Folha de S. Paulo
País não é um monólito sempre igual a si
mesmo
Visitei a Rússia em 2017. Num centro
comercial de São Petersburgo, à procura de uma informação, indaguei de uma
jovem, cabelo pintado de azul, se ela falava inglês. "Sim, claro. Todo
mundo nessa cidade fala inglês e francês". Na Rússia, quase todos só
entendem o russo –mas a nação moderna da garota e seu círculo cosmopolita de
amigos é tão real quanto a "Rússia eterna" que a envolve. Pondé
equivoca-se ao enxergar a Rússia como um monólito adornado pela face de Putin (shorturl.at/yM237).
Seu argumento central apoia-se na recusa histórica da Rússia em tornar-se um país europeu. De fato, porém, ao longo de séculos, a elite russa oscilou entre tal recusa e um desejo intenso de ser Europa. São Petersburgo nasceu da pulsão europeísta, assim como a densa teia de uniões dinásticas entre os governantes russos e seu pares europeus.
A pulsão oposta, expressa pela aliança entre
o trono dos czares e a igreja ortodoxa, desdobrou-se no pan-eslavismo e em
incessantes guerras de conquista. O próprio Putin foi europeísta, no início,
até girar rumo ao nacionalismo grão-russo.
Cada um tem a Rússia que quer. Comentando sua
entrevista-propaganda com Putin, Tucker Carlson, arauto da extrema direita
americana, comparou a limpeza do metrô de Moscou, com suas estações imponentes
em estilo art-nouveau ou realismo socialista, à sujeira e aos grafites do metrô
de Nova York. Decifrada a senha racial (o incômodo de Carlson é com o Harlem e
o Bronx), registre-se: a Rússia dele é o país branco, cristão, tradicional que,
tão diferente dos EUA, já quase não encontra paralelos na Europa.
A Rússia de um PT embevecido pelo "feito
histórico" da reeleição de Putin com 87% dos votos é outra: a potência
nuclear que faz contraponto ao "imperialismo americano". Na Europa, o
século 20 ensinou à esquerda o valor da democracia e de uma ordem internacional
baseada em regras. Na América Latina, porém, predomina ainda uma esquerda presa
à caverna do terceiro-mundismo e à figura mítica de Che Guevara. A Rússia da
esquerda fossilizada ressurge na guerra imperial na Ucrânia. Para ela, Putin é
uma espécie de Lênin reciclado.
Faz-se gato e sapato do conceito de
representação. O militante identitário quer um Congresso "mais
representativo" pela introdução de cotas raciais no sistema eleitoral,
"corrigindo" a vontade do eleitorado. Talvez inspirado pelo PT, Pondé
sugere que Putin representa os russos pois "ganhou a eleição com
folga". Maduro também ganhará, se vetar todos os opositores genuínos,
perpetuando-se no palácio via eleições farsescas, como tantos ditadores.
No dia da vitória "com folga", a
organização de Navalni convocou o protesto silencioso possível: votar no mesmo
horário, anulando as cédulas com frases de protesto. As longas filas do
"meio-dia contra Putin", registradas nas grandes cidades, provam que,
abaixo da superfície congelada, a oposição existe. A "Rússia
verdadeira" não é uma projeção da imagem de Putin – nem tem as feições de
Navalni. A "alma profunda" das nações é só um mito invocado por
ideólogos e embusteiros.
A praça Vermelha, umbigo de Moscou,
delimita-se ao norte pela catedral de Basílio e a leste pelas muralhas do
Kremlin, dois símbolos da "Rússia eterna" refletidos na águia
bifronte da bandeira imperial. Distante três quilômetros, às margens do rio,
situa-se a nova Galeria Tretyakov. Nela, descortinam-se as obras da vanguarda
russa do início do século 20, a vertente mais radical do modernismo europeu,
que terminou se esterilizando no realismo socialista. Lá, avistei uma jovem
russa de cabelo azul admirando o modelo da Torre Tatlin. A Rússia não é um
monólito sempre igual a si mesmo.
Cada um tem a sua própria Rússia, nenhuma
delas menos verdadeira que a outra. A Rússia de cada um esclarece bem pouco
sobre a Rússia –mas diz tudo sobre o sujeito que a inventa.
3 comentários:
Cristina disse: "Ordem mundial baseada em quais regras, cara-pálida? A 'ordem mundial' só pode se basear em determinações de órgãos com real legitimidade internacional, não em 'regras' emitidas pela parte dominante da humanidade, i.e., o Ocidente coletivo. A tal 'ordem baseada em regras' não está na Carta das Nações Unidas e começou a ser invocada há menos de uma década".
Demétrio e Pondé..
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