Congresso quer fundo eleitoral sem cabimento
O Globo
Mantida a vontade dos congressistas, o Brasil
deverá gastar por eleitor quase o quádruplo do México
Partidos políticos articulam no Congresso um aumento inédito no fundo que financiará a campanha municipal no ano que vem. O valor cogitado está entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões, retirando recursos da Justiça Eleitoral ou das emendas de bancada no Orçamento. Nem a manobra para mudar o destino da verba, nem o valor aventado têm o menor cabimento. O bom senso e a experiência internacional mostram que os congressistas deveriam desistir da ideia e entrar num acordo para reduzir o fundo eleitoral dos R$ 4,9 bilhões gastos em 2022 para algo como R$ 2,5 bilhões (gasto em 2020, ano da última eleição municipal, corrigido pela inflação).
Basta comparar o Brasil com um país
semelhante, o México, para ter ideia de quão absurdo é o valor pleiteado. Com
99 milhões de eleitores (dois terços do Brasil) e legislação de financiamento
de campanha não muito diferente, os mexicanos destinaram às eleições nacionais
de 2024 menos de R$ 1 bilhão (valor compatível com o que o governo brasileiro
alocou na Lei de Diretrizes Orçamentárias, R$ 940 milhões). O gasto por eleitor
mexicano será de R$ 10. No Brasil, alcançados os R$ 6 bilhões do sonho dos
parlamentares, quase o quádruplo, R$ 38,4.
Nenhum dos argumentos usados para defender o
aumento no fundo eleitoral é razoável. Os chefes partidários costumam dizer que
é caro fazer campanha num país de dimensões continentais. A ideia não faz
sentido. Enquanto os mexicanos elegerão presidente, senadores e deputados em
campanhas regionais e nacionais, no Brasil haverá disputas locais a prefeito e
vereador. Outro argumento é alegar que subiu o preço dos serviços nas
campanhas. É outra ideia sem amparo nos fatos. A internet barateou a produção
audiovisual e a distribuição, dois dos principais gastos. Não há levantamento
independente que confirme alta descontrolada nos preços. Tampouco evidência de
que as campanhas municipais tenham sido prejudicadas por falta de verba em
2020, quando muito menos dinheiro foi gasto.
O fundo eleitoral foi criado em 2015, na
esteira de escândalos de corrupção que chocaram o país. Por decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF),
as doações de empresas a campanhas eleitorais foram consideradas
inconstitucionais. O financiamento com dinheiro público, adotado noutros
países, apareceu como solução que prometia moralizar as campanhas. Não foi
exatamente o que aconteceu. De lá para cá, não faltam denúncias de dinheiro
desviado para construir piscinas, alugar frotas milionárias e até comprar
toneladas de carne para churrasco. É frequente a contratação de agências,
gráficas ou produtoras de vídeo sem nenhuma experiência além do vínculo com
candidatos, líderes partidários ou seus familiares.
A Justiça Eleitoral, cuja verba o Congresso
quer reduzir para ampliar o fundão eleitoral, tem tido enorme dificuldade para
coibir irregularidades. Por vezes as comprova e condena os candidatos. Mas os
próprios parlamentares tentam agora anular as condenações por crimes eleitorais
com a PEC da Anistia, que felizmente está parada no Senado. Seria vergonhoso se
fosse adiante. Ou se recursos fossem subtraídos da Justiça Eleitoral. Nem mesmo
a proposta de usar verba das emendas parlamentares deveria ser levada a sério,
pois não falta dinheiro para campanhas. Num país com tantas demandas, esse
debate é um desrespeito ao eleitor.
Queda em receitas do petróleo põe em risco
cumprimento de metas fiscais
O Globo
Contas públicas não deveriam depender de
arrecadação vinculada a produto tão volátil
A margem de manobra do governo para cumprir
seus compromissos fiscais está mais estreita. O setor de petróleo — fonte
fundamental de receita para os cofres públicos — deverá sofrer queda expressiva
neste ano. De acordo com projeções publicadas pelo GLOBO, os royalties
arrecadados pela União cairão em torno de 30% (de R$ 62 milhões para R$ 44
bilhões). Os dividendos pagos pela Petrobras, 40% (de R$ 58 bilhões para R$ 34
bilhões). A arrecadação de impostos pagos pela estatal, por fim, deverá ser 20%
menor (caindo de R$ 70 bilhões para R$ 55 bilhões). Ao todo, a queda é estimada
em R$ 57 bilhões, ou 40% do déficit primário projetado para 2023.
