sexta-feira, 8 de março de 2019

Fernando Abrucio*: O Brasil precisa de um estadista

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

O momento grave do país exige uma liderança presidencial muito especial, com qualidades maiores do que a de líderes populares ou partidários. No período mais recente, nunca a palavra estadista foi tão perfeita para uma situação histórica em que o presidente terá de orientar suas ações pelos interesses maiores do Estado brasileiro. Mas se Bolsonaro preferir se guiar por uma visão mais sectária, atuando apenas segundo a opinião de seus próximos e incentivando o clima de guerra contra os que não pensam exatamente como ele, o Brasil não sairá da crise.

Antes de entender que qualidades um estadista deveria ter agora, é preciso mostrar por quais razões um líder com tais predicados seria mais urgente neste momento. A resposta mais ampla é a confluência de várias crises no mesmo ponto da história, numa intensidade e combinação raras, uma verdadeira tempestade perfeita.

A primeira crise é a econômica. Ela não pode ser representada apenas pelo baixo crescimento e enorme desemprego. Por trás de tudo isso, há a necessidade de reformar grande parte do modelo econômico, dando maior solvência fiscal ao Estado, melhorando a competitividade da economia, fortalecendo os pilares da produtividade (principalmente em termos educacionais) e garantindo um mercado de trabalho que gere mais e melhores empregos.

Não será nada fácil, pois transformação de tal envergadura exigirá mudanças legislativas difíceis, como as reformas da Previdência e do sistema tributário, além de um processo intrincado de implementação - por exemplo, quem vai formular e executar as melhorias na educação necessárias para qualificar o capital humano?

Mas a crise econômica não pode ser descolada da dinâmica social brasileira. A característica mais marcante do país é a desigualdade e reformar o Estado sem levar em conta isso é mais do que uma falta de sensibilidade. É um passo para o precipício. A tarefa é árdua porque teremos de, a um só tempo, garantir a solvência do Estado sem piorar a vida dos mais pobres do país. Olhar apenas para um lado levará a dois fins trágicos: ou será o caminho para inviabilizar as políticas públicas porque não teremos dinheiro para tal, ou será a trilha para deslegitimar o governo frente à maior parcela da população.

Sendo mais direto: o Brasil não pode gastar com a Previdência o volume de recursos em relação PIB que gasta hoje, mas não pode deixar para atrás os desvalidos urbanos e rurais que não tiveram igualdade de oportunidades no ponto de partida, sobretudo do ponto de vista da educação, ou que tenham problemas de saúde graves. Há muita coisa para mudar no modelo previdenciário do setor público, no ajuste mais parcimonioso do país à sua demografia e nos generosos subsídios às empresas ou mesmo à classe média.

César Felício: Bolsonaro se traduz

-Valor Econômico

Miscelânea presidencial forma um conjunto

Paletó bem ajustado, nó da gravata no lugar certo, ladeado pelo ministro do GSI e pelo porta-voz, ambos generais de reserva, o presidente Jair Bolsonaro está trabalhando. Não há espaço em sua 'live' no Facebook para chinelos Ryder, pão com leite condensado e outras informalidades. O presidente está contido. No vídeo de 20 minutos, Bolsonaro promete que toda quinta-feira, às 18h30, será assim.

Ainda administrando os efeitos da divulgação que fez de um ato obsceno no Carnaval, o presidente sugere que a sua estratégia de comunicação ganhou um outro formato. A conferir se a 'live' no Facebook, concentrada em um dia da semana, irá frear a sua atuação no Twitter, ambiente onde vigora a lei da selva na internet.

A conferir também se o Facebook servirá de antídoto para danos colaterais da palavra do próprio presidente. Bolsonaro discursou para militares no Rio de Janeiro, pela manhã, e de tarde estava na rede para dizer que foi mal compreendido, "para variar". A comunicação presidencial adotou uma linha: o presidente solta algo insólito, seja uma concessão na reforma da Previdência ou um elogio a um ditador paraguaio de má fama e em seguida busca ser seu próprio tradutor.

Na aparência, a moderna versão da "Conversa ao Pé do Rádio" é um minestrone, um siri catado, onde pode entrar de tudo. Bolsonaro acena para o mercado, em uma rara intervenção a favor da votação da reforma "que está aí, se bem que o Parlamento é soberano para fazer qualquer possível alteração, só esperamos que ela não seja muito desidratada".

Para o resto, a "boa notícia" é o fim da lombada eletrônica e o aumento da validade da carteira de motorista. O presidente aconselhou até a aprovados em um concurso do Banco do Brasil a entrarem na justiça contra duas exigências do edital, o de cursos de diversidade e de prevenção ao assédio moral e sexual.

Também sugeriu aos pais de menores de 9 a 16 anos que rasguem as últimas páginas das cadernetas de vacinação distribuídas durante a era Dilma. Ele não deixa claro, mas provavelmente se referia ao conteúdo que vai da página 31 até a 44 da cartilha, que trata de assuntos como desenvolvimento da genitália na puberdade e uso de preservativos.

A miscelânea, na aparência caótica, forma um conjunto. Eis aí um presidente atento a tudo, a cada detalhe do cotidiano, que propõe como contraponto ao remédio amargo da economia a diminuição da presença do Estado na mediação de relações sociais, seja no trânsito, no ambiente de trabalho ou na educação dos filhos.

