Socorro a estados é prêmio para má gestão
Folha de S. Paulo
Dívidas de entes federativos, que já têm
juros favorecidos, serão de novo revistas; contribuinte brasileiro pagará conta
Pela enésima vez, os estados conseguirão
renegociar suas dívidas com a União. Segundo o acordo preliminar negociado com
o governo federal, a taxa
de juros acima da inflação que incide sobre esse passivo pode baixar de 4% ao
ano para até 2%, se os governos estaduais cumprirem metas de
ampliação de vagas no ensino técnico.
Caso eles consigam abater o valor do
principal da dívida, por meio da entrega de ativos como empresas estatais ao
Tesouro, a taxa pode diminuir mais, de 0,5 a 1 ponto percentual. A taxa real de
juros no país é de cerca de 6% anuais.
Há meses que entes federativos lançaram nova
campanha a fim de não pagar o que devem. Fazem parecer que são espoliados, que
não podem investir ou cuidar das necessidades da população por causa de
pagamentos que seriam injustos, indevidos ou até ilegais.
Ameaçavam mais uma vez levar o tema à Justiça e tentavam obter novos favores do Congresso.
Tal dívida resulta de um grande socorro federal, negociado entre 1997 e 2000,
que beneficiou em especial Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e
São Paulo. A União assumiu as compromissos dos estados, quebrados por
endividamento e má gestão generalizada.
A taxa de juros do socorro era então caridosa
para a época, de 6% ao ano. Em troca, as administrações foram impedidas de
emitir títulos. A autorização para contrair dívidas por outros meios passou a
depender de regras mais rígidas e de garantias federais.
O endividamento diminuiu, mas desde fins da
primeira década do século os estados passaram a se queixar de que o socorro
federal era insuficiente. Com apoio de administrações petistas, passaram a
tomar mais empréstimos.
Criaram artimanhas para maquiar o gasto com
pessoal e não fizeram reformas previdenciárias. Na grande onda de aumento de
arrecadação que ocorreu até 2014, elevaram despesas permanentes.
Concederam favores a empresas, na guerra
fiscal. Governo federal e Congresso relaxaram restrições de endividamento; a
Justiça acolheu a ofensiva contra os passivos.
Com a crise iniciada em 2014, gestões mais
perdulárias, como as de Rio, Minas e Rio Grande do Sul, tinham dificuldades
para arcar com despesas —das comezinhas, como a troca de pneus de carros da
polícia, ao salário de servidores.
A arenga funcionou. Houve reduções de taxas
de juros ou perdões a partir de 2014 e um novo regime de recuperação fiscal
para os falidos. Os estados
mais bem geridos pagam também a conta.
A União —ou seja, o contribuinte brasileiro—
perderá receitas, e sua dívida aumentará. Mais uma vez se passa a mensagem de
que a má gestão será premiada.
Ensino atrasado
Folha de S. Paulo
Governos devem sanar distorção entre série e
idade, que piorou com a pandemia
A defasagem entre a idade dos alunos e a
série que eles cursam é um problema histórico da educação brasileira,
que a pandemia de Covid-19 agravou ainda mais.
É necessário, portanto, que o poder público
esteja atento e desenvolva estratégias para diminuir os efeitos perniciosos que
essa distorção gera no aprendizado.
Uma das metas do Plano Nacional de Educação
(PNE), de 2014, era manter o patamar mínimo de matrículas de crianças e
adolescentes entre 6 e 14 anos no ensino fundamental em 95% até 2024.
Contudo, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios Contínua) Educação, divulgada na sexta (22), em 2023, 94,6%
desse estrato estava inscrito nessa que é a etapa correta do ensino para
a referida faixa etária.
É a primeira vez, desde o início da série
histórica em 2016, que o nível fica abaixo de 95%. Os números mostram que a
crise sanitária iniciada em 2020 interrompeu uma trajetória ascendente.
Em 2016, o índice era de 96,7%, e atingiu
97,4% em 2018. Já em 2022, caiu a 95,2% até chegar ao atual, abaixo do objetivo
do PNE.