Receitas menores do petróleo dificultarão a
meta de zerar o déficit no ano que vem, promessa feita com a aprovação do novo
arcabouço fiscal. A queda impõe ao Tesouro o desafio de buscar ainda mais
arrecadação para compensar as perdas. Não será tarefa fácil, diante dos compromissos
de gastos assumidos. Mesmo que deem certo todos os planos do governo para
arrecadar mais — taxação de fundos exclusivos e offshore, mudança nas regras de
julgamentos de pleitos dos contribuintes junto ao Fisco etc. —, ainda assim
será preciso buscar alternativas às receitas do petróleo.
De acordo com a Instituição Fiscal
Independente (IFI), do Senado, apenas os dividendos da Petrobras e a
arrecadação derivada da exploração de recursos naturais representaram 4,3% da
receita líquida da União de janeiro a agosto. No mesmo período de 2022, o índice
foi 6%. De 2017 a 2019, a contribuição da estatal e do setor era 1,9%. Em 2020,
foi 1,7%. E em 2021, 3,7%. Tais números mostram que o ano passado foi um ponto
fora da curva que não deverá se repetir. Estudos preveem o fim do ciclo de
grande contribuição para o Erário das atividades petrolíferas, por meio de
royalties, dividendos e impostos.
O conflito no Oriente Médio poderá, é
verdade, ter efeito na variação do preço do petróleo. Depois dos ataques
terroristas do Hamas,
houve leve alta na cotação. O governo americano anunciou que seus estoques
registraram o maior aumento desde fevereiro, suavizando a alta. Os responsáveis
pela política fiscal em Brasília também acompanham de perto o conflito. Mas,
mesmo que as variações no preço possam favorecer momentaneamente o Tesouro,
trata-se de receita volátil, dependente de fatores instáveis, tanto de mercado
quanto geopolíticos.
A atividade petrolífera tem sido crítica para
a receita da União nos últimos anos, mas não pode ser considerada um pilar
confiável para nenhuma política fiscal. O governo precisará de outras opções
para compensar eventuais frustrações de receita. No Brasil, as prioridades
deveriam ser o corte de gastos e a otimização da máquina pública.
Relatório da CPMI forma enredo da corte de
Bolsonaro
Valor Econômico
Como parecia óbvio, a comissão se voltou
contra Bolsonaro e os extremistas que o apoiaram em uma tentativa, felizmente
fracassada, de provocar pela violência a intervenção das Forças Armadas
O relatório final da Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito do Congresso pediu o indiciamento do ex-presidente Jair
Bolsonaro, dos generais do núcleo de seu governo - Walter Braga Netto, Luiz
Eduardo Ramos, Augusto Heleno - e de comandantes militares, como Paulo Sérgio
Nogueira (Exército) e Almir Garnier (Marinha), por associação criminosa,
abolição violenta do Estado de Direito e tentativa de golpe de Estado. Ao todo,
houve 61 pedidos de indiciamento. Os parlamentares concluíram que Jair
Bolsonaro foi o mentor moral e intelectual dos atos de 8 de janeiro que
culminaram com a invasão das sedes dos três Poderes da República. Bolsonaro,
Braga Netto e outros indiciados não foram ouvidos pela CPMI, o que é extremamente
questionável. Foi proferido um julgamento político, o que é característica do
parlamento.
Cinco meses de trabalho produziram um
relatório de 1.333 páginas, que formam um enredo coerente dos principais atos e
condutas dos personagens centrais da corte de Bolsonaro, e de outros que agiam
à sua sombra. Não há fatos propriamente desconhecidos nesse volumoso relato,
que envereda pela sociologia e por longas análises do pensamento tanto de Olavo
de Carvalho quanto de Michel Foucault, Friedrich Hayek, Gustave Le Bon, Hanna
Arendt e outros. A trajetória autoritária e os atentados à ordem legal foram feitos
por Bolsonaro à luz do dia, ao longo de seu mandato, de forma que as
investigações mais relevantes, ainda inconclusas - a preparação de um golpe de
Estado -, estão nas mãos do Supremo Tribunal Federal.
