Editoriais / Opiniões
O apito de cachorro
O Estado de S. Paulo
Agressão de um deputado bolsonarista contra Vera Magalhães é consequência direta do ataque do presidente à jornalista, que ousou lhe fazer uma pergunta incômoda
O deputado estadual bolsonarista Douglas
Garcia (Republicanos-SP) acossou a jornalista Vera Magalhães durante o debate
entre os candidatos ao governo de São Paulo promovido anteontem pela TV
Cultura. Na ocasião, disse que Vera era “uma vergonha para o jornalismo” – a
mesma frase usada pelo presidente Jair Bolsonaro ao agredir a mesma jornalista
durante recente debate entre candidatos à Presidência.
O episódio não serve somente para confirmar
o padrão bolsonarista de desrespeito a mulheres, a jornalistas profissionais e
à imprensa independente. Foi uma oportunidade para ver, na prática, como o
discurso virulento de Bolsonaro se presta a atiçar seus camisas pardas a
transformar palavras em ação. É a versão bolsonarista do “dog whistle”,
expressão da política norte-americana que pode ser traduzida literalmente como
“apito de cachorro” e que serve para definir frases do líder que são entendidas
por seus seguidores como uma espécie de comando.
Assim, quando o presidente Bolsonaro ataca
violentamente uma jornalista, o apito soa e essa jornalista se torna
imediatamente alvo preferencial dos arruaceiros bolsonaristas. Portanto, o
deputado que a agrediu não fez mais que emular seu adestrador. Esse truculento
parlamentar não teria se sentido à vontade para intimidar uma jornalista, e
ainda filmar sua agressão para torná-la pública como se fosse um grande feito,
se seu líder, o presidente da República, já não o tivesse feito.
É por isso que aos bolsonaristas que
pretendem se desvincular desse episódio, como é o caso de Tarcísio Gomes de
Freitas, candidato a governador de São Paulo, não basta condenar o deputado
Douglas Garcia. É preciso condenar o próprio presidente Bolsonaro, que soprou o
apito. O candidato Tarcísio chamou o deputado de “idiota” e pediu desculpas à
jornalista. Mas nada disse sobre a mesmíssima agressão que Bolsonaro cometeu
contra Vera Magalhães.
Recorde-se que a jornalista Vera Magalhães
se tornou foco dos fanáticos bolsonaristas porque fez uma pergunta que
incomodou Bolsonaro durante um debate. Foi o que bastou para sua vida virar um
inferno. Agressões contra jornalistas no exercício da profissão, quase sempre
mulheres, tornaram-se norma desde que Bolsonaro chegou ao Palácio do Planalto.
Em vez de responder à pergunta – que dizia respeito à campanha de vacinação contra a covid-19 – ou até mesmo, se achasse que era o caso, contestar civilizadamente o modo como a questão foi formulada, Bolsonaro resolveu ofender Vera Magalhães em sua dignidade e profissionalismo. Eis o padrão de comportamento do presidente em relação à imprensa que não lhe presta vassalagem: um misto de agressividade e diversionismo. Diante de perguntas incômodas, Bolsonaro agride e desqualifica quem as formula, sem responder ao que foi perguntado.
Eventuais críticas ao trabalho da imprensa
profissional e independente jamais serão mal recebidas em uma democracia. Os
próprios jornalistas, não raras vezes, as expõem. O que é absolutamente
inaceitável – e inconstitucional, vale lembrar – são agressões de qualquer
natureza contra jornalistas no livre exercício da profissão.
É contraditório, mas não surpreendente, que
bolsonaristas digam ser tão zelosos com a liberdade de expressão e com os
preceitos constitucionais, mas não respeitem a liberdade de imprensa consagrada
pela Constituição. O fato de alguém como o deputado Daniel Silveira, que faz da
violência seu programa político, ser tido como um “herói” da liberdade de
expressão no País por esses bolsonaristas mais empedernidos diz muito sobre a
ideia de “liberdade” que Bolsonaro dissemina entre seus apoiadores.