Devido à pandemia, alunos da educação
infantil (crianças de 4 e 5 anos) atrasaram a entrada no sistema de ensino. Com
o fim da quarentena, aquelas de 6 ou 7 anos, que deveriam estar nas primeiras
séries do ensino fundamental, acabaram matriculadas na etapa anterior.
De acordo com a Pnad, em 2019, 11% das
crianças de 6 anos estavam na pré-escola. No ano passado, o número saltou para
29%.
A distorção entre série e idade tende a
provocar uma reação em cadeia, pois pode desestimular os estudos, elevando
assim as taxas de reprovação e de evasão escolar.
Levantamento de dados do Inep,
ligado ao Ministério da Educação, feito pela Fundação Itaú mostrou que 48% das
pessoas nascidas entre 2000 e 2005 não concluíram o ensino fundamental na idade
correta; no ensino médio, foram 59%.
Governos em todas as esferas devem monitorar
a situação e criar planos para sanar esse efeito nefasto da pandemia na
educação, com acompanhamento pedagógico específico e aulas de reforço para os
estudantes em defasagem.
Falta de dados tem prejudicado o combate à
dengue
O Globo
Só foram confirmadas 40% das mortes
suspeitas. Informação de qualidade é essencial para decisões
Dez estados, entre eles Rio e São Paulo, já
decretaram emergência epidemiológica para a dengue,
assim como as prefeituras de diversas cidades pelo país. A medida permite que
prefeitos e governadores façam despesas na velocidade exigida pela evolução do
contágio. Mas não é simples gerenciar uma crise na saúde pública dessa
dimensão, agravada pela limitação da disponibilidade de vacinas.
Com quase 2,3 milhões de casos, a incidência
da infecção quebrou o recorde na série histórica de dados do Ministério da
Saúde. A contagem correta e atualizada da evolução do contágio é
ferramenta essencial para os epidemiologistas administrarem o combate à doença.
Tudo precisa ser feito para evitar pressão excessiva sobre o sistema de saúde e
corrigir falhas no atendimento médico.
A maior preocupação entre os epidemiologistas
hoje é o número elevado de mortes ainda “em investigação”. São classificadas
assim aquelas que se acredita terem sido causadas por dengue, mas ainda não
foram confirmadas pelas secretarias de Saúde. É verdade que houve melhora. Na
semana passada, apenas 35% das mortes suspeitas haviam sido confirmadas. Pelos
números mais recentes, já são quase 40%. Mesmo assim, ainda há muita dúvida.
“Se somarmos os óbitos suspeitos com os confirmados, teremos mais mortes que no
ano passado todo. Como é possível que os gestores tomem decisões se desconhecem
a real gravidade da doença?”, diz o infectologista Julio Croda, da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Fiocruz.
Numa epidemia, as estatísticas funcionam como
os instrumentos de bordo de um navio ou avião, essenciais para a tripulação
chegar ao destino com segurança. Sem os dados corretos, os gestores da crise
operam em voo cego. Para dar a dimensão do problema, o epidemiologista
Wanderson Oliveira, ex-secretário de Vigilância e Saúde do Ministério da Saúde,
calcula que, a esta altura do ano passado, 82% do total de casos de dengue
tinha desfecho conhecido. Hoje, a média dos casos encerrados é menos da metade.
Entender a razão das mortes é fundamental. “Só assim será possível diagnosticar
que não houve encaminhamento à hidratação ou que a equipe está sobrecarregada”,
diz ele. A própria magnitude da epidemia e sua severidade continuam
desconhecidas.
O Ministério da Saúde alega que “abastece os
estados e municípios com testes para a detecção da doença”. E que a análise de
óbitos é “cuidadosa e demorada”. Isso não resolve o problema. O Estado de São
Paulo, que apresentava a mesma disparidade na semana passada, decidiu criar um
comitê para apoiar a investigação sobre a discrepância dos números. “Temos um
comportamento diferente neste ano, com a antecipação das chuvas e o aumento da
temperatura”, afirma Tatiana Lang D’Agostini, diretora do Centro de Vigilância
Epidemiológica (CVE) do Estado de São Paulo.