A CPMI, que teve como relatora a senadora
Eliziane Gama (PSD-MA), teceu uma trama que já fora contada em muitos pedaços
pelos mais de 150 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, que o presidente da
Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), não levou adiante. De qualquer
forma, a votação do relatório, prevista para hoje, consolidará uma manifestação
oficial do Poder Legislativo sobre os estragos à democracia feitos por
Bolsonaro e seus ministros e assessores. Pela peça produzida na CPMI, Bolsonaro
cometeu crimes em série.
Ainda que os pedidos de indiciamentos à
Procuradoria Geral da República não tenham resultados práticos, caso não sejam
levados adiante integralmente, podem vir a ser elementos coadjuvantes dos
vários processos nos quais o ex-presidente está enredado no STF. Bolsonaro já
foi declarado inelegível até 2030, mas as investigações do Supremo poderiam até
conduzi-lo à prisão.
O resultado final da comissão era previsível,
ainda que tenha colocado o governo atual, logo em seu início, na defensiva e
contrário à sua instalação. Curiosamente, foram os parlamentares bolsonaristas
que, com seu instinto peculiar, mais defenderam a criação da CPMI, acreditando
que, após o espetáculo deprimente de 8 de janeiro, seria um passeio no parque
provar que a desmontagem clara dos esquemas de segurança em Brasília fora obra
do próprio governo e os atos de vandalismo, obra de infiltrados da esquerda.
Como parecia óbvio, a comissão se voltou contra Bolsonaro e os extremistas que
o apoiaram em uma tentativa, felizmente fracassada, de provocar pela violência
a intervenção das Forças Armadas.
O STF tem aplicado penas severas aos
primeiros réus, enquanto a PGR já firmou mais de três centenas de acordos de
não persecução penal, entre 1.125 indiciados, para que prestem serviços à
comunidade. Mas as investigações que podem provar a participação de Bolsonaro e
militares em atos ilegais, como apropriação indébita de joias da Presidência da
República e a tentativa de golpe de Estado, estão em andamento. A peça
principal para isso é a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, que
indica que Bolsonaro teria participado de um complô para envolver as Forças
Armadas, prender adversários e membros do STF, intervir na Justiça Eleitoral e
impedir a posse de Lula. Entre a delação e as provas concretas de culpa há um
oceano de comprovações que precisa ser atravessado, e disso depende o desfecho
da saga bolsonarista.
O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel
Mauro Cid, que assumiria Batalhão de Ações de Comandos, em Goiânia, era um
faz-tudo do então presidente e foi preso no dia 3 de maio, ao mesmo tempo em
que era feita operação de busca e apreensão na residência de Jair Bolsonaro em
Brasília. Dos celulares apreendidos brotou um manancial de pistas
incriminatórias graves. Cid deixou a prisão no início de setembro e, na
delação, afirma que Bolsonaro, após a derrota nas eleições, reuniu-se com o
comando das Forças Armadas para tentar impedir a posse de Lula, no que teve
apoio total do comandante da Marinha, Almir Garnier.
A delação de Cid sugere o que ocorreu - não houve o endosso dos comandantes do Exército e da Aeronáutica à aventura. A relatora destaca em seu relatório que as Forças Armadas, com sua atuação, foram leais à Constituição, um reconhecimento necessário. Mas o depoimento dos ex-comandantes do Exército (Freitas Gomes), da Aeronáutica (Carlos Baptista Jr) e da Marinha (Almir Garnier) são vitais para esclarecer o papel de Bolsonaro em um série de ações que culminou em um dos episódios mais infames da Nova República.
Proteger os civis
Folha de S. Paulo
Reação legítima de Israel não pode transpor
as fronteiras da proporcionalidade
As leis que deveriam orientar a conduta de
países em guerra são centradas nas quatro convenções de Genebra. A mais
recente, de 1949, discorre sobre a proteção aos civis em áreas de conflito.