A despeito de todas as agressões de que têm
sido vítimas, jornalistas jamais deixarão de fazer as perguntas que tanto
incomodam Bolsonaro. Mais cedo ou mais tarde, o presidente terá de responder
sobre as “rachadinhas”, dezenas de imóveis comprados com dinheiro vivo e
cheques suspeitos depositados na conta da primeira-dama por Fabrício Queiroz, o
notório faz-tudo do clã Bolsonaro, entre outras perguntas inconvenientes.
Tesourada na saúde popular
O Estado de S. Paulo
Corte de recursos do Farmácia Popular no Orçamento de 2023 é terrível, mas não surpreende, ante o histórico de desprezo de Jair Bolsonaro pela saúde dos mais necessitados
Em mais um golpe contra a saúde dos
brasileiros, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cortar cerca de 60% da verba
do Programa Farmácia Popular, destinado à distribuição de remédios gratuitos ou
parcialmente financiados pelo governo, além de fraldas geriátricas. Fixado
inicialmente em R$ 2,04 bilhões, o gasto previsto para esse programa foi
reduzido na proposta orçamentária de 2023, enviada ao Congresso no fim de
agosto. Com isso, dificulta-se o acesso a medicamentos para hipertensão,
diabetes e asma, entre outras doenças, enquanto se preservam os muitos bilhões
do orçamento secreto, mantido graças ao entendimento entre o chefe de governo e
seus apoiadores do Centrão. Todos os produtos da Farmácia Popular servem para o
tratamento de problemas muito disseminados.
Se o corte de recursos for mantido, ficará
ameaçada até a sobrevivência da Farmácia Popular, advertiram técnicos do
governo citados pelo Estadão. A ação do governo como grande comprador
facilitou, lembraram essas fontes, o barateamento de produtos muito importantes
para a saúde de milhões de pessoas. Será importante considerar também esse
detalhe durante a tramitação da proposta orçamentária – se houver, é claro, um
número razoável de parlamentares interessados em discutir questões tão
importantes para a população. Esse tipo de preocupação tem sido raramente
notado durante a tramitação de projetos orçamentários.
Sem o apoio do programa, pessoas
dependentes dessa distribuição acabarão recorrendo ao Sistema Único de Saúde (SUS),
em busca de medicamentos de uso continuado e, portanto, essenciais para a
manutenção de condições mínimas de segurança. O risco dessa migração foi
apontado por Telma Salles, presidente da PróGenéricos, associação de
laboratórios do setor. Se isso ocorrer, uma grande pressão será deslocada para
um serviço público já comprometido com uma tarefa complexa, custosa e de grande
alcance social.
Embora terrível, a nova exibição de
desprezo à saúde pública pelo presidente Jair Bolsonaro nada tem de
surpreendente. Ao contrário, é perfeitamente compatível com seu currículo. Há
poucos dias, o presidente encenou uma autocrítica ao lembrar sua reação a uma
pergunta sobre a mortandade durante a pandemia. “Não sou coveiro”, foi sua
resposta, naquele momento. Com enorme atraso e, além disso, a poucas semanas da
eleição, ele ensaiou um lamento: “Eu dei uma aloprada, sim. Eu aloprei e perdi
a linha”, disse o presidente numa conversa com influenciadores evangélicos.
Há uma escandalosa desproporção entre essa
aparente autocrítica e o drama dos brasileiros na pior fase da pandemia. Não
houve uma “aloprada” passageira e contida nos limites de uma entrevista, num
dia qualquer de 2020. Houve, sim, um desastre ocasionado pela maior crise
sanitária em cerca de um século, num país sujeito a um chefe de governo
indiferente ao sofrimento e às mortes. Houve a atuação devastadora de um
Ministério da Saúde conduzido de forma incompetente, irresponsável e
devastadora. Houve um presidente empenhado em recomendar terapias ineficazes,
em propagar informações falsas, em combater as ações mais prudentes de
governadores e prefeitos e em retardar e dificultar a vacinação.
Não adianta esse presidente dizer-se
arrependido de algumas palavras infelizes, quando ele continua, em arranjos com
o Centrão, agindo contra o bem-estar e o desenvolvimento. Nem os gastos com
educação infantil e construção de creches foram sustentados em seu mandato.
