O Globo
A esta altura, já está claro que não há
nenhuma chance de a crise na Venezuela acabar
com a saída de Nicolás
Maduro do poder. Antes do pleito, ele mesmo avisou que, se não
ganhasse a eleição, haveria um banho de sangue. Pois ele se proclamou vencedor
e, mesmo assim, há um banho
de sangue, porque o resultado é flagrantemente fraudulento, e a
população tomou as ruas em protestos.
Pelo menos 16 pessoas já morreram, centenas
ficaram feridas, e mais de 750 foram presas pelo regime. Um líder oposicionista
foi sequestrado, e Maduro já disse que prenderá também a líder María Corina
Machado e o candidato da oposição, Edmundo
González Urrutia. Sete embaixadores que pediram a divulgação das
atas eleitorais foram expulsos da Venezuela.
Depois de prometer tornar públicas as atas, o
ditador voltou atrás e disse que não tem como apresentar os documentos porque o
Conselho Nacional Eleitoral, controlado por ele mesmo, “está no meio de uma
batalha cibernética nunca antes vista”.
A única coisa que importa para Maduro é continuar no poder, mesmo que isso leve a um isolamento internacional ainda maior.
Como observou o analista e editor-chefe da
revista Americas Quarterly, Brian Winter, o venezuelano segue os passos do
ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, endurecendo a
ditadura e a repressão sem se preocupar com o que o resto do
mundo possa fazer.
Tal contexto coloca o governo brasileiro e o
presidente Lula numa
encruzilhada. O discurso oficial é de não aceitar os resultados da eleição sem
ver as atas. Mas e se isso não acontecer?
Os diplomatas garantem que o Itamaraty não
arredará pé, ainda que isso custe um afastamento da Venezuela — e apesar das
declarações de Lula de que está tudo normal por lá. O fato de o governo ter
“congelado” relações com o regime de Daniel Ortega é lembrado como exemplo de
que o presidente é capaz de se posicionar em defesa da democracia mesmo contra
governos com os quais tem afinidade ideológica.
A Venezuela, porém, não é a Nicarágua. E para
Lula, qualquer decisão embute riscos significativos.
O país tem uma fronteira de 2,2 mil
quilômetros com o Brasil na Amazônia,
numa espécie de terra de ninguém por onde transitam de traficantes a
garimpeiros ilegais e milhares de refugiados por ano.
Embora o comércio bilateral hoje seja
pequeno, a Venezuela já foi o nosso sexto parceiro mais importante, quando a
América Latina vivia um boom de commodities.
Nessa época, empresas brasileiras financiadas
pelo BNDES faturaram
bilhões de dólares com obras e serviços na Venezuela. Só a Odebrecht ganhou US$
40 bilhões entre 1999 e 2013 — de acordo com as confissões de seus executivos
ao Departamento de Justiça americano, um único lobista recebeu US$ 100 milhões
em propinas para liberar pagamentos da construção do metrô de Caracas.
No ano passado, o governo autorizou a Ambar,
de Joesley e Wesley
Batista, a fechar
contratos de venda de energia para a Venezuela que poderiam
render até R$ 1,7 bilhão, se a crise não tivesse se agravado, e o negócio posto
em banho-maria.
Politicamente, também, Lula e Dilma
Rousseff sempre endossaram o chavismo. Em 2013, o petista
chegou até a gravar um vídeo para a propaganda eleitoral em que dizia que a
gestão Maduro representaria “a Venezuela que Chávez sonhou”. Já em 2023,
recebeu o aliado com tapete vermelho em Brasília para
uma cúpula de chefes de Estado, defendeu a retomada de conversas sobre a
Venezuela no Mercosul e
se declarou a favor da inclusão do país no Brics.
“Não é que o Brasil tenha assistido de
camarote o endurecimento do regime e agora possa apenas lamentar”,
contextualiza o professor de relações internacionais da FGV Matias Spektor. “O
país é corresponsável pelo declínio da democracia venezuelana”.
Complica ainda mais o cenário o fato de a
Venezuela ter o apoio e o financiamento da Rússia e da China, interessadas nas
ricas reservas de petróleo e em diminuir a influência dos Estados
Unidos na América Latina. Para o Brasil, não interessa entrar
em rota de colisão com os americanos. Não foi por outra razão que Joe Biden fez
questão de telefonar para Lula e sutilmente cobrar dele uma posição.
Internamente, também, o presidente só tem a
perder apoiando Maduro, porque o bolsonarismo conseguiu transformar a questão
venezuelana em item da pauta eleitoral doméstica, com amplo apelo entre
conservadores e grupos evangélicos.
É essa a encruzilhada de Lula. Ninguém
discute que o presidente seja um democrata da porta para dentro. O que o mundo
quer saber é até que ponto ele está disposto a abrir mão de um aliado como
Maduro em nome da democracia.
Um comentário:
Bem esclarecido.
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