Na deficiência de estatísticas, falham os
três níveis da administração, federal, estadual e municipal. O Brasil dispõe de
tecnologia, profissionais e competência para criar procedimentos ágeis e
eficazes de acompanhamento da epidemia. É dever dos gestores da saúde saber
usá-los.
Apagão no centro de SP exige cobrar mais
eficácia da concessionária Enel
O Globo
Não é a primeira vez que moradores da maior
cidade do país são submetidos a longos períodos sem luz
Os constantes apagões enfrentados por
moradores de São Paulo nos últimos dias ultrapassaram o limite do razoável.
Assim como as desculpas apresentadas pela concessionária Enel para
justificar as interrupções. Em bairros da região central da cidade, a falta de
luz, que começou na manhã da segunda-feira, dia 18, se estendeu por mais de uma
semana, afetando serviços essenciais como hospitais, escolas e transportes,
além de transformar num caos a vida de moradores e comerciantes.
Não se pode menosprezar o sacrifício imposto
à população. Prejuízos causados pela perda de alimentos em refrigeradores
desligados, ar-condicionado e ventiladores inoperantes diante do calor
abrasador ou torneiras secas como efeito colateral da falta de luz sobre as
bombas-d’água nem são os problemas mais graves. Outros beiram a crueldade, caso
dos doentes que dependem de equipamentos permanentemente ligados em casa ou dos
idosos forçados a subir ou descer inúmeros lances de escada na falta de
elevadores. Nem todos os lugares dispõem de gerador, e a Enel demorou a
colocá-los em operação enquanto fazia os reparos necessários a restaurar o
fornecimento.
Pode-se até compreender quando os problemas
decorrem de chuvas torrenciais ou vendavais que derrubam árvores e danificam a
rede elétrica. Sabe-se que, devido às mudanças climáticas, esses imprevistos
estão mais frequentes, por isso as empresas de energia precisam
se preparar para dar uma resposta rápida à população. Mas o descaso é
indefensável quando o problema não decorre de situações extremas, caso do longo
apagão nos bairros centrais de São Paulo na semana passada.
Inicialmente, a Enel afirmou que uma
escavação da Sabesp, concessionária paulista de água e esgoto, atingiu
acidentalmente cabos subterrâneos. A Sabesp alegou que investigações
preliminares não detectaram danos. No meio do tiroteio verbal, fica o consumidor
que paga a conta em dia e não recebe o serviço contratado.
Não foi a primeira vez que moradores de São
Paulo foram submetidos a longos períodos sem luz. Em novembro do ano passado,
mais de 400 mil residências ficaram sem energia por mais de 60 horas depois de
uma tempestade. Em alguns lugares, o suplício durou mais de cem horas.
Levantamento do GLOBO mostrou que a Enel, que atende São Paulo e outras 23
cidades da Região Metropolitana, registrou 339.993 quedas de energia não
programadas em 2023 — ou uma interrupção a cada minuto e meio —, 37% acima da
média dos anos anteriores.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) precisa cobrar da Enel um serviço decente. Não é favor, é obrigação. O contrato da concessionária vai até 2028, e os moradores não podem passar mais quatro anos submetidos a apagões sucessivos. O transtorno é inaceitável. Hospitais têm de remarcar cirurgias, escolas dispensam alunos, comerciantes precisam compartilhar geradores, cidadãos acampam na casa de parentes ou fogem para hotéis. Não é possível que alguém ache isso normal na maior cidade do país.
A tardia e tímida crítica do Itamaraty a
Maduro
O Estado de S. Paulo
Gestão Lula acha que é possível “fortalecer”
a inexistente democracia na Venezuela
Não surpreende que o regime ditatorial de
Nicolás Maduro tenha impedido o registro da candidatura da principal chapa de
oposição na eleição presidencial de julho, pois é a culminação de um processo
integralmente eivado de irregularidades, fraudes e violência política, aliás
característico do chavismo desde sempre. Tampouco surpreende que só agora o
governo brasileiro, por meio do Itamaraty, tenha manifestado alguma
“preocupação” com a evidente destruição da democracia venezuelana.