Quem poderá acreditar em seu lamento, quase no fim da campanha eleitoral,
quando todos devem lembrar-se de sua mensagem mentirosa sobre vacina anti-covid
e HIV?
A proposta de Orçamento para 2023, com a
tesourada na verba da Farmácia Popular, é mais uma confirmação, em nada
surpreendente, do padrão bolsonariano de uso do poder. Quase quatro anos depois
de assumir a Presidência, Bolsonaro reafirma dia a dia sua preferência pelos
piores e seu desprezo à boa gestão, à prosperidade sustentável e, é claro, a
valores como educação, cultura, ciência e saúde pública.
Inflação de 0,1% assusta o mundo
O Estado de S. Paulo
Inflação persistente nos EUA alimenta temor de juros altos prejudicando por mais tempo a economia internacional
Má notícia para todo o mundo capitalista, a
inflação americana mexeu com as bolsas, incluída a brasileira, afetou os juros
e desviou fluxos de capitais, como se os mercados estivessem diante de uma
inesperada catástrofe. O grande susto foi causado pela divulgação dos números
de agosto, quando os preços ao consumidor subiram 0,1%, numa variação quase
nula. Aparentemente espantosa, a reação dos investidores logo foi traduzida,
pelas agências de informação, para os mortais alheios aos mistérios do jogo
financeiro. O novo relatório divulgado pelo governo dos Estados Unidos embute,
de fato, alguns sinais inquietantes, embora o presidente Joe Biden tenha
comemorado a quase estabilidade do indicador nos últimos dois meses.
Pelas previsões correntes, a inflação deveria
ter diminuído 0,1% em agosto. Com isso a taxa acumulada em 12 meses deveria ter
recuado para 8%. Mas o aumento mensal de 0,1% elevou a taxa anual para 8,3%, um
número muito alto e muito distante da meta de 2% perseguida pelo Federal
Reserve (Fed, o banco central americano). Embora tenha caído nos últimos dois
meses, a inflação medida em 12 meses continuou muito próxima do pico de 9,1%
alcançado em junho, a taxa mais alta em quatro décadas.
A persistente alta de preços impedirá,
segundo analistas, um afrouxamento da política anti-inflacionária do Fed. Os
juros, portanto, continuarão elevados, prejudicando a retomada do crescimento
econômico nos Estados Unidos e provocando efeitos econômicos e financeiros em
muitos outros países, incluído o Brasil. A onda inflacionária global levou
também o Banco Central Europeu (BCE) a aumentar recentemente a taxa básica da
zona do euro, impondo mais um entrave à atividade econômica.
No Brasil os juros básicos chegaram a
13,75% ao ano. Segundo projeção do mercado, a taxa poderá recuar para 11,25% em
2023, se a inflação ceder. Há um mês, no entanto, estimativas do setor
financeiro indicavam uma taxa de 11% no fim do próximo ano. Em 2024, segundo as
últimas previsões, os juros determinados pelo BC ainda estarão em 8%, mesmo com
a inflação recuando para 3,47%.
Juros altos no mundo rico, especialmente
nos Estados Unidos, limitam a política monetária no Brasil. Taxas elevadas na
economia americana são muito atraentes para investidores de outros países,
interessados tanto em ganhos financeiros quanto na segurança oferecida, por
exemplo, por títulos do Tesouro da maior potência mundial. Convém ao BC
brasileiro evitar a fuga de dólares, fator de desarranjo dos preços e,
portanto, de pressões inflacionárias. Os desmandos cometidos pelo Executivo e
pelo Centrão no manejo do dinheiro público já ocasionam muita instabilidade
cambial, complicando o trabalho do BC.
Juros altos nos Estados Unidos dificultam o crescimento no mercado americano, um dos mais importantes para o Brasil, e podem atrapalhar a economia brasileira. Há razões consideráveis, portanto, para os brasileiros se preocuparem com a inflação de 0,1% registrada em agosto nos Estados Unidos.