José de Souza Martins*: Os movimentos corporais de nosso governo

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Para compreender sociologicamente a mentalidade dos que ocupam funções de poder, um meio é observar como caminham e o modo como lidam com o próprio corpo nas situações rituais do exercício do mando. Muitas pessoas poderosas revelam o que são e suas limitações nos eloquentes desencontros entre a função política que ocupam e o corpo que carregam para dentro do poder. Os desencontros ficam evidentes no modo de andar impróprio, no tom de voz elevado.

Não é raro que os fora de lugar ensaiem suas performances antes de saírem à boca da cena dos episódios de teatralidade a que a circunstância os obriga. Um ensaio fotográfico da época mostra que Hitler fazia isso para aparentar em público o oposto do homem abúlico e insípido que Goebbels descreve em seu diário.

Getúlio Vargas interagia com a multidão, calculando-lhe a reação provável e dando à voz a teatralidade do poder. Um documentário mostra Luiz Inácio, nos bastidores do palco da Vila Euclides, em São Bernardo, avaliando a multidão, calculando a postura para o discurso que faria.

A linguagem política não se resume à fala nem se expressa, necessariamente, nos discursos oficiais. É insuficiente que o analista se limite ao que o político diz. O documento dos fatos políticos está muito presente nos gestos, nas relutâncias, naquilo que não é dito, mas está sendo evidenciado. Está nos indícios da mentalidade do político que se expressa em seu corpo mudo.

Pequenos detalhes podem falar muito mais do que extensos e elaborados discursos. Além do que, toda a biografia da pessoa, desde o nascimento, deixa suas marcas profundas não só na personalidade, mas também em seus modos: de caminhar, de sentar, de mastigar, de falar, na competência ou não para representar apropriadamente a pessoa que personifica em cada circunstância.

Desde o dia da posse, a rigidez militar da postura do novo presidente em atos públicos e oficiais indica a socialização formal própria da vida de quartel, a sociabilidade limitada às regras da ordem unida, da voz de comando, da disciplina de comandado. Seu corpo não está à vontade na pessoa presidencial, seu corpo ainda não assumiu a Presidência.

Hélio Schwartsman: A escatologia da moral

- Folha de S. Paulo

Várias zaragatas serviriam para basear o impeachment, mas, se entregar crescimento, Bolsonaro provavelmente concluirá o mandato

A cada dia que passa, Jair Bolsonaro vai mostrando mais despudoradamente que não foi forjado para o cargo. Ele não tem noção de institucionalidade, de prioridades e falta-lhe até a inteligência necessária para exercer a Presidência da República sem sobressaltos desnecessários. Parecem-me precipitados, porém, os apelos por seu impeachment.

Nas últimas duas semanas, Bolsonaro criou, “ex nihilo”, duas situações em que não tinha absolutamente nada a ganhar e muito a perder. Falo da ideia, lançada gratuitamente pelo próprio presidente, de reduzir de 62 anos para 60 a idade mínima das mulheres na reforma da Previdência e do episódio envolvendo o já mundialmente famoso vídeo escatológico.

Este último exemplo é particularmente interessante porque viola a própria lógica conservadora que Bolsonaro diz defender. Se a turma da moral e dos bons costumes crê que o fato de um sujeito urinar sobre o outro ameaça a família brasileira porque dá ideias erradas a jovens inocentes, então a última coisa que um conservador deseja é divulgar de forma ampla esse tipo de interação. Mas foi exatamente isso que Bolsonaro fez ao pôr o vídeo em seu twitter.

Seja como for, os que já se puseram a citar os dispositivos da lei nº 1.079 que Bolsonaro pode ter violado não entenderam bem a natureza híbrida do impeachment, que requer pretextos jurídicos, mas só ocorre em contextos de grave deterioração político-econômica. E ainda não chegamos lá, embora o presidente às vezes dê a impressão de que trabalha para isso.

Bruno Boghossian: Bolsonaro tocou a corneta

- Folha de S. Paulo

Presidente quis beber na fonte de poder dos militares, mas se afoga ao rebaixar democracia

Jair Bolsonaro enfileirou fuzileiros navais no centro do Rio, agradeceu a Deus por estar vivo e disse que assumiu a Presidência para cumprir uma missão. Apelou ao patriotismo e à ideologia conservadora, e terminou o discurso afirmando que “democracia e liberdade só existem quando as suas respectivas Forças Armadas assim o querem”.

O presidente quis beber na fonte de poder representada por seus laços com os militares, mas se afogou. A deferência exagerada aos homens de farda indicou uma submissão da democracia aos desejos da instituição.

Os generais do governo foram obrigados a sair a público para tentar amenizar o absurdo.

Bolsonaro tocou uma corneta para reorganizar sua tropa. O presidente fez um esforço para convencer as Forças Armadas de que —apesar dos tropeços políticos, laranjas e escatologias sem sentido— seus propósitos ainda são parecidos.

No evento desta quinta (7), Bolsonaro disse que a tal missão imposta a ele seria cumprida com aqueles que amam a pátria e respeitam a família, e alinhou os militares à tarefa.

A batalha de costumes contra a esquerda foi um fator de aglutinação entre Bolsonaro e as Forças Armadas em determinado momento da campanha eleitoral. Alguns generais que torciam o nariz para o então candidato enxergaram nele a única alternativa para derrotar o PT e defender valores conservadores.