Ela é regida por três princípios. O primeiro,
a distinção entre combatentes e não combatentes. O segundo, a proporcionalidade
de uma ação ante a agressão sofrida. E, por fim, a prevenção de danos
excessivos aos civis e à infraestrutura.
Não é preciso ir longe na história para saber
que essas fronteiras são usualmente borradas —quando não ignoradas, ainda que
196 países tenham aderido à quarta convenção de Genebra, marco do direito
humanitário internacional.
A ascensão de atores não estatais e de
métodos assimétricos de combate, usualmente associada ao terrorismo, gera
complicadores adicionais, como se vê no caso da guerra entre o Hamas e Israel.
Em 7 de outubro, o grupo palestino que
comanda a Faixa de Gaza lançou um
ataque terrorista devastador, matando 1.300 israelenses.
Mesmo para quem tinha em atentados suicidas
uma forma extrema de ação, a litania de horrores, que incluiu massacre de
crianças, estupros e o sequestro de até 250 pessoas, estabeleceu um novo
patamar.
A traumatizada sociedade israelense tem
direito a retaliação, e é aqui que os problemas com as regras de engajamento
começam.
Há décadas Israel pratica formas de repressão
aos palestinos consideradas crimes de guerra por seus críticos, a exemplo de
deportações e ataques indiscriminados, como os impostos a Gaza. Nos últimos
anos, o país rumou à direita religiosa sob Binyamin Netanyahu.
Por outro lado, Tel Aviv argumenta, também
com razão, que os terroristas usam os 2,3 milhões de moradores como escudos.
O impasse foi exacerbado na corrente
conflagração. A reação israelense, por meio de bombardeios, já matou quase
3.000 pessoas. Gaza foi sitiada e deixada sem água e luz.
Para completar, Israel determinou que 1,1
milhão de palestinos deixassem a porção norte do território, incluindo a
capital homônima e sugerindo que ali terá palco uma temida invasão terrestre.
Os militares dizem que assim protegerão
vidas, mas o fato é que inocentes se viram expulsos de casa sem nem conseguir
sair da Faixa de Gaza, dado o bloqueio ao sul.
Ainda mais grave, Israel determinou a
evacuação de hospitais, o que a Organização Mundial da Saúde criticou duramente.
Numa tragédia previsível, uma das
unidades foi atingida por um ataque que o Hamas diz ter matado centenas.
Não é pequeno o dilema dos planejadores
militares israelenses, porém a indignação que o terror gerou no mundo não pode
ser respondida com violência contra civis.
Gigante estagnado
Folha de S. Paulo
PIB é relevante, mas avanço pífio da renda
revela letargia econômica brasileira
As dimensões do Produto Interno Bruto têm
apelo histórico no imaginário político nacional. O posto de oitava maior economia do
mundo motivou ufanismo durante a ditadura
militar; petistas até hoje celebram um duvidoso sexto lugar em 2011,
sob Dilma
Rousseff.
Tais colocações não raro são saudadas como um
sinal de pujança, como se o país fosse rico e precisasse apenas de uma melhor
distribuição de renda.
Trata-se de leitura errônea dos dados.
É fato que, com oscilações aqui e ali, o
Brasil costuma figurar nas últimas décadas entre as dez maiores economias do
mundo —noticia-se agora que, pelas projeções do Fundo Monetário
Internacional, recuperaremos
neste 2023 a nona colocação de antes da pandemia.
Nada há de espantoso aí, dado que a população
brasileira está igualmente entre as maiores do planeta. Quando se divide
o PIB pelo
número de habitantes, há muito não aparecemos nem entre os 70 países mais
abonados.
A comparação internacional, ademais, é
sujeita a distorções. Com a mera conversão do PIB em moeda local para dólares,
um país pode melhorar ou piorar sua colocação devido a variações
circunstanciais da taxa de câmbio.
O alegado sexto lugar brasileiro de 2011 (a
série histórica do FMI mostra
atualmente uma sétima posição naquele ano), por exemplo, foi calculado num
momento de força do real, quando a cotação do dólar aqui rondava R$ 1,80.
Por essa razão, os cálculos mais sofisticados
utilizam uma métrica que considera o poder de compra das moedas nacionais,
conhecida como PPP. Nessa conta, o Brasil aparece hoje até em posição melhor, a
oitava, no ranking das maiores economias —e as oscilações ao longo do tempo são
menores.