Agressões a jornalistas são inadmissíveis
O Globo
Deputado bolsonarista que agrediu colunista
do GLOBO deveria ser expulso do partido e da Assembleia
São inadmissíveis em quaisquer
circunstâncias agressões
como a sofrida pela jornalista Vera Magalhães, colunista do GLOBO e
apresentadora da TV Cultura, no debate entre candidatos ao governo de São Paulo
na noite de terça-feira. Vera foi alvo de ataques do deputado estadual
bolsonarista Douglas Garcia (Republicanos), integrante da comitiva do candidato
a governador Tarcísio de Freitas.
Num momento em que ela trabalhava numa área
reservada à imprensa, Garcia se aproximou e, gravando a cena munido de um
celular, passou a xingá-la, a cobrar a divulgação de informações sobre sua
remuneração — que já é pública — e repetiu uma frase agressiva e descabida
usada pelo presidente Jair
Bolsonaro em resposta a uma pergunta de Vera no último debate
presidencial. Só pôde ser contido pela segurança do evento. Vera teve de sair
escoltada do Memorial da América Latina, onde era realizado o debate.
Tarcísio depois se desculpou em nome dele e de sua campanha. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) também condenou o ataque em redes sociais. São manifestações desejáveis e esperadas ante tal absurdo. Infelizmente, insuficientes, pois não se trata de evento isolado. Há uma articulação contra profissionais da imprensa entre militantes que aprovam e reproduzem a atitude violenta recorrente de Bolsonaro diante de jornalistas que o desagradam. Nas manifestações do último 7 de Setembro havia faixas com slogans contra Vera — e ela está longe de ser o único alvo de ataques abjetos, dirigidos sobretudo contra mulheres, numa prova eloquente do machismo covarde que contamina a campanha bolsonarista.
Nenhum dos candidatos, é verdade, gosta das
perguntas incômodas feitas por jornalistas profissionais. Bolsonaro prefere a
adulação de seus braços de propaganda travestidos de veículos jornalísticos na
forma de blogs, canais de vídeo na internet ou redes de televisão dóceis. Mas o
papel do jornalismo profissional numa campanha eleitoral é justamente fazer
perguntas incômodas. É desmascarar as mentiras da propaganda dos candidatos
para informar melhor o eleitorado.
A reação de acólitos de Bolsonaro como
Garcia vai muito além do aceitável. Mentir, xingar e agredir são comportamentos
intoleráveis num ambiente de debate livre e democrático. Quem se comporta assim
não está à altura do mandato de que foi investido. Garcia deveria, por isso,
ser expulso do partido, da Assembleia Legislativa e sofrer as punições mais
rigorosas cabíveis nos termos da lei.
Não pode haver espaço para ataques contra
profissionais de imprensa em plena campanha eleitoral, quando o trabalho dos
jornalistas se torna ainda mais necessário e essencial. Ao ofender e ao tentar
constranger Vera, uma das jornalistas mais respeitadas do país, os
bolsonaristas atentam contra toda a imprensa profissional, contra a democracia
e contra as liberdades de que se proclamam defensores. Para além das desculpas
de Tarcísio e do repúdio manifestado por outros políticos e candidatos, é
preciso que esse tipo de comportamento seja combatido com firmeza pelo próprio
Bolsonaro, de quem tem partido o incentivo velado aos ataques.
Sucesso da contraofensiva ucraniana muda
perspectiva da guerra para Putin
O Globo
Retomada de território pela Ucrânia
redesenha mapa do conflito e impõe dilema político e diplomático à Rússia
A rápida contraofensiva da Ucrânia iniciada
na semana passada resultou até agora na retomada de amplas faixas da região de
Kharkiv, no norte do país. O êxito militar da operação ucraniana não apenas traz
implicações militares desfavoráveis à Rússia, mas também tem
desdobramentos na política interna russa e no campo diplomático.
A estratégia ucraniana foi atacar nos dois
extremos invadidos pelos russos: ao sul, na área de Kherson, e com grande
rapidez ao norte. As tropas russas foram surpreendidas a ponto de, segundo a
Inteligência britânica, ter sido aberta uma linha de 500 quilômetros em que as
tropas de Moscou ficaram vulneráveis perto de Kharkiv. O comandante em chefe
das tropas ucranianas, general Valery Zaluzhny, informou ter retomado 3 mil
quilômetros quadrados do território invadido em menos de uma semana. Ao bater
em retirada de forma desorganizada, principalmente ao norte, as forças russas
deixaram para trás tanques, blindados e munição, que deverão ser usados pelos
ucranianos.