Ricardo Balthazar: Bolsonaro reforça compromisso com militares em hora difícil

- Folha de S. Paulo

Alvo de críticas em início de governo tumultuado, presidente reacende controvérsia sobre Forças Armadas

Esta não foi a primeira vez que Jair Bolsonaro procurou valorizar as Forças Armadas como um dos pilares da democracia no Brasil, mas foi a primeira desde que se tornaram evidentes os sinais de desconforto entre os militares com o tumulto dos seus primeiros meses no poder.

As declarações do presidente, durante cerimônia do Corpo de Fuzileiros Navais, causaram controvérsia por causa das três palavras que ele escolheu para encerrar uma frase. "Isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer", afirmou Bolsonaro.

Dito assim, foi como se ele sugerisse que a continuidade do regime democrático no país dependesse da tutela dos militares, e não da vontade popular ou do funcionamento das instituições cujo papel é definido pela Constituição.

No fim do dia, numa tentativa de esclarecer o significado da declaração durante pronunciamento ao vivo nas redes sociais, o presidente disse que os brasileiros devem a democracia e a liberdade às Forças Armadas e acrescentou que elas "sempre estiveram ao lado" desses dois valores.

Bolsonaro apareceu na internet ladeado por dois militares, o general Otávio Santana do Rêgo Barros, seu porta-voz, e o ministro que chefia o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, que é general da reserva.

Ambos tiveram a chance de falar durante o pronunciamento do chefe. Heleno afirmou que os críticos do governo distorceram as declarações do presidente, como se ele tivesse caracterizado a democracia como "um presente dos militares para os civis". Mas era exatamente o que Bolsonaro tinha feito segundos antes, à sua direita, ao dizer que o Brasil deve sua democracia e sua liberdade aos militares.

Heleno lembrou então que a Constituição inclui entre as atribuições das Forças Armadas a manutenção da lei e da ordem interna, disse que elas são um "fator fundamental" em qualquer regime político e citou Cuba e Venezuela como exemplos de países em que ditadores sobreviveram por contar com apoio militar.

Reinaldo Azevedo: Entre Bolsonaro e a democracia, creiam: militares escolheriam a democracia

- Blog Reinaldo Azevedo

"É isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer". brocado autoritário que vai acima é da lavra de Jair Bolsonaro, presidente da República, durante cerimônia no 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, na Fortaleza de São José da Ilha de Cobras, no centro do Rio.

Não adianta. Ele não entende a democracia. Ponto final. Imaginem o que teria acontecido se, na Presidência da República, Lula tivesse dito em algum momento: "Democracia e liberdade só existem quando os trabalhadores querem". Como sua origem era o meio sindical, a leitura óbvia e necessária teria sido uma só: se o PT decidir, põe fim à democracia. Mas Lula não disse isso, certo? Nem por isso, é verdade, o PT deixou de aparelhar o Estado. E foi combatido — inclusive por este escriba.

Não há como dourar a pílula. Bolsonaro quis dizer o que disse e disse o que quis dizer, o que implica uma agressão múltipla à Constituição Federal. Fere o Parágrafo Único do Artigo 1º:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Observem que não está escrito lá que todo o poder emana das "Forças Armadas".

Há um outro artigo que as implica diretamente com a questão democrática. É o 142:

"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."

Como se nota, elas são garantias dos poderes constitucionais, não forças de tutela. Para que intervenham, inclusive, na garantia da lei e da ordem internas, é preciso que contem com a concordância dos demais Poderes. Que são civis.

O general Hamilton Mourão, vice-presidente também eleito, tentou dourar a pílula, assegurando que a fala foi mal interpretada. E empregou a Venezuela como exemplo. Como, naquele país, as Forças Armadas ainda garantem o apoio a Nicolás Maduro, então vige uma ditadura.

O general é inteligente o bastante para saber que sua frase pode ser desconstruída sem muito esforço. Então ficamos assim, senhor vice-presidente: a democracia existe por vontade do povo; as ditaduras, por vontade dos militares. O que lhes parece? Há uma diferença que distingue a civilização da barbárie entre estas duas frases de sentidos semelhantes apenas na aparência:

1: Nas democracias, as Forças Armadas garantem os Poderes Constituídos;
2: só existem democracia e Poderes Constituídos se as Forças Armadas quiserem.

Na primeira, elas se subordinam à ordem democrática; na segunda, elas a tutelam. Os países que vivem a circunstância nº 1 são democracias; os que experimentam a nº 2 são ditaduras.

Contexto
O contexto da fala de Bolsonaro também é elucidativo. Ele não fala como chefe de Estado, como chefe de uma milícia política. Ainda fazendo referência ao vídeo pornô que espalhou Brasil afora, afirmou:

"A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia."

E aí veio o complemento:

"E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer".

Como se nota, Bolsonaro se dá o direito de determinar o que sejam amor à pátria, respeito à família e amor à democracia. Quanto aos países "que têm ideologia semelhante à nossa", devemos ficar no aguardo: assim que este gênio da raça definir a nossa "ideologia oficial", vamos ver de quais ele pretende se aproximar e se distanciar. Penso aqui em alguns compradores dos nossos produtos e que compõem mais da metade do nosso superávit comercial: China, países árabes e Irã. O Brasil deve repudiá-los, no cenário internacional, em razão das diferenças?