O tamanho de uma economia não é irrelevante,
claro, uma vez que confere ao país maior peso nas negociações internacionais.
Mas a renda per capita, sua evolução e sua distribuição são indicadores muito
mais precisos de prosperidade.
Nesse aspecto, não resta dúvida de que nosso
desempenho na história recente é muito ruim. Segundo o FMI, desde 1980 o PIB
por habitante cresceu pouco menos de 50% no Brasil, ante mais de 100% nos
países ricos e de 200% no conjunto dos pobres e emergentes.
Os dados descrevem um gigante estagnado e pouco produtivo, que vê aumentar a distância entre seus padrões de bem-estar e os do mundo desenvolvido.
A inconstitucional precarização da PGR
O Estado de S. Paulo
PT não lida bem com instituições
independentes. Interinidade na PGR dá a Lula o que ele sempre quis – e a
Constituição proíbe: um procurador-geral da República refém do governo
No dia 26 de setembro, encerrou-se o mandato
de Augusto Aras à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR). No entanto,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda não indicou um novo nome para
suceder-lhe. A função de chefia da PGR vem sendo exercida interinamente pela
subprocuradora-geral Elizeta Maria de Paiva Ramos.
Essa interinidade é uma situação nova. Desde
a redemocratização, nenhum presidente da República demorou tanto na indicação
de um nome para chefiar a PGR, que, para assumir a função, ainda terá de ser
sabatinado e aprovado pelo Senado. Mas nessa situação há mais do que mera
novidade. A não indicação para o cargo de procurador-geral da República,
fazendo com que ele seja exercido de maneira interina, é um modo de burlar as
garantias constitucionais da função e, consequentemente, um enfraquecimento da
necessária independência do Ministério Público.
A Constituição de 1988 atribuiu ao
procurador-geral da República funções importantes, que podem ser incômodas ou
mesmo colidirem frontalmente com os interesses do presidente da República.
Destaca-se, em primeiro lugar, a competência exclusiva para apresentar
denúncias criminais contra o chefe do Executivo federal, com exceção dos crimes
de responsabilidade.
Mas a questão não se refere apenas a essa
competência, cujo exercício é, a princípio, muito excepcional. Segundo a Constituição,
no seu art. 103, § 1.º, o procurador-geral da República tem de ser ouvido
previamente em todas as “ações de inconstitucionalidade e em todos os processos
de competência do Supremo Tribunal Federal (STF)”. E isso nada tem de
excepcional: é o funcionamento habitual, de todos os dias, da Corte
constitucional. Uma PGR refém do Palácio do Planalto pode, portanto,
representar um risco importante no aprumo dos trabalhos do STF; em especial, no
controle de constitucionalidade. A previsão constitucional da participação do
procurador-geral da República nas ações do Supremo não é exigência burocrática,
mas fruto da compreensão de que o Ministério Público é indispensável para o bom
funcionamento da Justiça.
Outro elemento a corroborar essa realidade é
o fato de que, dentre os 15 membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2
são escolhidos pelo procurador-geral da República.
A Constituição de 1988 estabelece ainda duas
competências muito significativas para o procurador-geral da República. Na
hipótese de grave violação de direitos humanos, com o objetivo de assegurar o
cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos
humanos dos quais o Brasil seja parte, cabe ao chefe da PGR requisitar, perante
o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em qualquer fase do inquérito ou
processo, o deslocamento de competência do caso para a Justiça Federal.
Importante para a efetividade dos direitos humanos, essa atribuição pode gerar
não pequeno constrangimento político para o Palácio do Planalto.
Compete ainda ao procurador-geral da
República requisitar ao STF intervenção federal nos Estados para assegurar o
respeito ao sistema representativo e ao regime democrático; aos direitos da
pessoa humana; à autonomia municipal; à prestação de contas da administração
pública, direta e indireta; e à aplicação do mínimo exigido para a saúde e a
educação.