Várias razões explicam o sucesso da
contraofensiva ucraniana. Uma é o moral da tropa, superior ao da Rússia, que
tem enfrentado dificuldades para substituir soldados por combatentes
descansados, física e mentalmente. Outra, indiscutível, é o apoio do Ocidente.
Não só financeiro, mas sobretudo militar. Destacam-se as armas sofisticadas
fornecidas pelos Estados Unidos, uma delas os mísseis inteligentes atraídos por
sinais de radar. É o motivo por que a Força Aérea russa, ativa no início da
invasão, não tem podido dar o apoio necessário às tropas do Kremlin.
Enquanto o presidente ucraniano, Volodymyr
Zelensky, aproveita a boa fase na guerra para afastar a possibilidade de abrir
negociações, aumentando seu poder de barganha, especula-se sobre a melhor
alternativa para o presidente russo, Vladimir Putin. Convocar mais jovens para
a guerra seria impopular. A artilharia russa tem respondido ao ataque ucraniano
sem conseguir contê-lo. Resta a opção de um ataque nuclear “limitado”, desfecho
catastrófico para o mundo, incluindo a Rússia e o próprio Putin.
Em Moscou, Putin tem de lidar com uma
oposição cada vez maior a sua aventura militar. No início da semana passada,
Ivan Safronov, jornalista especializado em assuntos militares, detido em 2020
sob a acusação de divulgar “segredos de Estado”, foi condenado a 22 anos de
prisão. No mesmo dia em que recebeu a draconiana sentença, o governo fechou o
mais independente e crítico jornal russo, o Novaya Gazeta, dirigido por Dmitry
Muratov, Prêmio Nobel da Paz do ano passado.
Perseguir e encarcerar adversários na
Rússia não resolve as dificuldades militares de Putin na Ucrânia. Tampouco
cortar o fornecimento de gás à Europa. Por ora, ele parece contar com o apoio
tácito da China de
Xi Jinping e tem uma situação econômica mais confortável do que as sanções
decretadas em razão da guerra sugeriam. Mas, com ventos desfavoráveis a Putin
no campo de batalha, o tempo agora funciona a favor da Ucrânia.
Folha de S. Paulo
A despeito de caso deplorável na plateia,
candidatos em SP divergem sem infâmia
O tom civilizado em um debate entre
candidatos a qualquer cargo eletivo deveria passar tão batido quanto o oxigênio
na atmosfera, mas, em tempos nos quais infâmia e baixaria se tornaram moeda
corrente na política, chamou a atenção o comportamento dos postulantes ao
governo de São Paulo na noite de terça-feira (13).
Durante o
encontro, promovido pela Folha, pelo UOL e pela TV Cultura, os
cinco candidatos mais bem colocados na disputa pelo Bandeirantes se enfrentaram
sem concessões nem vilanias, num louvável equilíbrio entre a divergência tensa
e a cordialidade respeitosa.
Sem sair desse diapasão, recorreram a
ataques, ironias e críticas duras, sobretudo nos confrontos entre os três nomes
mais competitivos: Fernando Haddad (PT), Tarcísio de Freitas (Republicanos) e
Rodrigo Garcia (PSDB), que aparecem nessa ordem na última
pesquisa realizada pelo Datafolha.
Fez parte da estratégia dos dois primeiros
priorizar o fogo no terceiro, numa tentativa de consolidar um segundo turno que
reproduza o duelo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra Jair Bolsonaro (PL),
padrinhos de Haddad e Tarcísio, respectivamente.
Para o ex-prefeito petista, trata-se de
levar para o embate direto um adversário que carrega como fardo a alta rejeição
do atual presidente da República; para Tarcísio, a questão reduz-se a manter a
vantagem sobre Rodrigo a fim de não naufragar no dia 2 de outubro.
Se o cenário ainda aberto aponta para uma
disputa bastante acirrada nesta reta final da campanha eleitoral, a realidade paulista
contribui que o debate se desenvolva sobre bases bem definidas.