Eliane Cantanhêde: ‘Brazil first’

- O Estado de S.Paulo

No Itamaraty, ideia é ‘desligar o botão automático’ e rever tradição e multilateralismo

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro distrai o digníssimo público com uma barbaridade por dia, o mercado só quer saber da reforma da Previdência e o mundo, os investidores, os exportadores e os importadores perguntam qual é a política externa brasileira. Aliás, se há uma. Se há, pode ser resumida assim: “Brazil first”.

É, obviamente, um plágio do slogan de Donald Trump nos Estados Unidos: “America first”. A questão, levantada por ex-presidentes, ex-chanceleres e diplomatas da ativa é se é “Brazil first” ou se vai acabar sendo “Brazil after America”.

Além de causar perplexidade de novo ontem, ao dizer que “liberdade e democracia só existem quando as Forças Armadas assim o querem”, Bolsonaro enumerou os seus aliados no governo e incluiu aí “aqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa (Brasil)”.

Mais do que uma manifestação de ojeriza a Cuba e Venezuela, foi uma referência à aliança com os EUA e com Trump, pedra fundamental da política externa da “nova era”. Há consenso quanto a aprofundar as relações com a maior potência mundial, tradicional parceira brasileira.

A dúvida é sobre a calibragem. Alinhamento automático? Brasil caudatário dos EUA?

Tudo isso vai ficar mais claro no encontro de Bolsonaro com Trump, dia 19. Além da gorda pauta bilateral de negócios, cooperação e facilitação de trânsito de pessoas e produtos, os dois terão muito a conversar sobre temas globais e regionais e interesses estratégicos de EUA e Brasil, como Venezuela e China.

Fernando Gabeira*: Venezuela inspira cuidados

- O Estado de S.Paulo

Articular a pressão interna e externa parece-me no momento a melhor saída

Fui quatro vezes à fronteira com a Venezuela. A última jornada, entrega de caminhões com comida e remédio, acompanhei de longe. A sensação que tenho é de que algumas pessoas superestimaram a possibilidade da queda imediata de Maduro. Esperam um nocaute numa luta que só poderia ser ganha por pontos. E de certa forma a luta foi ganha. A violência contra os manifestantes e o incêndio dos caminhões contribuíram para isolar um pouco mais o ditador bolivariano.

Numa luta ganha por pontos, o vencedor também sofre alguns golpes. O grupo de países que apoiou Juan Guaidó utilizou um grande símbolo, que é a ajuda humanitária, mas parece ter-se esquecido de que outras crises surgem constantemente no mundo. E um dos princípios da ajuda humanitária é exatamente não usá-la para proselitismo político.

Se entendi bem os informes acerca da reunião sobre a Venezuela na Colômbia, havia uma divergência latente entre a posição brasileira e a norte-americana. Creio que essa divergência pode ser encontrada numa frase que os americanos usam com frequência: todas as opções para derrubar Maduro estão sobre a mesa. A julgar pelo general Hamilton Mourão, que representou o Brasil, há pelo menos uma opção que não nos interessa: a intervenção militar.

Há muitas razões para o Brasil descartar essa hipótese. Uma delas é o fato de termos uma fronteira comum e uma série de questões que precisam ser resolvidas bilateralmente. Um clima de guerra poderia atrair milhares de novos refugiados. Apesar do indiscutível poderio militar dos EUA e das forças bem equipadas da Colômbia, a vitória rápida na Venezuela não é tão previsível.

Bernardo Mello Franco: Democracia não é favor dos militares

- O Globo

Bolsonaro disse que a democracia só existe quando as Forças Armadas querem. A frase revela que ele não compreendeu a Constituição e o papel que ela reserva aos militares

O presidente Jair Bolsonaro disse ontem que “democracia e liberdade só existem quando a sua respectiva Força Armada assim o quer”.

A frase revela uma incompreensão do papel dos militares e da Constituição, que ele prometeu cumprir ao tomar posse.

A democracia não é um favor que os militares prestam aos civis. A palavra vem do grego demokratia, a união de demos (povo) e kratia (poder).

Se tiver dúvidas, o presidente pode consultar o artigo 1º da Constituição. Diz o parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.

Isso significa que o poder só é legítimo se tiver como origem a vontade popular, expressa pelo voto.

Os integrantes das três Forças participam do processo quando vão às urnas. O voto de um militar não vale mais nem menos do que o voto de um civil.

Míriam Leitão: A mulher alvo da violência

- O Globo

A mulher tem sido alvo de violência dentro das casas e nas ruas e para mudar isso é fundamental que as escolas façam o debate de gênero

Marielle foi vítima de um feminicídio político. Assim define sua ex-assessora, amiga, e hoje deputada estadual pelo Rio Renata Souza. Um ano depois, a polícia não trouxe a resposta esperada, e a Mangueira deu a resposta pública. Neste Dia Internacional da Mulher, é hora de falar delas, tantas, mortas ou agredidas. Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que por hora 536 mulheres foram vítimas de violência entre fevereiro do ano passado e fevereiro deste ano. Ao todo, 4,7 milhões de mulheres.

— A gente está falando de socos, batidas, tapas, chutes. E tem uma informação da pesquisa — feita pelo Fórum com o Datafolha — que mostra que quanto maior a escolaridade mais ela demonstra ter sido vítima de agressão. Não dá para acreditar que a mulher do ensino fundamental sofra menos violência do que a mulher escolarizada. Essa diferença tem a ver com o reconhecimento de que isso é um crime. As novas gerações, mulheres mais jovens e escolarizadas, estão mais empoderadas e denunciam — diz Samira Bueno.