Antes tarde do que nunca, mas mesmo no
momento em que tomou coragem de reconhecer que o regime do companheiro Nicolás
Maduro, ora vejam, está descumprindo suas promessas de permitir uma eleição
minimamente competitiva e limpa, o Itamaraty o fez escolhendo bem as palavras,
para não melindrar o ditador amigo de Lula da Silva – aquele mesmo Lula da
Silva que não escolheu palavras quando comparou Israel à Alemanha nazista.
Diz a nota envergonhada do Itamaraty que,
“com base nas informações disponíveis”, a candidata Corina Yoris, indicada pela
Plataforma Unitaria, força política de oposição, “sobre a qual não pairavam
decisões judiciais”, foi “impedida de registrar-se”, o que “não é compatível
com os acordos de Barbados” – em referência ao acerto em que Maduro garantiu a
lisura da eleição para presidente em troca da suspensão das sanções dos EUA à
Venezuela.
Ora, há tempos o regime chavista vem
impedindo sistematicamente que os principais nomes de oposição possam disputar
as eleições, seja prendendo-os, seja impedindo que se candidatem. O caso mais
escandaloso foi o da ex-deputada María Corina Machado, que foi considerada
inelegível pela Justiça Eleitoral, inteiramente controlada pelo governo. María
Corina era líder de intenção de voto nas pesquisas independentes.
Em vez de denunciar a evidente arbitrariedade
da ditadura venezuelana, Lula da Silva achou que era o caso de criticar María
Corina, recomendando que ela parasse de “chorar” e escolhesse outro candidato
para disputar em seu lugar.
Pois foi o que María Corina fez: escolheu
Corina Yoris. De nada adiantou. Corina Yoris não conseguiu registrar sua
candidatura porque simplesmente não teve acesso ao sistema de inscrição. O
prazo se encerrou ontem. Com razão, María Corina suspeita que qualquer
candidato que ela indicasse teria o mesmo destino: a impossibilidade de
disputar a eleição. Somente “opositores” chancelados pelo regime conseguiram
registrar suas chapas.
Ainda assim, pisando em ovos, o Itamaraty
reiterou sua crença de que é possível fazer da eleição de julho “um passo firme
para que a vida política se normalize e a democracia se fortaleça na Venezuela,
país vizinho e amigo do Brasil”. Se isso já era difícil antes, agora é
virtualmente impossível. Não é possível “fortalecer” a democracia na Venezuela
porque há décadas não existe democracia na Venezuela, e a ditadura só se
aprofunda.
A diplomacia de Lula da Silva para a
Venezuela em seu terceiro mandato é coerente com a dos dois anteriores, na
década de 2000, quando assistiu passivamente à gradual captura do Legislativo,
do Judiciário, das Forças Armadas e das instituições de controle de Estado pelo
regime de Hugo Chávez. Não houve um pio de Brasília diante da demolição do
Estado de Direito venezuelano e da imprensa livre e da brutal perseguição à
oposição política. O silêncio de Lula jamais resultou em arrefecimento do
regime. No entanto, essa mesma estratégia pusilânime prevalece como posição
oficial do Brasil.
O governo Lula jamais considerou a
possibilidade de integrar o grupo de países da região – entre os quais, os três
sócios do Brasil na fundação do Mercosul – que manifesta coletivamente sua
preocupação a cada arbitrariedade de Maduro nos últimos meses. Brasília tem se
mantido apartada até mesmo de vozes respeitáveis da esquerda, como a do
ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que condenam sem rodeios o caráter
autoritário do regime venezuelano.
O tardio esboço de surpresa do Itamaraty com
a mais recente prova de autoritarismo de Maduro ainda está longe, na forma e no
tom, de fazer jus ao interesse brasileiro na condenação inequívoca a qualquer
regime autoritário, independentemente de sua coloração ideológica.