Longe de ser uma terra arrasada, São Paulo
vive boa situação orçamentária e conhece importantes legados do PSDB em áreas
como segurança pública e estrutura rodoviária. Fica mais fácil promover um
confronto de ideias construtivas nesse contexto.
Enquanto tudo correu bem no palco, veio da
plateia, já ao final do evento, uma conduta inaceitável: o deputado estadual
Douglas Garcia (Republicanos), correligionário de Bolsonaro, partiu para cima
da jornalista Vera Magalhães com agressões verbais e precisou ser contido por
seguranças.
O episódio, repudiado por diversas figuras
da política —entre elas o próprio Tarcísio, a quem o agressor apoia— não chegou
a manchar um encontro que se construiu em alto nível —incluindo as
participações de Elvis Cezar (PDT) e Vinicius Poit (Novo), que mostram
pontuações menores no Datafolha.
Numa lição de cidadania, o debate mostrou
que disputa política se faz com projetos e propostas —e que alternância de
poder não se confunde com uma guerra.
Cartilha enviesada
Folha de S. Paulo
Documento da Saúde sobre aborto deveria ter
foco no que diz a literatura médica
São consideráveis os equívocos do novo
documento do Ministério da Saúde sobre a assistência em casos de aborto.
Mais uma vez, a pasta optou por encampar a retórica de grupos conservadores
contrários ao procedimento, em vez de fornecer informação baseada apenas em
ciência e saúde pública, como se espera de um órgão técnico.
Em sua primeira versão, divulgada em junho,
o texto contrariava até a lei, ao afirmar que "todo aborto é crime".
Como se sabe, a prática é autorizada no país em três situações: gravidez
decorrente de estupro, risco à vida da mulher e em caso de feto anencefálico.
Em reação a essa e outras afirmações
incorretas ou deturpadas, entidades ligadas à saúde e aos direitos das mulheres
acionaram o Supremo Tribunal Federal para que a cartilha fosse revogada.
Diante da pressão, o ministério promoveu
audiência pública para discutir o texto —mas o encontro acabou servindo apenas
para corroborar a posição governamental.
Ainda que o texto tenha sido, por fim,
alterado, a nova versão, publicada no site da Secretaria de Atenção Primária à
Saúde, mantém informações distorcidas.
A emenda, em alguns pontos, ficou pior que
o soneto —como no trecho que aborda os perigos da gravidez na adolescência.
Sem apresentar nenhuma evidência técnica, a
cartilha alega que são inconsistentes os estudos que assinalam os riscos de
vida de gestantes com menos de 15 anos, os quais não seriam necessariamente
agravados pela pouca idade.
Grande parte dos obstetras, contudo, afirma
que a gravidez na adolescência é sempre de alto risco, seja para a gestante,
seja para o feto.
A nova versão da cartilha oficial vem a
lume na esteira de dois episódios chocantes, nos quais meninas de 11 anos foram
estupradas e engravidaram, uma em Santa Catarina e outra no Piauí.
O primeiro gerou polêmica devido ao
comportamento da juíza e da promotora do caso, ambas desencorajando o aborto
—permitido pela legislação, reitere-se. O procedimento só foi realizado após
intervenção do Ministério Público.
Embora esta Folha há muito
defenda a descriminalização e o debate sob a ótica da saúde pública, não há
dúvida de que seja legítima a oposição baseada em argumentos morais ou
religiosos.
Inadmissível é a instrumentalização de tais razões para negar o acesso a um direito ou balizar os serviços do Ministério da Saúde.
Mercados nos EUA têm choque de realidade
com inflação
Valor Econômico
Índice de preços não caiu em agosto,
sinalizando aumentos de juros maiores pelo Fed
Os investidores tomaram na terça-feira um
choque de realidade com a persistência da inflação americana e os mercados
locais desabaram. A diferença entre a expectativa para o Índice de Preços ao
Consumidor (CPI) de agosto e o número real não foi grande - -0,1% e 0,1% -, mas
o núcleo da inflação, que exclui alimentos e energia, subiu 0,6% e chegou a
6,3% em doze meses. A inflação, para além dos itens mais voláteis, continua
disseminada, em boa parte empurrada pelos preços dos serviços. Mais que isso,
havia a perspectiva, ou ilusão, de que haveria nova queda após a ocorrida em
julho, estabelecendo um ambiente em que a redução da inflação ocorreria
naturalmente a partir daí. Não foi o que se viu.
As apostas para a reunião do Federal
Reserve, na próxima semana, subiram de escala. Elas saíram de 0,5 ponto a 0,75
ponto para 1 ponto percentual, com 40% de chances agora, ante nenhuma previsão
dessa magnitude na segunda-feira. Até a semana passada, vários dirigentes do
Fed, antes de entrarem no período de silêncio, foram unânimes em prometer usar
a arma dos juros o quanto for necessário até garantir uma inequívoca guinada
dos índices de preços em direção à meta de 2%. A tarefa está ainda longe de ser
cumprida. Nos doze meses terminados em agosto, o CPI atingiu 8,3%, apenas um
pouco abaixo dos 8,5% de julho.
O presidente do Fed, Jerome Powell, agora
parece determinado a enfrentar até o fim uma inflação alta razoavelmente
instalada, advertiu também contra os perigos de parar o combate
antinflacionário prematuramente. Suas declarações, assim como as de outros
membros do Fed, por si só não colocam fora de cogitação uma alta de 1 ponto
percentual na taxa básica, levando-a ao intervalo de 3,25%-3,5%.
Por outro lado, dissipou-se a expectativa,
que também era do Fed, de que uma política suavemente contracionista poderia
fazer o serviço de colocar a inflação de volta no leito dos 2%. Após as maiores
quedas nas bolsas desde o início da pandemia, os títulos do Tesouro de 2 anos
subiram a 3,75%, maior taxa desde outubro de 2007. Os investidores agora
estimam que o juro dos fed funds atingirá 4% no fim do ano e 4,25-4,5% em março
de 2023, fronteira a partir da qual o banco central poderia então começar a
pensar em interromper o ciclo de aperto monetário.
Christopher Waller, membro do comitê de
mercado aberto do Fed, que decide as taxas, foi mais explícito na defesa de
juros muito restritivos, dizendo que o banco tem, diante da gravidade do
problema inflacionário, “flexibilidade para ser agressivo” e que se a inflação
não cair até o fim do ano, ou até mesmo subir, os juros provavelmente teriam de
aumentar “bem acima dos 4%”.
Apesar da queda do PIB americano por dois
trimestres consecutivos, o mercado de trabalho segue aquecido e os reajustes
dos salários por hora subiram 6% em 12 meses. Diante de uma demanda nutrida
pelos reajustes, ainda que abaixo da inflação, as empresas têm conseguido
repassar custos aos preços, o que se reflete nas altas no setor de serviços. A
política fiscal, sobre a qual Powell é reticente em comentar, e discreto ao
fazê-lo, entrou na lista dos fatores que atrapalham a tarefa do BC americano.
“A política fiscal não está em um caminho sustentável, e não está há algum
tempo. Precisaremos voltar a um caminho sustentável mais cedo ou mais tarde”,
disse Powell em conferência no Cato Institute no início do mês.
Há sinais que favorecem o declínio da
inflação, além da queda dos preços dos combustíveis. Mais empresas estão agora
assinalando que seus estoques estão mais altos que o normal. O mercado
imobiliário está esfriando o que, aos poucos, ocorrerá com toda a economia.
A desaceleração global ajudará nesta
tarefa. A produção industrial da zona do euro teve em julho a maior queda desde
a pandemia, com recuo de 2,3% motivado pelos altíssimos custos da energia -
antes de o BCE subir os juros com intensidade.
O aumento do ritmo de aperto da política monetária torna mais distante as chances de um pouso suave da economia americana, com uma recessão branda e curta. É difícil calibrar a dose de juros, mas, pela intensidade inflacionária, sabe-se que terá de ser razoavelmente maior que a prevista. A forte queda de 99% das ações do índice acionário da S&P na segunda-feira sugere que os investidores esperam que a perspectiva de lucros das empresas piore bastante.
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