quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Míriam Leitão - O que falta ao Brasil para se cumprir

O Globo

Depois de quatro anos, o 7 de setembro será comemorado sem ameaças de golpe de Estado nem xingamentos aos poderes

Então é 7 de setembro e não há qualquer ameaça de golpe de Estado. É um alívio. Nos últimos anos, a data nacional foi usada pelo ex-presidente para colocar uma espada sobre a cabeça do país, mobilizar seus seguidores, ameaçar ministros do Supremo, lançar palavras ambíguas no ar, e se esconder atrás das Forças Armadas. Em 2021 foi assim. Era ainda a pandemia e ele convocou multidões, sem máscara, para explicitar o seu golpismo. Em 2022, a comemoração dos 200 anos de independência foi vilipendiada por sua campanha eleitoral. Não devemos nos esquecer desse passado recente e aviltante.

A democracia às vezes é apenas uma alegria. Hoje eu serei feliz porque estarei entre livros, na Bienal do Rio, e conversando com gente que eu respeito sobre a Amazônia. Não terei que comentar discursos golpistas ou analisar as entrelinhas de notas dos militares. Ontem, eu fui feliz, também, porque entrevistei Valter Hugo Mãe, sobre literatura e sobre o Brasil.

Hoje não terei que ouvir o presidente da República se definir como “imbrochável", como fez Jair Bolsonaro no discurso do bicentenário. Ou, ouvi-lo dizer, como fez em 2021, que as eleições são uma “farsa”. Bolsonaro estragou cada um dos últimos 7 de setembro, apropriando-se da data, do hino e da bandeira nacionais, como se fossem símbolos exclusivos de seus seguidores.

Hoje é 7 de setembro e é importante discutir tudo o que ainda falta fazer num país que tem no seu passado uma escravidão de 300 anos e o extermínio de muitos povos indígenas, marcas que moldaram nossa intolerável desigualdade. Datas nacionais podem ser celebradas com festas, ou podem ser momentos de reflexão. O saudável é que sejam ambos, numa mistura de festas e compromissos para o futuro.

O que a data nacional brasileira não pode ser é o que tem sido por tempo demais. Desde o começo da República, a comemoração da independência foi militarizada. Na ditadura foi usada para exaltar o regime que nos sufocava. Vivemos o sesquicentenário sob o AI-5. No bicentenário, houve essa mistura de campanha eleitoral com a manipulação da imagem das Forças Armadas para ameaçar o país com a ideia da ruptura institucional iminente.

Em 2021, no discurso, em Brasília, Bolsonaro falou em um “ultimato” aos poderes, disse que iria reunir o Conselho da República para mostrar “a fotografia de para onde devemos ir”. Em São Paulo, Bolsonaro xingou o ministro Alexandre de Moraes, ameaçou o Supremo, afirmou que só sairia da presidência “preso, morto ou com a vitória”. A frase não faz sentido, porque ninguém sai “com a vitória”, mas era sobretudo uma bravata. O que ocorreu foi que ele saiu quase fugido do país, 48 horas antes de terminar seu mandato, tentando levar joias que não lhe pertenciam e deixando uma bomba para explodir no dia 8 de janeiro.

O país é maior do que tudo isso. A independência não é um quadro de Pedro Américo na parede do museu. É maior. Ontem, na primeira véspera de 7 de setembro, em cinco anos, em que eu não tive que me preocupar com ameaças do governo, dediquei um tempo à literatura. Entrevistei no meu programa na Globonews o escritor, poeta, editor e artista plástico português Valter Hugo Mãe, que tem com o Brasil um conhecido caso de amor, plenamente correspondido.

Ele me deu notícias. Seu próximo livro está pronto. Já entregou ao editor, é uma história que se passa na Ilha da Madeira, sobre dois irmãos, o mais novo deles nascido com uma grande vulnerabilidade. O título, informação exclusiva desta coluna, será “Deus na escuridão”.

Ao fim do programa, lembrei que hoje era a data nacional brasileira e perguntei a Valter Hugo quando o Brasil será do tamanho dos nossos sonhos. Ele respondeu, lindamente, o seguinte:

— Eu acho que o Brasil já tem um tamanho imenso. Eu gostaria que as instituições, os poderes estivessem à altura do esplendor da cultura brasileira. A cultura brasileira produz um deslumbre no mundo inteiro. É impossível ser feliz na contemporaneidade sem ouvir Caetano Veloso, Chico Buarque ou ler Clarice Lispector ou Carolina Maria de Jesus. O que acho que falta ao Brasil para se cumprir é de fato uma altura, uma elevação dos poderes, mormente políticos, a isto que está mais do que concreto, mais do que evidente que é a tradução de uma alma absolutamente admirável que identifica o território do Brasil.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Perfeito, verdadeiramente PERFEITO! A colunista estava muito inspirada ao escrever este texto maravilhoso! Parabéns a ela, e ao blog por divulgar o trabalho desta grande jornalista!

ADEMAR AMANCIO disse...

Ela é sempre ótima.