Para que o procurador-geral da República
possa exercer bem essas funções, a Constituição impede que ele seja destituído
do cargo pelo presidente da República. Sua remoção exige a autorização da
maioria absoluta do Senado. No entanto, e aqui está a burla impetrada por Lula
da Silva, enquanto a PGR estiver sendo chefiada interinamente, o presidente
consegue remover a pessoa do cargo a qualquer momento.
Trata-se de uma precarização da PGR, que
viola toda a sistemática constitucional prevista para o Ministério Público. A
Constituição estabeleceu mecanismos para assegurar a independência e a
estabilidade da instituição. No entanto, a interinidade do procurador-geral da
República subverte tudo isso, com o posto à mercê dos humores do Palácio do
Planalto.
Desenvolvimento sustentável e realista
O Estado de S. Paulo
Como na Constituição brasileira, as promessas
da ONU são maximalistas e abrangentes. Mas é preciso selecionar os fins mais
relevantes e priorizar os meios mais eficazes para atingi-los
Todo mundo quer justiça, paz e prosperidade
para todo mundo. De liberais a socialistas, democratas ou autocratas,
filantropos e até terroristas, todos dizem perseguir esse fim. Só divergem nos
meios. E mesmo quando há consenso, os recursos são limitados, e há que se
escolher quais investimentos devolvem mais.
Em 2015, as Nações Unidas estabeleceram 17
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) segmentados em 169 metas para
2030. Eles prometem todo bem possível e imaginável a todo mundo, da erradicação
da pobreza, fome e desemprego ao impulso à pesca artesanal e produção orgânica,
à paz mundial.
Mas priorizar as 169 metas é não priorizar
nenhuma. Em 2023, estamos na metade do tempo, mas nem perto da metade do
caminho. Segundo a ONU, em média, elas serão atingidas meio século depois.
Algumas retrocederam, outras tomarão séculos. Previsivelmente, a última cúpula
dos ODS foi um festival de frustrações e recriminações. O secretário-geral,
António Guterres, pleiteou mais meio trilhão de dólares ao ano. Mas isso
representa só um vigésimo dos custos estimados para as metas, que os
contribuintes relutarão em pagar e divergirão sobre onde e como aplicá-los.
É preciso priorizar. Quais as metas mais
relevantes? Quais são concretas e têm soluções à mão e quais são genéricas e
dependem de arranjos complexos? Quais políticas entregam mais benefícios a
menores custos?
O instituto Copenhagen Consensus reuniu 100
economistas para revisar a literatura e identificar políticas mais eficazes
para a metade mais pobre do mundo. Eles selecionaram 12, que, a cada ano,
custariam US$ 35 bilhões, entregariam US$ 15 a cada US$ 1 investido, salvariam
4,2 milhões de vidas e enriqueceriam os mais pobres em US$ 1 trilhão.
Entre 1900 e 2000, graças à “revolução verde”
que permitiu cultivar mais com menos terra, a disponibilidade de comida per
capita no mundo aumentou 50%. Uma segunda “revolução verde” geraria mais
empregos e reduziria a pobreza e a fome. Poucas políticas entregariam mais que
o aumento em pesquisa e desenvolvimento agrícola.
As vacinas salvam mais que qualquer invenção
médica, poupando 3,8 milhões de vidas ao ano. Com US$ 1,5 bilhão a mais por
ano, poderiam salvar mais 4,1 milhões até 2030. Hoje, 63% das mulheres em
países pobres dão à luz em hospitais. Ao custo de US$ 550 milhões ao ano,
poderiam ser 90%, evitando centenas de milhares de mortes maternas e neonatais,
com ganhos massivos em dividendos demográficos. Danos físicos e cognitivos da
desnutrição materna e infantil são longevos e irreversíveis. O foco nesses
segmentos traz grandes impactos econômicos e cívicos. Doenças como tuberculose
e malária dizimam populações pobres, mas podem ser radicalmente reduzidas com
remédios simples e baratos.
No mundo em desenvolvimento, os investimentos
em escolarização aumentaram. Mas as crianças não estão aprendendo. Há soluções
que quase independem de dinheiro. Nas classes, muitas crianças lutam para
atingir o nível ensinado, outras estão acima. Se ao menos uma parcela do tempo
fosse dedicada a reunir crianças do mesmo nível, ao invés da mesma idade, se
poderia ganhar muito. Leitura e linguagem são chave para as outras disciplinas,
e a instrução de professores com foco no letramento tem impactos robustos.
