sábado, 30 de março de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - Sessenta anos de um golpe de estado triunfante: maneiras de lembrar

Um artigo irretocável, de tão lúcido, vibrante e cirúrgico, da jornalista Vera Magalhães, em sua coluna desta sexta-feira em O Globo ("Silêncio sobre o 31/3 expõe feridas do 8/1" - O Globo, 29.03.2024), por pouco não me fez dispensar o texto que já havia alinhavado para a coluna de amanhã. Tudo de mais imediatamente relevante sobre a presente discussão a respeito de lembrar ou não os 60 anos do golpe de 1964 está ali dito. Em vez de reiterar, bastaria compartilhar esse artigo, vero e valioso. 

Num segundo momento repensei e resolvi o oposto. Em vez de buscar outro tema e desistir do texto já iniciado, resolvi prosseguir e antecipar, para esta sexta santa, o que seria publicado no sábado de Aleluia. Creio que posso mencionar outros aspectos que desdobram o tema ou sugerir, quem sabe, algum aprofundamento. Como link, a partir do texto de Vera, basta um sim a seus pontos e argumentos.

Sim! Críticas e reclamações de intelectuais, sociedade civil, etc... quanto à postura do presidente Lula proliferam ou são recalcadas, enquanto, no governo, são apenas supostas, pela imprensa, reações negativas de sujeitos indeterminados. Parecem factóides. Os setores de fato insatisfeitos na periferia ou em áreas de influência do governo não podem fazer eventos por conta própria? Por que só serve se o governo os liderar? Onde se escondeu a alegada autonomia da sociedade civil?  Quando vamos superar essa mentalidade que induz à sua estatalização? Interpretam a prudência do governo como tutela militar. Esse sentimento de orfandade não revela uma tutela também? Quando a sociedade civil será madura para andar com as próprias pernas? Experiências como a do regime autoritário e o bolsonarismo no poder mostraram já ser possível ela agir como adulta. Mas basta chegar um governo amigo e parte dela quer voltar a adolescência sob suas asas, como antes de 64. Greves, atos, protestos, manifestações, celebrações, reparações, ou mesmo análises com objetivos publicísticos, tudo precisa ser institucionalmente avalizado, apoiado, financiado, organizado ou até dirigido. Completa confusão entre movimento e instituição. Radiografia de uma regressão.

Como podemos facilmente verificar, acompanhando matérias de notícias e colunas, o sentimento de desconforto tem ampla acolhida na imprensa. Uma chamada para um especial da Globo News tem deixado clara essa linha de abordagem. 

Predomina um enquadramento extrapolado da posição de Lula de determinar a seus ministros que os ministérios não tomem iniciativas de organizar ou patrocinar manifestações sobre a data de 31 de março, por não achar pertinente que seu governo fique a remoer o passado. Manifestações de conteúdo distinto ou contrário, sejam partidárias ou de setores da sociedade civil, são tratadas de um modo geral como "insurgências" contra a determinação de Lula, como se ele, indo além de expedir uma diretriz de governo, houvesse proposto ao país esquecer o golpe de 64 ("O veto de Lula à memória do golpe de 64" - Café da manhã/Folha (Spotify), 28.03.2024).

Fomentar, por cacoete ou por viés editorial, uma polarização desse tipo é um equívoco que não contribui ao esclarecimento dos públicos que persistem se informando pela imprensa. Nesse sentido, o artigo de Vera Magalhães é um dos mais preciosos contrapontos. 

Uma coisa é, por exemplo, criticar-se, com razão, o presidente por ter estado ausente e mesmo ignorado um evento importante do Senado (celebração dos seus 200 anos) sob a suposta justificativa de não criar problemas com os militares. Se, de fato, constata-se essa virtual postura, cabe um sério reparo, pela pusilanimidade política e pela omissão institucional. 

Outra coisa é confundir como obstrução à memória do golpe e da ditadura, a atitude de Lula de evitar o protagonismo do Poder Executivo nesse tema, num contexto delicado em que militares de alta patente estão sendo submetidos a devida investigação judicial após as forças armadas terem sofrido um intenso assédio político da extrema-direita golpista. Foi um processo corrosivo que resultou numa recente arquitetura canhestra de um golpe de estado e produziu sequelas institucionais que ainda levarão tempo para serem tratadas, como têm, efetivamente, sido. Discernir alhos de bugalhos, em vez de confundi-los, seria um bom serviço que a imprensa prestaria para tentar amenizar a desinformação que grassa no ambiente das redes sociais. É só um ponto para reflexão. 