Renata Souza preside a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Essa Comissão tem a característica, desde que era presidida por Marcelo Freixo, e coordenada pela própria Marielle, de dar também atendimento ao público. A deputada Renata vai manter essa prerrogativa.

— Vamos dar atendimento às mulheres, encaminhá-las à Defensoria Pública. Além disso, vamos instalar nas próximas semanas uma CPI da violência obstétrica. Tem havido muitas mortes de nascituros. Vamos investigar. Sou também da CPI do Feminicídio, presidida pela deputada Marta Rocha. Vamos trabalhar para superar esse nível de feminicídio que está acontecendo em nosso país —promete a deputada.

Flávia Oliveira: Na luta, a gente se encontra

- O Globo

Desfiles na Sapucaí ampliam visibilidade, escancaram polêmicas

Ao longo de pelo menos quatro décadas de olhar atento aos desfiles, aprendi com o carnaval muitas histórias — contadas ou não — nos livros escolares. Nenhuma delas se relacionou com o vídeo chulo compartilhado por um presidente da República que ainda não aprendeu a liturgia do cargo, e a quem é altamente recomendável a leitura de um código de conduta ou, melhor ainda, um detox das redes sociais. Jair Bolsonaro se elegeu com agenda tão ambiciosa quanto desafiadora. Prometeu dedicar os dias de folia a montar a estratégia de adesão de congressistas e da sociedade à reforma da Previdência elaborada pela equipe econômica. Em vez disso, tuitou conteúdo impróprio e depreciativo à pedagogia da mais importante festa nacional.

O que o carnaval ensina não é pouco nem recente. Décadas antes de Leandro Vieira, o artista catapultado a protagonista do espetáculo das escolas de samba, ter a ideia que levou à maiúscula vitória da Mangueira este ano, os desfiles já presenteavam o grande público com episódios soterrados pela História oficial. Em 1960, Fernando Pamplona, forjado na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ), inaugurou com “Zumbi dos Palmares” no Salgueiro a série de enredos afro que transformariam para sempre a folia. Joãosinho Trinta, outro gênio, reverenciou personalidades negras — de Ganga Zumba a Grande Otelo e Pelé, de Clementina de Jesus a Pinah — em “A grande constelação das estrelas negras” (Beija-Flor, 1983). A Vila Isabel, que neste 2019 deu vivas à princesa de quem tomou emprestado o nome, 31 anos atrás foi campeã com “Kizomba”, enredo de valorização das origens africanas no centenário da Lei Áurea. No mesmo 1988, a Mangueira conseguiu o vice com desfile crítico à Abolição, que não livrou os negros da exclusão social.

Nelson Motta: Chuva ácida

- O Globo

Além da Mangueira, como falar de outra coisa?

Como o vídeo chegou a Bolsonaro? Por um filho, um ministro, um assessor? Quem foi o gênio que lhe deu a brilhante ideia de postar?

Imaginem se um presidente americano ou argentino postasse essa porcaria, como reagiria Bolsonoro, ou qualquer governo brasileiro? Haveria uma indignação geral, ameaça de processos, escândalo internacional. A bolsa caiu, o país foi ridicularizado, investidores se encolheram, nada poderia ser mais danoso para o Brasil. Mas foi o próprio presidente que fez o que só um inimigo do Brasil faria, que até seus próprios eleitores condenaram.

E para que tudo isso? Para acusar a esquerda de pornográfica, como fazia a ditadura? Para agradar a seus devotos, pregando para convertidos? Para denunciar a degradação de costumes geral por um ato isolado? Quem ganha com isso?

As questões vitais do Brasil foram para segundo plano, a reforma da Previdência, os esforços de Paulo Guedes e Sergio Moro, e o país discute se para condenar a pornografia é preciso exibi-la, ou se exibi-la é que é pornográfico. Enquanto isso, o mundo se diverte com o Brasil sob uma chuva dourada. Não adianta acusar o globalismo, a mídia internacional é incontrolável e provoca consequências devastadoras.

Ricardo Noblat: O capitão que nada aprendeu

- Blog do Noblat / Veja

Em cena, os tradutores de Bolsonaro

Jair Messias Bolsonaro é a prova viva de quanto seria necessária uma reforma educacional aplicada às escolas militares. O capitão de hoje pode ser o presidente da República de amanhã. E ele não pode ser devolvido à vida civil sem conhecer, e bem, a história do seu país, os fundamentos do regime democrático e o papel das Forças Armadas, entre tantas outras coisas.

De preferência, deveria também sair da escola tendo aprendido a falar o idioma nacional com correção. É o instrumento básico de trabalho para qualquer um, militar ou civil, que queira conviver em sociedade. Lula, por exemplo, que nunca quis estudar, chegou à presidência da República falando um português cheio de defeitos. Ao invés de “menos” dizia “menas”. Melhorou depois.

Aprendeu no exercício do cargo quando deveria tê-lo feito antes. Sofreu vexames, foi vitima de ataques por isso, e rebateu-os muitas vezes louvando a própria ignorância. No discurso de posse no Congresso em janeiro de 2003, citou com orgulho que o diploma de presidente da República era o primeiro que ganhava. Mentiu, é claro. Havia ganhado um ao concluir o curso para torneiro mecânico.