O ministro que não calculava
O Estado de S. Paulo
Carlos Lupi, aquele que nega o déficit da
Previdência, rejeita também o cálculo atuarial, que projeta o gasto
previdenciário no futuro. Para ele, são ‘teorias que me incomodam muito’
O ministro Carlos Lupi disse não acreditar
que as despesas da Previdência Social no Orçamento estejam subestimadas, como
têm apontado alguns dos maiores especialistas em contas públicas do País. Para
defender sua tese, Lupi não se deu ao trabalho de apresentar divergências sobre
os números com os quais eles trabalham para projetar o gasto. Nem precisaria,
pois o motivo de sua desconfiança é muito mais singelo.
“Na questão orçamentária, eu acho que grandes
economistas trabalham com teorias que me incomodam muito. Porque teoria sobre o
ser humano é tão subjetiva… eu posso calcular exatamente quantos vão morrer? Eu
posso calcular quantos ficarão doentes? Eu posso colocar uma média”, afirmou o
ministro, em estupefaciente entrevista ao Estadão.
Não é segredo para ninguém que Lupi não
acredita na existência de um déficit na Previdência Social – algo que,
inclusive, ele reafirmou na entrevista. “Eu não aceito isso de dizer que a
Previdência é déficit, eu vou morrer assim”, disse.
Agora, no entanto, o ministro revelou que sua
descrença é mais profunda e diz respeito ao conceito de cálculo atuarial. Chega
a ser irônico que Lupi tenha afirmado isso no mesmo dia em que o governo
divulgou a primeira avaliação bimestral de receitas e despesas do ano e elevou
a estimativa de gastos com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) de R$
908,7 bilhões para R$ 914,2 bilhões.
Ora, é óbvio que não se pode prever, com
exatidão, quantas pessoas morrerão ou ficarão doentes em um determinado
período, mas isso não significa que não seja possível estimar os números com um
certo grau de segurança, a partir de modelos e do histórico dessas despesas.
Foi exatamente isso que o governo fez ao revisar as despesas da Previdência, e
é com base nisso que tantos especialistas apontam que as despesas do INSS
estejam subestimadas.
Essa desconfiança não vem apenas de gente “do
mercado”. Nota da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara
dos Deputados afirma que, mesmo com a revisão, os números continuam
subestimados em cerca de R$ 20 bilhões, o suficiente para manter muito
ceticismo sobre a possibilidade de o governo cumprir a meta de zerar o déficit
primário deste ano.
A teimosia de Lupi parece imune a dados, mas
não pode ser tratada como anedota. A Previdência Social é a principal despesa
da União e, consequentemente, a maior fonte de déficit público. O
envelhecimento da população é uma realidade e deve exigir novas reformas que
impeçam o sistema de se tornar inviável.
Segundo o relatório O Brasil do Futuro, do
Banco Mundial, a reforma da Previdência aprovada em 2019 foi suficiente para
estabilizar o déficit do sistema até o fim da década de 2030, mas as mudanças
demográficas exigiriam novos ajustes após esse período. Parte dessa economia,
no entanto, pode ter sido revertida antes mesmo desse prazo – e de maneira
silenciosa, como observou o economista Fabio Giambiagi em artigo publicado no
Estadão.
O motivo, segundo ele, foi a aprovação da
política de aumentos reais do salário mínimo, piso ao qual os benefícios do
INSS são vinculados. “Em outras palavras, em plena luz do dia e sem ninguém ter
dado um pio, o Brasil desfez, de uma penada, metade do que custou duas décadas
e meia para aprovar”, afirmou Giambiagi.
Apontar problemas como esse não é o mesmo que
tratar a Previdência como estorvo, como sugere Lupi, mas defender a
sustentabilidade do INSS e de seus segurados no médio e longo prazos. Era isso
que deveria estar no topo das preocupações de Lupi enquanto ministro da pasta.
Assim como o presidente Lula da Silva, Lupi é
daqueles que têm dificuldades para tratar as coisas pelo nome. Alguns gastos,
para eles, são mais que mero desembolso de recursos e devem ser classificados
como investimentos, ainda que não gerem retorno.
