O Globo
A I.A. se encarrega de encadear assuntos e
preparar um rascunho. Adeus, angústia diante da tela em branco
Todo avanço tecnológico implica uma reação
de igual intensidade, em sentido contrário, por parte de quem acha que perderá
o ganha-pão. Foi assim que os acendedores de lampiões receberam a chegada da
luz elétrica. Ou que os fabricantes de ficha telefônica viram o advento do celular.
Com a inteligência artificial não havia por que ser diferente.
O que acontece a um escritor quando aparece uma “máquina de escrever” que, diferentemente das Remingtons e Olivettis da nossa juventude, escreve sozinha? E — o que é pior — escreve em segundos, de forma articulada, sem a autoexigência de ser (ou parecer) original e sem erros de português? O mesmo que em qualquer luto: negação, revolta, barganha, depressão e — ufa! — aceitação.
A negação se manifesta com aquele olhar de
raposa para o cacho de uvas: o texto da “máquina de escrever” não tem alma.
(Ateus tampouco têm alma, nem por isso deixam de produzir arte.) Ok, é de outra
alma que se trata, mas igualmente metafórica: ela virá a seu tempo, com a
consciência.
Imaginar que os modelos de aprendizado de
máquina avancem em progressão aritmética e com alcance limitado é ver Ícaro
despencando das nuvens, com as asas pingando cera, daí supor que o ser humano
jamais chegará à Lua — ou, chegando à Lua, não alcance galáxias.
A revolta já ocorre em várias frentes. O
algoritmo embutiria interesses escusos (o que mais se poderia esperar de uma
cria do capitalismo?). Por ter sido abastecido com textos (incluindo conversas)
disponíveis na internet, tenderia a perpetuar os vieses misógino, racista,
homofóbico, demofóbico etc. da nossa cultura patriarcal, eurocêntrica etc.
O ChatGPT privilegia
a norma padrão da língua — mas pode vir a ser programado para se expressar em
linguagem neutra (e virar um ChatLGPTQIA+, por que não?).
Barganhamos os anéis para preservar, ainda,
dedos, mãos e braços. A tecnologia pode ser usada no trabalho pesado: resumos,
pesquisas, análise de dados. Para criar questionários, preencher formulários,
redigir e-mails, documentos burocráticos. Ou (e aqui começa a zona cinzenta) o
esboço de textos autorais. Dadas as palavras-chave, a I.A. se encarrega de
encadear assuntos e preparar um rascunho. Adeus, angústia diante da tela em
branco.
“Depressão” talvez pareça forte demais para
o estágio seguinte, mas nem tanto: os textos made in I.A. podem até não ter
alma, mas... que corpo! A linguagem é clara (clareza é dom de poucos, já que é
comum confundir complicação com complexidade). A sequência é lógica
(aborrecidamente lógica para quem considera anacolutos, hipérbatos, prolepses e
analepses o máximo de sofisticação). As referências são múltiplas. O tom é
sereno. Se não causar depressão, dá inveja. O produto não é indicado para uso
em palanques ou blogues progressistas (aí o que se recomenda é o gerador de
lero-lero). Mas não fará feio em obituários, horóscopos, notas de
esclarecimento, petições iniciais, memoriais descritivos.
Por fim, hão de vir a serenidade na
aceitação do que os modelos de linguagem fazem melhor que nós, coragem para
desprezar o óbvio (e investir no que precisa de personalidade, também conhecida
como “alma”) e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.
(O ChatGPT informou que não há relação
entre modelos de linguagem e as cinco etapas do luto. Pelo jeito, não conhece
tão a fundo os escritores.)
3 comentários:
Excelente coluna.
O colunista deve se achar um escritor... Talvez ele goste de se autoenganar!
Carácoles!
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