Bolsonaro foi aluno da Escola Preparatória de Cadetes do Exército e da Academia Militar das Agulhas Negras, onde se formou em 1977. Dez anos depois, cursou a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. É de se supor que tivesse aprendido alguma coisa, talvez o bastante para se expressar pelo menos de forma inteligível, o que o pouparia de ser mal interpretado. Mas não foi isso o que aconteceu.

E disso deu prova mais uma vez ao falar rapidamente e de improviso na cerimônia pelo 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, na Fortaleza de São José da Ilha de Cobras, no centro do Rio de Janeiro. Lá pelas tantas, em meio a um raciocínio rasteiro, enxertou uma frase entre vírgulas que o levaria a pagar caro nas redes sociais que já foram a praia onde reinava sem contestação.

Disse o torturador da língua depois de mencionar sua vitória nas eleições passadas:

– A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia. E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer”.

Dora Kramer: A antiga musa canta

- Revista Veja

Bolsonaro virou refém da falsa ideia de que política é coisa de bandido

Repousado sobre quase três décadas de exercício parlamentar como deputado depois de deixar o Exército com a patente de capitão, Jair Bolsonaro teve uma ideia: concorrer à Presidência da República renegando a política e resgatando princípios da atividade militar. Rendeu-lhe a vitória. Nesse aspecto, pode-se dizer que foi uma boa ideia.

Sob a óptica de governo eleito, empossado e depositário de responsabilidades tão grandiosas quanto complexas, foi uma decisão mal pensada. Pelo seguinte: a fim de simplificar o tema para o parco entendimento da maioria, Bolsonaro tratou a negociação política como coisa de bandido e agora, quando precisa dessas tratativas, se vê prisioneiro de uma situação que se revela uma arapuca e que o faz refém de uma ilusão decorrente da simplificação de raciocínio para fins eleitorais.

Aquela história de conversar com bancadas ditas temáticas deixando de lado os partidos era uma quimera. O tema reforma da Previdência é um só, e dele o presidente depende para construir, ou não, um muro de arrimo para assegurar êxito razoável a seu governo. Só que, para seguir nesse caminho, recua do discurso da eleição e fica parecendo que traiu o eleitorado.

Monica De Bolle*: Acabou nosso Carnaval?

- Revista Época

O Carnaval de Bolsonaro é a versão tupiniquim e bem menos sofisticada das digressões de Trump aqui nos Estados Unidos.

Pelas redes o que se vê/É uma gente que nem se vê/ Que nem se sorri/Ataca e ameaça/E sai tuitando/ Brigando e xingando/Torcidas do horror.

Peço perdão a Vinicius de Moraes, mas nesta Quarta-Feira de Cinzas em que escrevo minha coluna semanal para ÉPOCA, a situação brasileira é tão tóxica que nem saudades nem cinzas restaram. O presidente da República precisa aprovar uma reforma, mas puxou o tapete debaixo dos pés de Sergio Moro e enfraqueceu um de seus superministros.

O presidente da República precisa aprovar uma reforma, mas já demonstrou relutância em relação a pontos do plano apresentado por Paulo Guedes, o outro superministro entre os únicos dois a ter respaldo técnico em suas áreas. O presidente da República precisa passar uma reforma, mas, na terça-feira gorda, preferiu tuitar vídeos pornográficos atacando o Carnaval, como se todos assim se comportassem, e, por tabela, manchar a instituição da Presidência.

O presidente da República precisa passar uma reforma, mas prefere incitar a divisão estúpida sobre assuntos comezinhos ante o tamanho dos desafios que enfrenta o Brasil. O presidente da República precisa passar uma reforma, mas prefere perder tempo com a ignomínia de alguns de seus ministros, de seus filhos, de alguns de seus seguidores nas redes sociais. O presidente da República precisa passar uma reforma, mas prefere tuitar perguntas esdrúxulas no amanhecer das cinzas.

Há quem já tenha se dado conta de que a reforma apresentada por Paulo Guedes está ameaçada pelas próprias atitudes do chefe da nação. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, soltou advertência sobre a desorganização da base governista no Congresso e disse, nas entrelinhas, que desse jeito não vai dar. Entre os investidores, começa a despontar a sensação desagradável de que o atual presidente da República, governado pelas redes sociais, não terá estofo ou coragem para enfrentar a saraivada de contestações sobre os principais pontos da reforma.

Merval Pereira; A hora da Previdência

- O Globo

Presidente enumerou vantagens no combate a privilégios, como a aposentadoria especial para políticos

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, começou a negociar com o governo o andamento da reforma da Previdência dentro do Congresso. Ele disse a interlocutores, entre eles o ministro da Economia, Paulo Guedes, que, se o governo não assumir uma posição proativa nas negociações parlamentares, não será possível aprová-la.

A aparição do presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais ontem, defendendo a reforma da Previdência diante de seus seguidores, já é consequência dessa necessidade, enfatizada por Maia, de o governo explicitar seu empenho da aprovação da reforma.

Rodrigo Maia também está pensando em ampliar a responsabilidade pela aprovação da reforma para partidos que tecnicamente são de oposição ao governo, como o PDT, ou que, sendo da base governista, estejam insatisfeitos, como o PP.

Ontem, o presidente da Câmara teve uma conversa com o deputado Mauro Benevides Filho, que seria o ministro da Fazenda de um eventual governo Ciro Gomes, para sondar a possibilidade de que ele venha a presidir a comissão especial da reforma.