Daí se entende por que o espaço das despesas
discricionárias no Orçamento, rubrica na qual se inserem os investimentos
públicos, é cada vez mais reduzido e consumido por despesas obrigatórias. No
fundo, essa confusão de conceitos revela muito sobre a natureza do governo.
Conta outra
O Estado de S. Paulo
Bolsonaro diz que passou duas noites na
Embaixada da Hungria para ‘manter contatos’
Jair Bolsonaro tratou os brasileiros como
idiotas ao dizer que permaneceu na Embaixada da Hungria por pelo menos duas
noites para “manter contatos com autoridades do país” europeu e lhes transmitir
“informações precisas sobre o que acontece no Brasil”. E isso em plena semana
de carnaval.
Bolsonaro, é óbvio, homiziou-se na embaixada
húngara, como revelou o New York Times, por receio de ser preso por ordem do
Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro dias antes daquela entrada
constrangedora na representação diplomática, com um de seus seguranças batendo
palmas na porta para que alguém viesse abri-la na calada da noite, o STF havia
mandado a Polícia Federal (PF) apreender o passaporte de Bolsonaro como uma das
medidas da Operação Tempus Veritatis, que investiga a tentativa de golpe de
Estado por parte de bolsonaristas.
Ora, quem deseja conversar com diplomatas
sobre o que quer que seja agenda uma audiência, marca almoço ou jantar, talvez
um café ou um chá da tarde. Diz o que tem de dizer, ouve o interlocutor e vai
embora. Ninguém leva trouxa de roupas, travesseiro, lençóis, um fardo de água
mineral e uma garrafa térmica para um encontro com um dignitário estrangeiro. O
objetivo de obter asilo político da Hungria parece evidente. Na embaixada,
Bolsonaro estava fora do alcance das autoridades brasileiras. Portanto, logrou
seu intento. Durante o tempo em que permaneceu no local, Bolsonaro não poderia
ser abordado por policiais brasileiros para efeitos de cumprimento de um
eventual mandado de prisão expedido contra ele.
De quebra, valendo-se de sua relação pessoal
com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, Bolsonaro – mesmo fora do poder
e inelegível – ainda deu um jeito de causar um incidente diplomático para o
Brasil. Mais um. Por meio do Itamaraty, o governo Lula da Silva, como era de
esperar, chamou o embaixador húngaro Miklós Halmai para dar explicações. O
diplomata tergiversou sobre a natureza da guarida dada a Bolsonaro.
O ministro do STF Alexandre de Moraes, por
sua vez, intimou Bolsonaro a prestar esclarecimentos num prazo de 48 horas
(contadas a partir do dia 25 passado). Além disso, a PF instaurou novo
inquérito contra o ex-presidente para apurar se ele tentou uma “manobra
diplomática” para escapar da eventual responsabilização penal por seu papel na
tentativa de golpe de Estado – de resto, uma obviedade.
Há quem sustente que Bolsonaro, com essa fuga para a Embaixada da Hungria, estaria provocando o STF a decretar sua prisão preventiva. A prisão, sobretudo num ano eleitoral, faria de Bolsonaro uma espécie de “mártir” e mobilizaria seus apoiadores. A tese faria sentido se Bolsonaro fosse esse estrategista e se acaso tivesse coragem de enfrentar o xilindró em nome das ideias que defende. Não parece ser o caso. Ao que tudo indica, foi apenas medo de enfrentar as consequências de seu golpismo.
IPCA-15 acima da expectativa confirma alertas
do Copom
Valor Econômico
Ainda há espaço para os juros caírem abaixo
da projeção conservadora de 9,5%
A inflação medida pelo IPCA-15 realçou as
mesmas preocupações expressas na ata do Comitê de Política Monetária, divulgada
ao mesmo tempo que o índice - 0,36%, abaixo de 0,78% de fevereiro, mas acima da
mediana das expectativas de 0,3% dos analistas. Em relação a março de 2023,
registrou 4,14%, recuo importante em relação aos 4,49% na mesma comparação
feita em fevereiro. Mesmo assim, o IPCA-15 até agora confirma o fato de que a
inflação cai com menos intensidade do que a esperada, considerando-se uma enorme
carga de juros que chegou a 13,75%, alguns décimos abaixo dos 14,25% do pico de
juros da década passada. O Banco Central vê um aumento da incerteza tanto no
cenário externo quanto no doméstico. Pela ata do Copom, os fatores internos são
mais relevantes.