Quanto ao conteúdo da nota da bancada federal do PT, divulgada como exemplo dessas "insurgências" ("PT ignora Lula, condena a ditadura e cobra volta de Comissão" - Correio Braziliense, 28.03.2024), penso que ela possui a habitual estreiteza de setores da esquerda que parecem pretender não apenas o cultivo pedagógico e salutar da memória de um passado nefasto. Têm também a pretensão de reviver esse passado como se fosse presente. É vã tentativa de "consertar" procedimentos que as convicções desses setores da esquerda julgam impertinentes ou equivocados. Dentre eles ressalte-se a Lei da anistia, de 1979, a partir da qual o que era apenas uma distensão do regime, sob controle dos seus dirigentes, tornou-se efetiva transição democrática liderada pela oposição política democrática e pelo movimento unitário da sociedade civil. 

Demonstração maior dessa efetividade da transição democrática brasileira é a Carta de 88, o regime de liberdade política e civil, bem como o ambiente político de sentido socialmente inclusivo que ela propiciou. Para se avaliar devidamente a dimensão dessa conquista, basta comparar esse resultado da redemocratização brasileira de quase quatro décadas atrás com, por exemplo, os dramas vividos ainda hoje pela sociedade e pelo sistema político do Chile para superar condicionamentos constitucionais herdados da ditadura de Pinochet. E de modo algum se pode acusar as correntes democráticas chilenas, de um modo geral, ou sua pluralíssima esquerda, de terem descuidado da memória da ditadura de lá. 

Conhecer o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, é experiência pungente no duplo sentido de mobilizar a emoção e perfurar camadas secas ou cínicas de uma razão instrumental. Tudo está ali documentado, sem meios termos. A eloquência dos fatos, revelados em si mesmos, dispensa qualquer discurso revanchista contra instituições perenes que temporariamente se envolveram e comandaram aquela tragédia nacional. 

Vale lembrar que o museu e todas as luzes que lhe dão vida resultam do trabalho de uma "Comissão da verdade e da reconciliação".  O último termo do título parece dizer corajosamente tudo sobre o sentido generoso e civilizatório que orientou a comissão. É um exemplo a ser seguido, tendo-se, contudo, o realismo de saber que intenções não bastam e que é preciso estar atento a idiossincrasias de cada lugar. Se os democratas chilenos, apesar dessa largueza de visão, ainda não puderam superar as marcas de um mal que foi feito ao seu país por um golpe de violência inaudita na sua história, o que dizer sobre o desafio posto aos democratas brasileiros de lidar com os condicionamentos de um golpismo e de um populismo endêmicos que cortam a cultura política da nossa república, afetando variadas famílias ideológicas, desde bem antes, durante e até bem depois do regime de 1964? 

É razoável pensar que de nós se exige largueza de visão política e histórica ainda maior, capaz de estar sempre vigilante para possibilidades, até aqui não completamente descartáveis, de êxito futuro de uma coalizão golpista entre algum populismo e o militarismo. Se a de Bolsonaro não deu certo, é bom lembrar que a de Vargas, lá atrás, em associação com militares simpatizantes do fascismo, obteve êxito, com o advento do Estado Novo.  

A postulação, portanto, de reinstalação de uma comissão da verdade e de investigação sobre desaparecidos (que está presente na nota do PT) ganhará sentido positivo se acompanhada de um reenquadramento do sentido equivocado que entre nós limitou aquela Comissão da Verdade, enquanto durou. O potencial regenerador do cultivo da memória é o de iluminar o presente e o futuro e não o de "acertar contas" com o passado, promovendo justiça corrente ou reorientação política sobre processos concluídos. Uma consciência de preservação democrática requer encarar esses processos como consolidados, até para que o País não se torne vulnerável a novas aventuras como a que nos colocou à beira de um abismo entre 2018 e 2022.

*Cientista político e professor da UFBa.

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