Populistas têm tido facilidade em erguer
barreiras à liberalização econômica, porque ela comporta custos e perdas a
certos setores. Mas as evidências mostram que os ganhos para a sociedade são
bem maiores, e podem ser reinvestidos na readaptação e inclusão dos “deixados
para trás”.
Assim como a Constituição brasileira, os ODS
trazem promessas abrangentes e maximalistas. Idealmente, elas apontam na
direção de um mundo justo, próspero e pacífico. Mas, na prática, é preciso
selecionar atalhos e veículos que levam mais rapidamente a ele. Os resultados
do Copenhagen Consensus podem ser questionados: outros economistas, com outras
evidências, podem sugerir outras políticas. Mas de saída eles têm o valor
intrínseco de exemplificar o esforço necessário para se fazer mais e melhor com
menos.
Truculência premiada
O Estado de S. Paulo
Ao laurear PMs da Operação Escudo, Tarcísio
dobra aposta numa política de segurança fracassada
Durante a solenidade pelos 53 anos de criação
das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), no dia 16 passado, o governador
Tarcísio de Freitas condecorou os policiais que atuaram na Operação Escudo,
realizada na Baixada Santista entre o fim de julho e o início de setembro. A
láurea concedida aos policiais da Rota, entre outras pessoas, é lamentável, mas
não causa surpresa – afinal, Tarcísio já disse ter ficado “extremamente
satisfeito” com o resultado daquela operação.
Para lembrar: a Operação Escudo tinha o
objetivo de prender os assassinos do soldado da Rota Patrick Bastos Reis, morto
enquanto patrulhava uma área do Guarujá em 27 de julho. Mas o que seria uma
justa investida do Estado após um crime gravíssimo logo se converteu numa
sanguinária vingança de policiais infensos às regras do Estado Democrático de
Direito. Com um total de 28 mortos, além de uma série de indícios de violações
de direitos humanos, a Operação Escudo se tornou a operação policial mais letal
do Estado desde o massacre do Carandiru, em 1992. Esse foi o resultado que
Tarcísio julgou digno de ser laureado.
Por mais descabida que seja – pois, afinal, a
Operação Escudo está longe de ser um exemplo de boa atuação policial –, a
medalha no peito dos policiais da Rota é o menor dos problemas. Bem mais
preocupante do que a condecoração dos agentes que participaram de uma operação
maculada por suspeitas de execuções sumárias e violações de direitos e
garantias fundamentais – ora sob investigação do Ministério Público – é o fato
de o governador paulista ter dobrado a aposta numa política de segurança
pública fracassada.
Ao invés de prêmios, a Operação Escudo
deveria ensejar uma profunda reflexão sobre os modos de agir da Polícia Militar
(PM), em particular da Rota, com vistas ao aprimoramento técnico contínuo da
corporação e, sobretudo, à delimitação do policiamento ostensivo às estritas
balizas legais. O Estado não é vingador; o que separa policiais de bandidos é
justamente o apego dos primeiros às leis.
Essa concepção de segurança pública centrada
no bangue-bangue já se revelou não apenas infrutífera, como também muito
perigosa para a própria sociedade, ainda que muitos cidadãos possam sentir uma
falsa sensação de segurança sempre que criminosos, ou mesmo suspeitos, são
mortos pela polícia em circunstâncias não raro suspeitas.
Durante a celebração pelo 53.º aniversário da Rota, criada num momento de recrudescimento da repressão aos opositores da ditadura militar em São Paulo, Tarcísio afirmou que, constantemente, ouve “apelos da população” para “colocar a Rota na rua”, lembrando o bordão do notório Paulo Maluf. Decerto não são poucos os paulistas que gostariam de ver nas ruas uma polícia ainda mais truculenta do que a própria Rota em meio à insegurança causada pela violência urbana. Contudo, um governante responsável – basta isso, não precisa ser um estadista – deve ser capaz de agir com racionalidade, o que passa por reconhecer e corrigir os erros de seus subordinados, e não glorificá-los.
Nenhum comentário:
Postar um comentário