O balanço de riscos como tal parece defasado.
A possibilidade de que o aperto sincronizado de juros nos países desenvolvidos
que derrubasse a atividade global parece fora de cogitação. Ocorre o contrário:
a força dos juros tem sido incapaz de amortecer a inflação. Uma desaceleração
da atividade mais forte do que a projetada, outro risco de baixa no balanço,
que seria o desejo atual dos BCs desenvolvidos, também não deu sinal de vida.
Restam então os riscos de alta, nos quais a
ata do Copom se concentra. A rigor, estão na inflação de serviços e no “hiato
do produto mais apertado”. A ata amplia o leque. A evolução dos salários, que
para o BC suplanta os aumentos da produtividade, e o avanço da massa salarial
real, impulsionada por um mercado de trabalho aquecido, incentivam o consumo
das famílias, com outros estímulos simultâneos: redução importante da inflação,
reativação da concessão de crédito em função da queda dos juros, avanço da renda
concedida a programas sociais, como o Bolsa Família, e reajuste acima da
inflação do salário mínimo.
Reajustes salariais acima da inflação podem
postergar a aproximação do IPCA da meta de 3%. As expectativas de inflação, há
oito meses, continuam mostrando considerável distância: pelo boletim Focus,
2024 fechará com IPCA de 3,75% e 2025, de 3,5%. Os reajustes seriam menos
preocupantes se a produtividade da economia estivesse crescendo à mesma
velocidade, ou acima. Para o BC, não é o caso.
“Um mercado de trabalho mais apertado, com
reajustes salariais acima da meta de inflação e sem ganhos de produtividade
correspondentes, pode potencialmente retardar a convergência da inflação,
impactando notadamente a inflação de serviços e de setores mais intensivos em
mão de obra”, registra a ata. Esse é um dos argumentos mais relevantes a compor
o quadro de incertezas que emoldurou a decisão do Copom de reduzir o horizonte
de sua orientação futura de dois meses para um mês.
Os efeitos desse aumento da massa salarial e
do ritmo de reajustes dos vencimentos encontra tendências que vão na direção
contrária, ou seja, de contenção de preços, como “recomposição favorável de
preços relativos”, e uma “dinâmica benigna de commodities”. Considerado em seu
conjunto, o BC considera que o cenário prospectivo para a inflação se mostra
mais “incerto”, da mesma forma que o externo, ainda que as dúvidas sobre a
evolução dos juros nos Estados Unidos e a força da atividade econômica global permaneçam
as mesmas há alguns meses. Pode fazer diferença e influir na política monetária
doméstica um atraso maior do que o esperado na redução dos juros americanos. A
probabilidade existe, mas tornou-se menor depois que os membros do Federal
Reserve mantiveram a perspectiva de três cortes na taxa básica ainda este ano.
Os dados do IPCA-15 confirmam as dúvidas
sobre o ritmo de queda da inflação sem assegurar um rumo claro para a política
monetária. A desaceleração em março foi relevante (0,36% ante 0,78% em
fevereiro), mas inferior à prevista na mediana das projeções dos analistas. A
evolução dos preços de alimentos e bebidas (0,91%) e gasolina (2,39%)
contribuíram com 0,31 ponto percentual - quatro quintos do resultado. No caso
dos alimentos, há a sazonalidade, e a entrada da safra deve arrefecer os
aumentos já no próximo mês. No caso dos combustíveis, pesou a recomposição dos
impostos, que não se repetirá. O IPCA acumula 1,46% no primeiro trimestre,
enquanto a variação de preços de alimentos (3,45%), educação (5,64%) e saúde
(1,94%) corre a uma velocidade maior.
