Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Tudo sugere que em boa parte a atual crise
política brasileira decorre da falta de um partido conservador, no correto
sentido da palavra, da tradição e da doutrina
Não faz muito, numa conversação informal
sobre o impasse político do momento brasileiro, ouvi de alguém que o país
precisa de um candidato de centro que se oponha à direita e à esquerda. Alguém
que personifique uma terceira via em relação ao bifrontismo político que nos
aprisiona desde que o PT se firmou como partido polarizante do processo
político brasileiro. Era ou ele ou mais nenhum. Essa equivocada concepção da
política abriu o caminho para a monstruosidade antidemocrática que venceu as
eleições de 2018.
Tanto o petismo quanto o bolsonarismo resultam da falta de alternativas ideológicas e partidárias que melhor expressem as identidades políticas socialmente possíveis e autênticas do povo brasileiro. Ou expressem a falta delas no comportamento eleitoral de uma classe média de perfil fragmentário, sem referências sociais determinadas, limitada às amedrontadas urgências do agora.
Se tivéssemos uma estrutura de representação política sem distorções sociais, novos sujeitos políticos, que surgiram no último meio século, teriam se manifestado eleitoralmente de modo diverso. Porém, ideologicamente capturados, eles já vinham sendo diluídos em designações abrangentes e genéricas, em categorias sociais que não são propriamente as suas, identificados no superficial e não no decisivo de seu modo social de ser. Uma falsa consciência autoritária usurpa e define como próprio o que é alheio.
O dilema brasileiro certamente não é o da
busca de uma terceira via. É o de construir uma alternativa democrática e
autêntica para o autoritarismo que, sob diversas formas políticas, está incrustrado
na maioria dos partidos.
A estrutura da sociedade brasileira e a
organização política que a expressa estão modeladas para favorecer e
multiplicar esse autoritarismo, que é o do mando e da obediência, da renúncia
ao que é próprio das personificações das diferentes situações e realidades
sociais. Isso nos vem da juridicamente dupla escravidão de nossa formação
social, a escravidão indígena e a escravidão africana. As derivadas
personalidades formadas nas referências sociais do temer e do obedecer e na
única alternativa que as atenua, a do bajular e enganar os que enganam. Ainda é
assim na atualidade.
A deformada república oligárquica,
instituída por um golpe militar, extinguiu a monarquia polarizada entre o
Partido Liberal e o Partido Conservador. Ao menos tínhamos ordem, lembra
Alberto Torres, uma referência do pensamento conservador no Brasil. Os dois
partidos alternavam-se no poder. O lúcido Euclides da Cunha, com o
discernimento de uma vocação de cientista político, assinalou que no Império os
liberais propunham inovações sociais e os conservadores, adaptando-as, as
executavam em seus governos e mandatos. Nenhum dos dois partidos tinha o
monopólio das decisões. Éramos autênticos na unicidade do duplo.
A Lei Áurea foi promulgada num governo
conservador, e não num governo liberal, para executar um projeto liberal, o do
trabalho livre.
Tudo sugere que em boa parte a atual crise
política brasileira decorre da falta de um partido conservador, no correto
sentido da palavra, da tradição e da doutrina. Conservador autêntico não
significa nem reacionário nem de direita. Para que por meio dele se expressem
politicamente aqueles muitos que, na falta dessa alternativa, caíram na
armadilha de uma extrema direita ignorante, oportunista e politicamente
incapaz. A que desmonta as instituições para impor a ordem social e o poder das
improvisações.
O nosso residual conservadorismo
doutrinário vem de uma grande tradição europeia, à qual Fernando Henrique
Cardoso se referiu em artigo publicado na “Folha de S. Paulo”, em 1986, quando
lembrou que “a posição conservadora costuma ter racionalidade e consistência”.
Sendo ele grande conhecedor da obra do
sociólogo húngaro Karl Mannheim, nessa afirmação tem em conta o referencial
estudo desse autor sobre “O pensamento conservador”. Nele, Mannheim estabelece
as conexões entre as situações sociais dos diferentes grupos, categorias e
classes da tradição pré-moderna e as ideias por meio das quais podem expressar
seu modo de ser, de conceber e de interpretar a realidade. E assim definir suas
próprias necessidades sociais.
Aliás, algumas referências fundamentais do
pensamento de esquerda procedem da tradição conservadora, a começar da premissa
teórica de totalidade e nela a ideia da poesia e da utopia do possível. O que
depende, no entanto, da superação do sectarismo ideológico dos seus mediadores
e intérpretes, que desconhecem o lugar das ideias, pela mediação dialética da
ciência e do retorno à práxis da mudança social, muito diversa e mais completa
do que a mera ação eleitoral.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp).
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