O Globo
Entramos o Ano-Novo com muitos doentes num
país doente. O Brasil está débil, infecção que antecede à peste. E há a peste.
A peste insiste. Também há o vírus influenza. Como não testamos a população,
ficamos todos sob uma massa disforme de perturbação, ameaçados, amassados,
entre sintomas — ao mesmo tempo aquela vontade de nos lançarmos às ruas, aos
beijos, aos suores de um verão em que talvez haja carnaval. Talvez. (Avante,
Império Serrano!)
Estamos cansados. Queremos acreditar e ir,
sem máscaras. Terá passado? Vai passar? O mal-estar, contudo. A esperança
desafiada pelo medo. Ou haverá quem não saiba, agora, de ao menos um que vai
contaminado? Não é bom.
É baixo o astral. Mas será o último ano de
Bolsonaro — dizem. Será? Não tenho essa certeza, em que vejo algum salto alto.
E ainda que sim: serão muitos os meses — e muitos os dispostos à forra — até
esse fim. Muitos os ressentidos, a serem muitos os estragos.
Até esse fim, sendo esse o fim, teremos
essa briga de rua — essa pegada miliciana nas relações sociais — concretizada,
executada, com cidadãos se espancando por filiações político-partidárias?
É chão que deveria nos preocupar. A beligerância é instituição estabelecida. O nosso horizonte ainda é um queiroga. E o bolsonarismo veio para ficar, mesmo sem Bolsonaro. O bolsonarismo é a materialização do espírito do tempo violento que empurra ao conflito, ao confronto, mesmo os não bolsonaristas; que aguça a mentalidade autocrática mesmo nos democratas.
Episódio recente me ocorre. O de Gilberto
Kassab, em entrevista a Nadedja Calado, da rádio CBN, reagindo com
agressividade a perguntas — contraposições jornalísticas — tecnicamente
perfeitas. Queria uma live para si, para falar — microfone aberto — o que
quisesse; e indisposto, em termos autoritários, a responder sobre o
presidenciável que forjara, Rodrigo Pacheco, cuja gestão do Congresso
formalizou o orçamento secreto.
Kassab foi Bolsonaro. Quantos mais serão?
Nosso tecido social se liquidifica; como
liquidificadas estiveram as cidades do sul baiano, transtornadas pelas chuvas —
transtornadas, como transtornado o país, por um presidente cuja ausência é
método. Bolsonaro não foi ver. Recorta-se um mundo. Ficou sobre o jet ski. O
desprezo, a ofensa, é alimento ao sectarismo. Ele não foi ver, com o que o não
visto existência não terá. Fabrica-se um universo apartado.
Não é boa a sensação de que pouco andamos —
e andamos muito, no entanto. Como andaremos se, de súbito, é política de
governo minar a vacinação de crianças? A impostura se desloca. Não faz muito, o
presidente agia contra a vacinação de adultos. O mundo real se impôs.
Vacinados, fazemos menos pressão sobre o sistema de saúde. Vacinados, morremos
menos. São obviedades. Ainda assim, o Brasil definha. Vacinado e definhante —
eis o país que virou para o novo ano. Definha porque a farsa — que alicerça a
necessidade de conflito — reconfigura-se, uma vez derrubada pela realidade.
Vacinados os brasileiros, a depressão
brasileira se aprofunda. Sobreviveremos num país só não morto porque países não
morrem. Mas que precisará renascer. É o que expressa Janaína Paschoal ao
desinformar sobre vacinas: “Vivemos um momento tão intrigante, que pessoas
vacinadas, com todas as doses, pegam Covid e recomendam a vacinação! Parece
piada. Ninguém acha, no mínimo, curioso?”. Não nos enganemos. É pessoa
inteligente. Que distorce — barbariza — conscientemente. Que se lança a esse
papel por haver identificado que seu futuro eleitoral depende de emular a
radicalização bolsonarista. Não estará sozinha.
Tenho um mau pressentimento sobre este 22.
Menos para a eleição. Menos relativamente à pandemia. Mais pela atmosfera. Pela
linguagem. Por tudo que está contratado até outubro — independentemente do
resultado das urnas. Sairemos moídos. Penso que se menospreza a capacidade
competitiva de Bolsonaro. Seu Sete de
Setembro, permanente, é ordem-unida. Investirá na instabilidade.
Soprará o apito sem parar. Tem base social. Vai acioná-la como se para guerra.
Fará o diabo. E é o presidente. Sentado na cadeira desde a qual, com seus
sócios e Paulo Guedes, compôs um orçamento dedicado à reeleição. Fará o diabo.
Precisaremos de honestidade intelectual
para que haja algum debate público. Ou Bolsonaro, ainda que derrotado, vencerá.
Sergio Moro foi o líder num processo que fraudou o Estado de Direito. E a
Petrobras foi pilhada, nos governos petistas, para financiar um projeto de
poder. Uma premissa importante é que se possam criticar os adversários de
Bolsonaro, o pior presidente da História do Brasil democrático, sem que isso
seja tomado como manifestação de apoio a ele. Lula é extremamente criticável.
Mas já se tornou necessário resistir à pressão canceladora — com pretensões de
interditar — segundo a qual apontar-lhe as fraquezas será trabalhar por
Bolsonaro.
Estamos no mesmo barco, turma, se a
democracia liberal for o norte — e ainda não é segundo turno. Vamos conversar.
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