Benevides Filho se licenciou do cargo de secretário de Planejamento do governo petista do Ceará para ficar na Câmara durante a tramitação da reforma da Previdência. Embora seja difícil uma negociação com o PDT, pois será preciso que o partido garanta não fechar questão contra a reforma, Rodrigo Maia considera que uma solução desse tipo daria à reforma da Previdência um caráter suprapartidário que ajudaria sua tramitação.

Luiz Carlos Azedo: A última do Bolsonaro

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Temos um governo assumidamente de direita, com uma agenda liberal na economia e conservadora nos costumes”

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito no segundo turno por 55,13% dos votos válidos; no primeiro turno, teve 46,03% dos votos. Embora seja presidente de todos os brasileiros, está fazendo a opção de governar apenas para os que votaram nele. Os que optaram por outros candidatos no primeiro turno e votaram nele, no segundo turno, não desejavam a volta do PT ao poder. O petista Fernando Hadadd obteve 44,97% dos votos no segundo turno, ao qual chegou graças aos 29,28% dos votos válidos obtidos no primeiro turno. O PT obteve 15% dos votos a mais no segundo turno, pela razão inversa.

Um candidato de centro, após a eleição, estaria mais empenhado em construir um certo consenso nacional para governar, isolando os extremos. Não é o caso de Bolsonaro. Sua estratégia é manter a fricção direita versus esquerda a qualquer custo e ancorar seu governo nas Forças Armadas, seja recorrendo a oficiais de alta patente para compor o governo e ocupar suas posições mais estratégicas, seja resgatando o velho positivismo que embalou as revoltas tenentistas, a Revolução de 1930 e o golpe militar de 1964. Bolsonaro revela uma estratégia política na qual o povo não é o protagonista, mas seus companheiros d’armas.

Ao discursar na cerimônia de aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais no Rio de Janeiro, num discurso curto e grosso, deu seu recado: “Temos uma missão de mudar o Brasil. Esse foi nosso propósito, essa foi nossa bandeira ao longo de quatro anos andando por todo o Brasil. […] O que eu quero para os senhores, meus irmãos militares. Sou do Exército brasileiro, mas tenho uma formação muito semelhante a de vocês. A minha última unidade foi a Brigada de Infantaria Paraquedista. Eu quero vocês conversando, ouvindo, debatendo uma retaguarda jurídica para que vocês possam exercer seus trabalhos, em especial nas missões extraordinárias da tropa.”

Depois, arrematou: “A segunda missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia e a liberdade. E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Forças Armadas assim o quer”, disse o presidente, arranhando a concordância verbal. Depois do discurso, o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, tentaram reinterpretar o discurso, mas o leite já estava derramado. Bolsonaro se viu obrigado a gravar uma “live” na internet, na qual minimizou o comentário feito na cerimônia militar.

Vinicius Torres Freire: Brasil sem vacina no resfriado global

- Folha de S. Paulo

EUA e Europa admitem fraqueira econômica; país tem remédio, se parar com besteira

Neste país cada vez mais jacu, provinciano, a gente presta menos atenção ao que se passa lá fora. A economia mundial, porém, costuma nos visitar. Bate à nossa porta com cara de gripe.

O BCE (Banco Central Europeu) afirmou nesta quinta-feira (7) que a economia da eurozona está perto de ir para o vinagre. Diga-se de passagem: é uma notícia que pode dar uma ajudazinha para a tese de que é preciso cortar juros básicos no Brasil.

Não, não é a peste, uma crise mundial daquelas contagiantes. Sim, nossos problemas domésticos são tamanhos que, dando um jeito nas panes maiores, até podemos superar os problemas importados. Isto é, dentro de certos limites. Como ainda estamos estagnados, com água pelo nariz, marolas podem nos dar uns caldos.

Essa balançada que estamos vendo no preço do dólar parece, basicamente, o efeito do dinheiro grosso se movendo pelo mundo por causa dos alertas de baixa no crescimento mundial.

Até dezembro, ouvia-se nos Estados Unidos e na Europa a conversa de que haveria ainda altas de juros e apertos monetários neste 2019, embora mais modestos. Nesta quinta-feira, o Banco Central Europeu anunciou uma reviravolta.

Democracia só existe se as Forças Armadas quiserem, diz Bolsonaro a militares

Em cerimônia, presidente afirmou que vai governar ao lado 'daqueles que respeitam a família'

Italo Nogueira / Folha de S. Paulo

RIO DE JANEIRO - Em discurso para militares, o presidente JairBolsonaro (PSL) afirmou nesta quinta-feira (7) que vai governar ao lado "daqueles que respeitam a família" e afirmou que democracia só existe se as Forças Armadas "assim o quiserem".

O presidente fez um rápido discurso na cerimônia no 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, na Fortaleza de São José da Ilha de Cobras, no centro do Rio de Janeiro. Ele descreveu sua vitória nas eleições do ano passado como uma missão.

“A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia. E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer”, afirmou.

O presidente discursou por pouco mais de quatro minutos e não atendeu a imprensa após o evento.

Em janeiro, em seu segundo dia de governo e também diante de militares, Bolsonaro havia adotado um discurso na mesma linha. Na ocasião, disse que as Forças Armadas do Brasil são obstáculo para quem quer usurpar o poder no país.

“A situação em que o Brasil chegou é prova inconteste de que o povo, em sua grande maioria, quer respeito, quer ordem, quer progresso”, afirmou naquele dia.