O BC desconfia, mas não tem certeza, de que o aperto no mercado de trabalho e o aumento de salários indicam que a economia está perto de esgotar sua capacidade ociosa, o que tende a retardar o caminho da inflação em direção à meta. Não se trata de uma fatalidade - a ata faz várias ressalvas nesse sentido -, mas de um sinal de alerta. Diante disso, não fazia mais sentido o BC anunciar seus passos com dois meses de antecedência. Os investidores creem que o ciclo da baixa de juros se encerrará com a Selic entre 9,5% e 9,75%. É uma perspectiva muito conservadora, que prescreve juros reais de 6% ou mais. O BC, ao se livrar do seu “guidance” anterior, deixou seus movimentos em aberto, o que significa que as decisões acompanharão os mais recentes dados disponíveis e que os juros poderão cair abaixo disso.
BC mais cauteloso, mas não pode errar na dose
Correio Braziliense
Para a próxima reunião do comitê, no início
de maio, o corte de 0,5 ponto percentual deve ser mantido, mas, ainda assim, a
taxa ficará com dois dígitos e em um patamar ainda elevado em relação ao juro
neutro
A perspectiva de redução da inflação no curto
prazo e o recorde de arrecadação de impostos no primeiro bimestre, com o valor
de R$ 467,15 bilhões, indicando uma receita maior este ano e de um deficit
fiscal menor, não estão no radar do Banco Central para a próxima reunião do
Comitê de Política Monetária (Copom), no início de maio. A Ata do Copom da
reunião da semana passada, quando a Selic foi reduzida para 10,75% ao ano,
mostra uma preocupação maior com a persistência das incertezas, que antes se
referiam ao cenário externo e agora incorporam também o interno.
Para a próxima reunião do comitê, no início
de maio, o corte de 0,5 ponto percentual deve ser mantido, mas, ainda assim, a
taxa ficará com dois dígitos e em um patamar ainda elevado em relação ao juro
neutro. A explicação para uma possível mudança na política monetária é o fato
de as projeções para a inflação neste e nos próximos dois anos estarem acima do
centro da meta inflacionária, que é de 3%.
O Banco Central sinaliza ao mercado que vai
perseguir o centro da meta e agir para impedir o descolamento dos preços, o que
já pode ser visto pelos consumidores nos supermercados, principalmente após
altas expressivas do valor dos hortifrutigranjeiros. E com a gasolina defasada
em relação ao mercado internacional, a perspectiva é de que o combustível possa
ser reajustado novamente e pressionará todos os preços, reforçando a incerteza
a que se refere o BC em sua ata da última reunião do Copom.
Com o histórico inflacionário e seus impactos
danosos para a economia, é aceitável que o Banco Central se preocupe com o
controle dos preços, mas é preciso não errar na dose de preocupação, sob pena
de jogar mais para baixo uma atividade econômica desaquecida ou, pior ainda,
mexer com as expectativas do mercado. Agora não há uma indicação clara de que
na reunião de meados de junho haja uma mudança no patamar de redução da Selic,
que finalmente poderá ficar abaixo dos dois dígitos e chegar a 9,75%. Esse patamar
ainda é alto, mas é a partir desse ponto que o BC, com uma visão mais clara
sobre o cenário-base, poderá reduzir a magnitude do corte de juros, para 0,25
ponto percentual.
Com a resiliência do mercado de trabalho e o
pagamento de benefícios sociais mantendo a capacidade de consumo da parcela
menos favorecida da população, taxas de juros não terão impacto sobre alimentos
que podem seguir com preços pressionados por mudanças climáticas ou eventual
alta dos combustíveis, mas vão continuar impactando investimentos, produção da
indústria e consumo de bens de valor mais alto e que exigem financiamento.
Não se pede tolerância com a inflação fora da
meta, ou, como se dizia no passado, que um pouco de inflação favorece o
crescimento econômico. Não. A inflação é um imposto caro para a sociedade,
assim como o juro num patamar acima de uma taxa neutra é um arrocho para
empresas e famílias. O que se espera é que a análise técnica do BC não se paute
apenas por números e abranja a complexa e robusta estrutura produtiva
brasileira.
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