Folha de S. Paulo
Talleyrand e La Rochefoucauld refletem,
respectivamente, sobre declaração de petista e reação inflamada de hipócritas
Convido Lula
e o PT a uma reflexão com uma frase que já virou um clichê: "Não
aprenderam nada nem esqueceram nada". É atribuída ao diplomata francês
Talleyrand ao se referir à volta dos Bourbons e sua turma ao poder na França,
no período da Restauração.
E um bom debate se faria se os petistas
respondessem com outra frase, igualmente espirituosa e verdadeira, na trilha de
La Rochefoucauld: "A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à
virtude".
Vamos sair do mundo das frases para o dos
fatos, que lhes conferem valor universal.
Junto-me àqueles que criticam duramente as afirmações feitas por Lula ao jornal El País sobre o nicaraguense Daniel Ortega. Ainda que repise argumentos, vá lá: Angela Merkel e Felipe González disputaram eleições limpas, seus adversários não estavam na cadeia, e o Poder Judiciário de seus respectivos países não eram formados por bonecos de mamulengo de um ditador.
Assim, não faz sentido associar os seguidos mandatos de Ortega —que fraudou a Constituição em conluio com juízes escolhidos a dedo— à longa permanência no poder daqueles dirigentes.
Ademais, como já se verifica, trata-se de
um erro de operação política que nem mesmo faz justiça à atuação de Lula como
presidente.
Se quisesse, teria mudado a tempo a
Constituição para disputar um terceiro mandato, para o qual teria sido reeleito
no primeiro turno. Escolheu outro caminho. Dilma sofreu um processo de
impeachment, e o PT deixou o poder pacificamente. Foi fazer a luta política.
Os governos petistas mantiveram relações
amistosas com ditaduras, a exemplo dos que os antecederam. Não é assim mundo
afora? Como é mesmo, Deng Xiaoping? "Não importa se o gato é preto ou
branco, contanto que cace ratos".
O Brasil
não tem de escolher o regime dos países com os quais se relaciona, embora,
entendo, deva se alinhar, nos fóruns multilaterais, com a defesa da democracia
e dos direitos humanos.
Ou venderemos soja, carne e ferro apenas a
regimes democráticos, condição para que importemos sua tecnologia? A pergunta é
meramente retórica. A que vem a condescendência de Lula com o governo da
Nicarágua?
Ecos, entendo, de um mundo que nem existe
mais, como já não existia aquele da Restauração: seu modo de ser era a
evidência de sua inviabilidade. Agora vamos a La Rochefoucauld.
Eu me indignei, sim, quando Lula afirmou
não saber por que os adversários de Ortega estão presos. Quando menos, esperava
dele empatia e solidariedade com aqueles que são encarcerados por motivos
políticos.
Afinal, no Brasil democrático, ele
próprio foi condenado por um juiz parcial e incompetente, por
intermédio de uma sentença sem provas. O então magistrado fez questão de deixar
claro, em embargos de declaração, que não as tinha.
Reportagens
da Vaza Jato e dados da Operação Spoofing apontaram o conluio entre
juiz e MPF, numa violação inquestionável do sistema acusatório. Que coisa! As
personagens centrais da Lava Jato disputarão o poder em 2022.
Sete meses depois de mandar Lula para a
cadeia, Sergio Moro aceitou ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Seis
dias antes do primeiro turno de 2018, divulgou trechos selecionados da delação
picareta —data venia!— de Antonio Palocci. Ao
postular a sua candidatura à Presidência, o agora ex-juiz propõe um certo
Tribunal Superior Anticorrupção e oferece a Ucrânia como exemplo.
Engana-se quem acha que estou justificando
ou minimizando as declarações do líder petista. Para citar Ulysses Guimarães na
promulgação da Constituição de 1988 —frase vivificada no excelente documentário
"8 Presidentes, 1 Juramento", de Carla Camurati—, tenho
"ódio à ditadura; ódio e nojo". A qualquer uma.
Mas lastimo o rigor salta-pocinhas de
supostos liberais, que se escandalizam com uma declaração inaceitável sobre o
governo da Nicarágua, mas confundem, no Brasil, o devido processo legal com
impunidade, condescendendo com um justiceiro que colaborou para a corrosão do
processo democrático e que agora se lança como o restaurador da ordem,
cavalgando um tribunal de exceção.
Sempre espero que políticos aprendam alguma coisa. E tenho tolerância zero com hipócritas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário