Condenados por Carandiru não têm direito a indulto
O Globo
Supremo precisa suspender decreto natalino
de Bolsonaro que beneficiou responsáveis pelo massacre em 1992
As linhas tortas do indulto de Natal
concedido na semana passada pelo presidente Jair Bolsonaro tinham direção
certa: policiais militares condenados pelo Massacre do Carandiru, matança que
chocou o país e o mundo. Em 2 de outubro de 1992, 111 presos amotinados foram
executados durante invasão da Casa de Detenção de São Paulo por forças
policiais.
Oficialmente, o decreto concede perdão a agentes de segurança pública condenados por crime culposo (sem intenção de matar), desde que tenham cumprido pelo menos um sexto da pena; a militares condenados em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e — de modo inusitado— a policiais condenados, ainda que provisoriamente, por crime praticado há mais de 30 anos que não fosse considerado hediondo à época.
A lei proíbe o presidente de conceder
indulto por crimes hediondos, e 30 anos atrás o homicídio qualificado ainda não
era classificado como tal (só passou a ser dois anos depois). Na prática,
portanto, foi um indulto sob medida para beneficiar os 69 PMs condenados pelo
Massacre do Carandiru. Não demorou para que advogados de defesa dos PMs
reivindicassem a extinção da ação que ainda tramita em São Paulo.
O procurador-geral da República, Augusto
Aras, fugiu ao papel de seguidor fiel dos roteiros traçados pelo Planalto e
anunciou que questionará o indulto no Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo
ele, a Constituição veda o perdão para crimes hediondos, ainda que na época
eles não fossem enquadrados assim. Entidades de defesa dos direitos humanos
também apontaram falhas gritantes no decreto. O indulto natalino não pode
beneficiar um grupo específico (no caso, os PMs condenados pela matança).
Juridicamente, o indulto é diferente da
graça, perdão presidencial concedido num caso específico. No ano passado,
Bolsonaro concedeu a graça ao então deputado Daniel Silveira (PTB), condenado
pelo STF a oito anos e nove meses de prisão por ataques à Corte e a seus
ministros. À época, Bolsonaro alegou que a sociedade estava em “comoção” pela
condenação de Silveira e que a “liberdade de expressão é pilar essencial da
sociedade”. A “comoção” só existia nas hostes bolsonaristas.
Independentemente das discussões jurídicas
sobre o indulto de Natal, não tem cabimento o perdão a condenados por um crime
hediondo. Não importa se as vítimas eram criminosos que cumpriam pena. Estavam
ali sob custódia do Estado, depois de julgados e condenados. Não poderiam ser
executados por agentes que deveriam ser os primeiros a cumprir a lei.
Os PMs acusados pelo massacre foram a
julgamento, com amplo direito de defesa. Condenados por cinco júris, receberam
penas que variam de 48 a 624 anos de prisão. Os que estão vivos permanecem em liberdade.
Com o indulto, não se sabe se continuarão respondendo à Justiça. O Supremo, a
quem caberá a última palavra, precisa impedir essa afronta à Constituição que
avilta a Justiça brasileira.
Tentar apagar a matança do Carandiru com um
indulto oportunista e descabido, cujo único propósito é afagar categorias
incensadas pelo bolsonarismo, em nada contribuirá para termos uma polícia
melhor, prisões menos desumanas, uma Justiça mais eficaz e um país onde se
cumpra a lei. Continuaremos sendo a terra da impunidade. Não aprendemos nada em
30 anos?
Governo petista deveria aprender a
priorizar a abertura comercial
O Globo
No Chile o esquerdista Boric fecha tratado
com UE, enquanto acordo com Mercosul continua paralisado
Enquanto o Brasil continua a ser uma das
economias mais fechadas do mundo, com participação no comércio global bem aquém
do que produz e consome, o Chile, presidido por um político de esquerda,
Gabriel Boric, e às voltas com uma confusão política em torno de sua nova
Constituição, acaba de assinar um acordo comercial com a União Europeia (UE). A
estimativa é que a remoção de barreiras ao comércio faça o PIB chileno crescer
6%.
Os europeus terão acesso ao lítio e ao
cobre chilenos, minerais estratégicos para a produção de baterias, em condições
melhores que outros países. Em contrapartida, abrirão seu mercado a exportações
de alimentos do país sul-americano. Pelo acordo, o Chile também adota a agenda
de comércio sustentável do bloco europeu. É a primeira vez que a UE assina um
tratado comercial incluindo o compromisso de eliminar discriminação contra as
mulheres — fato que a chanceler chilena, Antonia Urrejola, saudou como uma
“política externa feminista”.
O Chile avança com o acordo assinado com a
UE, enquanto o Mercosul, liderado pelo Brasil, patina para pôr em prática
tratado semelhante. Negociado por mais de 20 anos, o acordo foi fechado em
2019, mas a implementação está paralisada, pois os países europeus se recusam a
referendá-lo diante da alta na devastação da Amazônia.
O acordo Chile-UE também serve de exemplo
ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, a seu futuro ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, e ao PT. Durante os 13 anos em que o PT presidiu o
país, não houve nenhuma preocupação em abrir a economia ao exterior. Pelo
contrário, o governo cedeu às pressões nacionalistas de sempre e protagonizou a
malfadada política dos “campeões nacionais”, com perdas para o país e
corrupção.
O resultado disso é conhecido. Em 1948, o
Brasil respondia por 2% das exportações mundiais, mais que a soma de China
(0,9%) e México (0,9%), segundo dados da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Em 2019, o país exportava menos (1,2%), e a China, com as reformas que a
integraram à economia global, respondia por 13% das vendas no mundo. As vendas
ao exterior do México, beneficiado por fazer parte do acordo de livre-comércio
com Estados Unidos e Canadá, representavam 2,4% das exportações mundiais, o
dobro do Brasil.
Boric e Urrejola mostram que os tempos são outros e que é perfeitamente possível políticos de esquerda terem uma visão moderna da inserção de um país na economia global. Eleito por uma ampla aliança em defesa da democracia, Lula deveria estar disposto a pôr em prática o que lhe disseram economistas não alinhados ao partido. Sua volta à Presidência e o compromisso com a preservação ambiental devem ser aproveitados para enfim pôr em vigor o acordo entre Mercosul e UE. Não há mais desculpas para os dois blocos deixarem de ampliar o comércio bilateral. Lula tem de incluir a abertura do Brasil ao mundo entre suas mais importantes prioridades.
O apagão de Xi
Folha de S. Paulo
Pressionada pelas ruas e pela economia,
China abandona Covid zero sem plano B
Durante quase três anos, o líder chinês Xi
Jinping apresentou-se como o comandante em chefe contra um insidioso vírus
descoberto no fim de 2019 em seu país.
Munido do arsenal que apenas uma
tecnoditadura com amplo controle sobre a liberdade de seus cidadãos pode
oferecer, assombrou o mundo com sua resposta inicial à pandemia da Covid-19.
Lockdowns draconianos, restrição de entrada
e saída, testes, ferramentas tecnológicas de acompanhamento e o desenvolvimento
rápido de uma campanha de vacinação fizeram do berço da crise um relativo
oásis.
Como seria previsível, Xi usou o desempenho
politicamente, bradando a cada discurso a superioridade do tal socialismo com
características chinesas sobre os ocidentais que empilhavam seus mortos.
Exportou a propaganda com as vacinas, o que
de resto era seu direito: mesmo baseados em tecnologias ora menos eficazes para
as novas variantes do Sars-CoV-2, os imunizantes salvaram milhões.
O triunfo teve um preço. A economia, que
havia desacelerado a 2,2% de crescimento em 2020 e tido uma forte retomada de
8,1% em 2021, voltou a engasgar —com 3,2% de expansão projetada pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI).
O Ocidente, por sua vez, buscou algum grau
de autonomia quando observou complexos fabris chineses serem fechados por causa
de uma mera ocorrência de Covid-19.
Mais importante, multidões
protestaram de forma inédita no fim de novembro contra as regras rígidas,
atacando o governo do país asiático. Como o mundo de 2022 não toleraria um novo
massacre da praça da Paz Celestial, Xi cedeu.
Só que, em vez de lançar mão de um plano B,
de transição, ele começou a abandonar todos os preceitos de sua política de
Covid zero desde o início do mês.
Pessoas com sintomas respiratórios passaram
a ser obrigadas a comparecer ao trabalho, não há mais quarentena para entrar na
China e o arcabouço de vigilância está sendo desmontado.
O resultado é uma onda nunca vista de
contaminações pelo país, que os apologistas do regime dizem ser aceitável
porque a Covid-19 se mostra menos fatal hoje.
É aposta, que incorre no risco de fomentar
novas e imprevisíveis variantes, mas o fato de que o governo suspendeu a
contagem de casos e a testagem em massa sugere um apagão sanitário já
denunciado pela Organização Mundial da Saúde. As mortes poderão ser contadas em
milhões, dizem especialistas.
Apenas na
segunda (26), Xi enfim falou sobre o tema. Proferiu platitudes,
sem citar a opacidade oficial ou prestar contas acerca da reviravolta —uma
lembrança de como ditaduras funcionam.
Nota baixa
Folha de S. Paulo
Em 28 anos de PSDB, gestão do ensino
paulista não fez jus aos recursos do estado
Ancorar o debate nacional sobre educação em
estatísticas pedagógicas e gerenciais constitui um dos legados de governos do
PSDB, iniciado com Fernando Henrique Cardoso. Em São Paulo, os dados mostram
que os tucanos não foram capazes de fazer o ensino oficial alçar o voo
desejado.
O partido esteve no comando do estado mais
rico da Federação por 28 anos. No período, os números delineiam um desempenho
insatisfatório. Nessas quase três décadas, os paulistas não lograram alcançar
as metas fixadas para o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb),
por exemplo.
Basta mencionar o ensino médio,
responsabilidade estadual: o objetivo era nota 5,1 no Ideb, mas ficou em
4,4. Meros 7% dos
estudantes completam esse nível com conhecimento adequado de matemática,
segundo a avaliação pelo Saeb.
Houve, decerto, avanços dignos de nota,
como o maior percentual de jovens de 19 anos com ensino médio concluído
(86,5%). A média nacional fica em 69,4%. A recente ampliação do ensino integral
constitui política promissora.
Note-se que a clientela encolheu à metade,
por força da municipalização do ensino fundamental e da redução paulatina de
contingentes jovens —um bônus demográfico para a gestão. Eram 6,5 milhões de
alunos na rede estadual em 1995, no governo Mário Covas; hoje, são 3,3 milhões.
Verdade que as gestões peessedebistas
sempre enfrentaram resistência corporativista. Entidades sindicais, Apeoesp à
frente, combatiam com afinco inovações como conteúdos mínimos e monitoramento
de desempenho.
Exigir bons salários e condições de
trabalho é a função de sindicalistas, mas que não pode se sobrepor à obrigação
de educar. Nem sempre foi essa a prioridade, como nas prolongadas greves e na
renitente defesa das faltas abonadas.
Nada disso apaga, entretanto, a lentidão da
melhora da educação paulista no período tucano. São Paulo chegou a ser
ultrapassado, em algumas estatísticas, por congêneres menores e de arrecadação
tributária inferior, como Ceará, Espírito Santo e Goiás.
Para o novo governo, eleito com a bandeira
da eficiência gerencial, recomenda-se não reinventar a roda: sua missão é
implantar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a complexa
reforma do ensino médio, bem como aproveitar as experiências exitosas de outras
redes de ensino.
O Supremo fez a coisa certa
O Estado de S. Paulo
Ao alterar procedimentos sobre pedido de
vista e liminares, STF faz importante e necessário resgate de sua
colegialidade. Corte não pode ficar refém da vontade de um único ministro
STF altera procedimentos de vistas e
liminares e resgata sua colegialidade.
Na segunda-feira, o Supremo Tribunal
Federal (STF) anunciou duas importantes mudanças em seu Regimento Interno, que
corrigem graves distorções no funcionamento da Corte. De acordo com a Emenda
Regimental (ER) 58/2022, aprovada por unanimidade pelos ministros do Supremo, o
pedido de vista deverá ser devolvido no prazo de 90 dias, contado da data da
publicação da ata de julgamento. Após esse período, o processo será
automaticamente liberado para a análise dos demais ministros.
A segunda alteração bastante significativa
refere-se ao processamento das decisões liminares monocráticas, que deverão, a
partir do ano que vem, ser submetidas a referendo do Plenário ou da Turma, a
depender da competência do caso. Segundo a ER 58/2022, o referendo deve ser
realizado preferencialmente em ambiente virtual. Em caso de a medida de
urgência resultar em prisão, a deliberação pelo colegiado deve ser presencial.
A ER 58/2022 revela que os ministros do
Supremo entenderam a necessidade de fortalecer a colegialidade da Corte. De
forma muito direta, as duas alterações regimentais retiram poder individual dos
ministros, que já não poderão travar indefinidamente o julgamento de processos
por meio de pedidos de vista intermináveis – o atual Regimento Interno não
prevê consequências para o descumprimento do prazo de vista – e não mais
estarão aptos a definir sozinhos as medidas de urgência sobre os casos do STF.
Toda liminar terá de ser avaliada imediatamente por um colegiado – pelo
Plenário ou pela Turma.
Certamente essas mudanças no Regimento
Interno poderiam – e deveriam – ter vindo antes. Era uma verdadeira fissura
antirrepublicana no funcionamento da Corte que um único ministro do STF pudesse
impedir, porque assim lhe aprazia, a conclusão de um julgamento, mesmo nos
casos em que já havia maioria formada. Tal distorção era uma evidente
fragilidade do Supremo, que ficava refém da vontade de um único ministro. Uma
instituição colegiada não pode funcionar dessa forma.
Era também uma completa disfuncionalidade
que um único ministro pudesse impor, por meio de uma liminar não referendada
pelo colegiado, consequências duradouras sobre todo o País. O caso mais famoso
desse poder despótico talvez seja o conjunto de liminares do ministro Luiz Fux
concedendo auxílio-moradia de R$ 4,3 mil a todos os juízes e membros do
Ministério Público. Concedidas em 2014, essas liminares foram revogadas apenas
em novembro de 2018, após um acordo sobre aumento salarial das carreiras
jurídicas. Eis uma das muitas consequências daninhas da antiga permissividade
regimental: a competência judicial de proferir decisões, quando não submetida a
devido controle, facilmente se converte em um ilegítimo poder político.
O caso do auxílio-moradia é escandaloso,
mas não é o único. Em janeiro de 2020, o ministro Luiz Fux suspendeu a
implementação do juiz das garantias, que foi aprovada no ano anterior pelo
Congresso. Até hoje, não há decisão colegiada do STF sobre a liminar. No mês
passado, o caso foi a julgamento no plenário virtual da Corte, mas o ministro
Gilmar Mendes pediu vista.
Ao reduzir o poder individual de seus
ministros e intensificar sua colegialidade, o STF descortina, com a ER 58/2022,
um caminho viável e acessível para a preservação e o fortalecimento de sua
autoridade. Há muitas críticas injustas e muita desinformação a respeito do
Supremo por parte de quem não se conforma com o Estado Democrático de Direito e
com a Constituição de 1988. Felizmente o STF, ignorando esses achaques, tem
cumprido valentemente seu papel constitucional. No entanto, tudo isso não
obnubila o fato de que a própria Corte tem muito a melhorar na efetividade de
sua prestação jurisdicional em defesa da Constituição. E esses avanços só são obtidos
enfrentando, de forma concreta, as distorções e desequilíbrios, como fez a
presidente do STF, ministra Rosa Weber, com a ER 58/2022.
A defesa da autoridade e da colegialidade
do Supremo é parte essencial da missão dos ministros da Corte em defesa da
Constituição.
Uma trajetória em defesa do abuso policial
O Estado de S. Paulo
O indulto natalino de 2022 confirma que as homenagens da família Bolsonaro a milicianos não foram acidentais. Há uma constante histórica em defesa de policiais fora da lei
Pelo quarto ano consecutivo, o presidente
Jair Bolsonaro aproveitou o indulto natalino, instrumento de ação humanitária,
para estimular o abuso policial. O Decreto 11.302/2022 indulta policiais e
militares condenados por crimes culposos no exercício da sua função ou em
decorrência dela. Além disso, prevê indulto a agentes de segurança “condenados
por ato cometido, mesmo que fora do serviço, em razão de risco decorrente da
sua condição funcional ou em razão do seu dever de agir”.
O presidente da República tem poder de
conceder indulto e comutar penas. Prevista na Constituição, essa competência
tem profundas raízes históricas, de natureza humanitária. Sem fixar muitos
limites para essa atribuição presidencial, o texto constitucional define apenas
que não podem ser anistiados “a prática da tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes
hediondos”.
No entanto, Jair Bolsonaro valeu-se, nos
quatro anos de governo, dessa competência constitucional não para promover uma
ação humanitária, mas para levantar uma das bandeiras políticas mais caras ao
bolsonarismo: a impunidade para policiais que atuam fora da lei. Nesse intento,
ele desrespeitou a própria vontade do Legislativo, que rejeitou a proposta do
Executivo de ampliar as excludentes de ilicitude para agentes de segurança
pública. Derrotado no Congresso, Jair Bolsonaro tenta impor, uma vez mais, a tão
almejada impunidade para policiais e militares que cometem excessos no
cumprimento de suas funções.
Em sua obsessão de legitimar a atuação
criminosa de agentes públicos, Jair Bolsonaro extrapolou neste ano todos os
limites. No Decreto 11.302/2022, há um dispositivo orientado especificamente a
garantir a impunidade dos envolvidos no Massacre do Carandiru, o caso
paradigmático de violência e barbárie policial ocorrido em 1992. “Será
concedido indulto natalino também aos agentes públicos que integram os órgãos
de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no
exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda
que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da
data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua
prática”, diz o art. 6.º do decreto.
Trata-se de evidente desrespeito ao Estado
Democrático de Direito, numa subversão dos princípios da separação dos Poderes
e da igualdade de todos perante a lei. Repetindo o que havia feito no indulto
concedido a Daniel Silveira, Jair Bolsonaro antecipou-se à Justiça para fazer
com que policiais não tenham de lidar com as consequências da lei sobre seus
atos. Como se não bastasse a demora de 30 anos para punir os responsáveis, o
chefe do Executivo federal quis ele mesmo determinar o desfecho de um processo
judicial: a impunidade.
Com acuidade, o Decreto 11.302/2022 reflete
a natureza antirrepublicana do bolsonarismo. Suas disposições sobre policiais e
militares têm baixo efeito prático. São raros os casos que se enquadram nas
situações descritas no decreto, uma vez que a Justiça brasileira é bastante
conivente com excessos ilegais praticados por policiais. Basta ver o andamento
do caso do Carandiru. O indulto tem outra finalidade, de caráter simbólico e
extremamente danoso. Jair Bolsonaro deseja ampliar ainda mais a aceitação da
sociedade em relação aos excessos praticados pela polícia.
Essa pretendida impunidade para policiais e
militares que se excedem no cumprimento de suas funções não contribui com a
segurança pública. Gera o exato efeito contrário. A população fica ainda mais
desprotegida quando o Executivo federal, em vez de contribuir para que os
agentes de segurança pública sejam devidamente treinados e respondam por seus
atos, releva e autoriza a atuação violenta de policiais e militares.
Lamentável, o Decreto 11.302/2022 confirma
que as várias homenagens da família Bolsonaro a milicianos não foram atos
acidentais. Há uma constante histórica em defesa de policiais que atuam à
revelia da lei.
Universidade ajuda o ensino básico
O Estado de S. Paulo
Parceria entre universidades e escolas é
caminho para salto de qualidade na educação
As universidades devem ser parceiras das
redes de ensino no esforço de priorização da educação básica. Não só na
formação de professores, tarefa já desempenhada pelas instituições de ensino
superior, mas também no desenvolvimento de métodos inovadores que ajudem a
elevar a aprendizagem dos alunos no País inteiro. Eis um desafio para os
gestores educacionais em todos os níveis de governo e nas reitorias das
universidades: aproximar o mundo acadêmico da realidade − e das dificuldades −
das salas de aula do ensino básico.
Boas iniciativas nesse sentido já existem e
devem ser ampliadas. É preciso garantir que as soluções e inovações
desenvolvidas nas universidades brasileiras cheguem às escolas de ensino
fundamental e médio, assim como às creches e pré-escolas. Nos 26 Estados e no
Distrito Federal, faculdades de diversas áreas do conhecimento promovem
pesquisas que podem contribuir, e muito, para a melhoria dos índices de
aprendizagem. O melhor de tudo é que se trata de um jogo de ganha-ganha capaz
de produzir resultados positivos para todos os envolvidos.
Exemplo disso é uma rede de pós-graduação
criada para melhorar o ensino de química nas escolas do País. São 22
instituições, entre elas a Universidade de São Paulo (USP), articuladas em
torno do Mestrado Profissional em Química em Rede Nacional (PROFQUI). A rede
atua para aprimorar a formação de professores, com foco em atividades práticas
e na produção de materiais didáticos. O que se busca é desmistificar a disciplina,
aproximando-a do cotidiano dos alunos do ensino médio. Sem dúvida, um desafio
para professores não só de química, mas de todas as disciplinas. Como informou
o Jornal da USP, um dos métodos desenvolvidos no câmpus em Ribeirão Preto (SP)
consiste na leitura de rótulos de alimentos comercializados no País. O que
antes era um conhecimento desconectado da realidade de grande parte dos
estudantes ganhou novo sentido como ferramenta para analisar a composição dos
produtos. Permitindo até mesmo introduzir temas transversais que podem e devem
fazer parte das aulas, caso da alimentação saudável.
Vale registrar outro projeto, também tocado
por pesquisadores da USP, que resultou em uma página na internet com exemplos
de como professores de química podem abordar a disciplina. Um deles, intitulado
“Desinfetando falsas notícias”, trata de fake news, valendo-se de lições da
disciplina para desmascarar mentiras nas redes sociais. Como já registramos
aqui neste espaço, a educação tem enorme contribuição a dar no enfrentamento
das notícias falsas − infelizmente, um desafio no mundo inteiro.
Eis o que a colaboração entre universidades e escolas é capaz de fazer: capacitar professores, desenvolver métodos de ensino mais eficazes e disseminar materiais didáticos abrangentes e atualizados. Em resumo, tudo o que as redes de educação básica necessitam para promover um salto de qualidade na educação da atual e das novas gerações. O Brasil tem que priorizar a educação básica, e as universidades devem ser parceiras de primeira hora.
Onda de reajustes salariais começa pela
elite do Estado
Valor Econômico
A forma correta de corrigir o cipoal de
distorções no setor público é uma profunda reforma administrativa
Governos e Legislativos voltaram a agir
como se as restrições financeiras tivessem acabado. Represados nos últimos dois
anos, os reajustes salariais voltaram em grande escala. A reposição plena da
inflação passada parece ter se tornado mais um direito de quem trabalha para o
Estado, ao lado da estabilidade no emprego (ainda vigente para 10 milhões de
11,5 milhões de funcionários em todo o país). No mesmo país, os salários dos
40% trabalhadores mais pobres da iniciativa privada só agora se igualaram aos
já baixos que vigiam antes da pandemia e até há pouco as correções salariais
por índice abaixo da inflação predominavam.
No Executivo federal a fila foi puxada pela
aprovação de reajuste de 28%, divididos em três anos, para os salários dos
ministros do Supremo Tribunal Federal, cujos vencimentos são também o teto
salarial da União. Com isso, ao fim, os vencimentos dos ministros e o teto
serão elevados para R$ 46,36 mil reais. Foram aprovadas correções da mesma
magnitude para a Procuradoria Geral da República para a Defensoria Pública. A
lista de beneficiários, no entanto, é bem maior, e inclui os estipêndios de
juízes federais e membros de outros tribunais superiores, vinculados a uma
fração do que é percebida pelos ministros do Supremo.
Outra fila foi puxada pelo Legislativo
federal, que aprovou reajuste para deputados, senadores, ministros de Estados e
presidente da República de 37,3%, praticamente em três parcelas, com 16,33%
aplicados imediatamente, mais 6% em abril do ano que vem e mais duas parcelas
em fevereiro de 2024 e 2025. Aqui também o exemplo da União se dissemina por
Estados e municípios - a remuneração de deputados estaduais cuja remuneração
guarda relação com os vencimentos dos deputados federais.
Os governadores não poderiam ficar de fora
e a Assembleia Legislativa de São Paulo, com apoio do governador bolsonarista
eleito, Tarcísio de Freitas, e da bancada petista, reajustou o salário de
governador, secretários de Estado e cargos comissionados em 50%, elevando o teto
do Estado para R$ 34 mil. O secretário da Fazenda, Felipe Salto, defendeu o
reajuste argumentando que a folha de pagamentos paulista corresponde a 37,6% da
receita corrente líquida do Estado, bem distante do limite de 49% estabelecido
pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Pelo menos 12 Estados aprovaram correções
salariais para o funcionalismo e todos os demais encaminharam propostas com a
mesma finalidade às Assembleias. Ao mesmo tempo, muitos deles passaram a elevar
o ICMS de vários produtos, aumentando a mediana da alíquota que serviu de
limite para bens essenciais, como telecomunicações, energia e gasolina. O
motivo é obter compensação pela redução do imposto patrocinada pelo presidente
Bolsonaro com apoio do Congresso.
Haverá mais pressão por ajustes, porque
ainda não foi definida a correção dos salários dos servidores públicos (exceto,
até agora, os do Legislativo, que terão 18,13% em três parcelas). Até sair das
mãos do ministério da Economia, o orçamento de 2023 reservara para esse fim
verbas que corresponderiam a um ajuste de 8% para eles. Como a PEC da transição
liberou muito mais dinheiro do que o que será gastos com o pagamento do Auxílio
Brasil e com o adicional de R$ 150 para famílias com crianças menores de 6
anos, é possível que parte dos recursos extras sejam igualmente consumidos pela
folha de pagamento do funcionalismo.
Com um número de funcionários menor que o
da média dos países da OCDE, o Brasil gasta com salários mais do que a mesma
média, o que reflete privilégios em penca da elite do funcionalismo. A
reposição integral da inflação é um direito não escrito que os separa ainda
mais dos trabalhadores da iniciativa privada. Nos últimos 12 meses findos em
novembro, segundo o Salariômetro da Fipe, 41,9% dos acordos e dissídios
estipularam reajustes abaixo da inflação (INPC). Só 31,4% a repuseram
integralmente.
A forma correta de corrigir o cipoal de distorções no setor público é uma profunda reforma administrativa. Ela foi praticamente sepultada por Bolsonaro, cujo desinteresse sobre esse assunto, e muitos outros, foi notório, e o governo petista que será empossado no primeiro dia de 2023 não demonstra interesse nela - se algo se falou sobre isso no diagnóstico feito pelos grupos de transição, foi inaudível. No geral, o PT, defende a manutenção dos benefícios que as elites dos servidores têm e os demais trabalhadores, não.
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