão do latifúndio
escravocrata que a condenou a uma história infeliz apesar dos esforços
realizados para se emancipar dessa triste condição. Não têm sido poucas as
tentativas de exorcizar esses males de origem, algumas delas longamente
maturadas em décadas, como a que frutificou em meados dos anos 1960, atalhada
pelo golpe de 1964 a que se seguiu uma implacável perseguição das lideranças
sindicais do movimento operário e do mundo agrário, em muitos casos com a
eliminação física dos seus dirigentes
Sobretudo naqueles anos processos novos
animaram as classes subalternas que se emanciparam da tutela exercida pelo
Estado pelo sistema do corporativismo sindical que nos vinha dos anos 1930 e,
no mundo agrário, disseminou-se a criação de sindicatos dos trabalhadores do
campo e a organização de movimentos em favor de uma reforma na propriedade
rural. Na sociedade política e entre os intelectuais, na literatura, nas
ciências sociais, no cinema, na dramaturgia, esse será um tempo de ruptura com
o passado e de esperança no futuro, interrompido pela larga coalizão de tudo
que persistia como taras da nossa má formação.
O movimento pendular a que parece estarmos
submetidos, segundo os famosos diagnósticos em meados dos anos 1850 de
Justiniano José da Rocha e do ministro Golbery na recente ditadura militar sobre
o caráter da nossa política, mais uma vez se impôs com as duas décadas de ditadura
que nos sobressaltaram até os idos de 1985. Politicamente acuado por uma larga
coalizão democrática escorada em massivas e inéditas manifestações, seus
dirigentes negociam com as lideranças oposicionistas uma via de transição para
o retorno à legalidade que culminou com a convocação de uma assembleia
constituinte que nos trouxe a Carta de 1988 numa promessa de tempos menos
infortunados.
Mas, a genética tem suas leis próprias, e a
nossa má conformação congênita nos trouxe de volta às trevas, agora
imprevistamente pela via eleitoral, com a vitória na sucessão presidencial de
Bolsonaro, candidato de um inexpressivo partido, mas apoiado pelos grandes
interesses capitalistas do emergente agronegócio com muitas de suas raízes originárias das cediças relações
do patrimonialismo agrário, e pelo pessoal das finanças especializado em drenar
recursos públicos em proveito próprio encapuçados de empresários modernos no
estilo faria-limers.
Dessa vez, contudo, sem retorno às práticas
da modelagem das modernizações autoritárias, recorrendo a uma interpelação
direta ao discurso do neoliberalismo próprio ao reacionarismo dos círculos
trompistas dos EEUU. Há algo de novo nesse bicho que em nada se assemelha ao
ornitorrinco que tempos atrás frequentou as análises do sociólogo Francisco
Oliveira. Ele é de conformação abstrusa na medida em que os militares, espinha
dorsal do governo Bolsonaro, descendem ideologicamente do positivismo e, como
tais, comungam ideais em que a dimensão do público e o papel do Estado exercem
papeis dominantes na organização da vida social, em clara desconformidade com a
narrativa neoliberal.
Não se pode contar a história da
modernização brasileira sem a forte presença dos militares tanto em suas
configurações abertamente autoritárias como naquelas em que coexistiu com
regimes de inclinação liberal. Eles foram protagonistas na montagem das bases
da industrialização do país, diretamente envolvidos nas questões-chave do aço e
do petróleo, assim como no período da última ditadura militar conceberam com
sucesso as iniciativas que propiciaram a emergência do agronegócio em regiões
de fronteira. Formados nessas tradições, seus vínculos com a política atual,
fora motivos contingentes e precários que podem se esvair no ar, não devem
fornecer escoras firmes para um eventual golpe que pretenda estabelecer um
regime militar capitaneado pela farsesca figura de Bolsonaro.
Sem eles a sustentar seus projetos
delirantes de se manter no poder depende do voto, resta a Bolsonaro explorar os
caminhos conhecidos secularmente pelas elites brasileiras do atraso político e
social em que ainda vive grande parte da nossa população, sujeita ao mandonismo
local nas regiões retardatárias do mundo agrário e no urbano a milícias que as
submetem pelo terror, essas últimas cultivadas pela política bolsonarista,
particularmente no Estado do Rio de Janeiro, como é de conhecimento público. A
essa massa amorfa a sua política de mobilização eleitoral agrega numerosos
contingentes da nova ralé de setores médios da população, ressentidos com sua
desqualificação social e temerosos de perderem o que ainda os mantém abrigados
da proletarização, base sobre a qual pretende organizar, se for o caso, suas
falanges fascistas. No vértice dessa pirâmide, a experiência recente lhe
ensina, precisa assentar as elites do agronegócio e das finanças.
Aí é que entra o mundo e suas
circunstâncias que não giram na órbita do leste europeu nem nas margens do
golfo pérsico e que são adversas dos círculos trompistas norte-americanos. A
emergência da questão climática para que o planeta acordou vulnera em cheio o
agronegócio na forma predatória com que é praticada pelo regime Bolsonaro,
objeto de repúdio no Ocidente desenvolvido já atento em lhe impor limites. A
América de Biden se reencontrou com uma Europa que se democratiza e concede
lugar ao discurso de valorização dos direitos humanos, inclusive como tema nas suas
disputas com potências rivais, como a China e a Rússia. Esse não é um cenário compatível
com um projeto que nasceu sob a inspiração do regime de 1937 e do AI-5 de 1989,
que assim se vê obrigado a sondar suas possibilidades de subsistir no terreno
da competição eleitoral de mãos dadas com o Centrão.
Se os surtos de modernização autoritária
encontraram seu fim no governo que aí está, que oculta sua adesão ao patrimonialismo
numa profissão de fé de mentirinha no neoliberalismo, as vias para a
modernidade se encontram abertas para uma sociedade que se civiliza, exemplar
no seu enfrentamento da atual pandemia, quando remando contra a corrente leva a
cabo o programa da vacinação em massa da população com efeitos visíveis no seu
controle. O exame recente do Enem, realizado com sucesso apesar das tentativas
de tumulto presentes por iniciativa do bando no poder, vai na mesma direção. Por
toda parte são evidentes os sinais de animação da sociedade civil, inclusive
nos seus setores subalternos que se organizam como autodefesa da pandemia e da
luta contra a fome. O movimento pendular que a nossa história registra parece
agora se inclinar em favor da democracia, percepção que não deve faltar ao ator
político que a tem em mira. Com sua ajuda, mais seguramente o pêndulo vai
completar sua rotação feliz e tirar da nossa frente o entulho que embaraça
nossa livre movimentação. Com isso, de um só golpe acertamos as contas com esse
nefasto presente e com o que há de pior na nossa formação.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
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