A fala de Bolsonaro motivou críticas de opositores. Derrotado nas últimas eleições, Fernando Haddad (PT) cobrou uma explicação. "Infelizmente, o presidente não atendeu a imprensa para explicar o raciocínio", escreveu no Twitter.

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, também atacou a declaração. "Essa pessoa não tem limites na agressividade! A Democracia foi conquistada pela sociedade brasileira. Não é objeto de tutela ou permissão. Terá muita luta pra defendê-la, apesar de vc e seus aliados", disse ela na rede social.

"Ele ataca a Constituição que diz `Todo poder emana do povo´. Mais uma vez comete crime de responsabilidade e atenta contra a dignidade do cargo. Pior, constrange os militares a assumirem o autoritarismo", escreveu o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP).

O deputado federal Alexandre Padilha (PT) disse que Bolsonaro cometia um "ataque irreparável" à Constituição ao "tutelar a nossa democracia ao bem dispor dos militares".

Bolsonaro: 'Democracia só existe quando as Forças Armadas assim o querem'

Em evento com militares no Rio, presidente também afirmou que deseja se aproximar de países com ideologia semelhante ao Brasil; após repercussão, Mourão minimizou a fala

Denise Luna e Julia Lindner / O Estado de S.Paulo

RIO - O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta quinta-feira, 7, durante as comemorações dos 211 anos do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio, que a liberdade e a democracia só existem "quando as Forças Armadas assim o querem". Após a repercussão da fala de Bolsonaro, o vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou que ele estava sendo "mal interpretado".

Em discurso de cerca de quatro minutos, Bolsonaro ressaltou que quer estar ao lado "daqueles que amam a Pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhantes à nossa (Brasil), e daqueles que amam a democracia e a liberdade".

Bolsonaro afirmou ainda que vai aprovar a reforma da Previdência e que os militares serão incluídos "respeitando as especificidades de cada Força (Marinha, Exército e Aeronáutica)".

O presidente saiu sem falar com a imprensa dois dias depois de ter postado na internet um vídeo considerado pornográfico e escatológico, que foi retirado do ar, e gerou críticas entre aliados e opositores.

'Democracia e liberdade só existem quando as Forças Armadas assim o querem', afirma Bolsonaro

Presidente participou de evento na sede da Marinha, no Rio, onde discursou para militares

Bruno Abbud / O Globo
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RIO - O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta quinta-feira, durante discurso na cerimônia do 211° aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, na sede da Marinha, no Rio, que democracia e liberdade só "existem quando as Forças Armadas querem".

Em um discurso de cerca de quatro minutos, Bolsonaro cumprimentou em especial aos que "respeitam a família", falou sobre sua missão de governar o Brasil e também pediu "sacrifício" dos militares diante da reforma da Previdência que os atingirá .

- A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia e a liberdade. E isso, democracia e liberdade, só existem quando as suas respectivas Forças Armadas assim o querem - disse Bolsonaro ao cumprimentar os presentes e "aqueles que querem aproximação com países que têm a ideologia semelhante à nossa".

A citação acontece um dia depois de um tuíte polêmico do presidente questionar o significado do termo 'golden shower' , prática sexual na qual um parceiro urina sobre o outro. Na terça-feira à noite, Bolsonaro compartilhou vídeo no qual dois foliões praticam o ato durante o carnaval de São Paulo.

Os ministros da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, além do prefeito Marcelo Crivella, acompanharam Bolsonaro na cerimônia. Representantes militares dos Estados Unidos, Peru e Chile também estiveram no evento.

Nota das centrais sindicais sobre a edição da MP 873

A edição da MP 873 pelo presidente Bolsonaro é um grave ataque contra o princípio da liberdade e autonomia sindical e o direito de organização dos trabalhadores, dificultando o financiamento das entidades de classe, no momento em que cresce no seio da classe trabalhadora e do conjunto da sociedade a resistência ao corte de direitos de aposentadoria e previdenciários em marcha com a apresentação da proposta de Reforma da Previdência que já tramita no Congresso Nacional.

As centrais sindicais, os sindicatos, federações e confederações de trabalhadores tomarão todas as medidas de caráter legal e junto ao Congresso Nacional, as bancadas dos partidos políticos, e mobilizações para derrotar a MP 873 e os ataques contra o movimento sindical, que também são ataques contra a democracia brasileira duramente conquistada.

Reunidas em São Paulo nesta data, as centrais sindicais orientam que:

- A MP 873 não altera o desconto em folha de pagamento das mensalidades associativas e outras contribuições constantes nas Convenções e Acordos Coletivos aprovados em assembleias;

- Os empregadores que não efetivarem os referidos descontos, além da ilegalidade, incorrerão em práticas antissindicais e sofrerão as consequências jurídicas e políticas dos seus atos;

- As centrais sindicais denunciarão o governo brasileiro na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e demais organismos internacionais por práticas antissindicais;

- O coletivo jurídico das centrais sindicais construirá estratégias unitárias para orientar seus filiados e recomenda que nenhuma medida jurídica relativa à MP 873 seja tomada individualmente.

É oportuno reforçar que as centrais sindicais e o conjunto do movimento sindical já convocaram, para o dia 22 de março próximo, o Dia Nacional de Lutas contra o fim das Aposentadorias e por uma Previdência Social Pública, quando serão realizados atos públicos, greves, paralizações e mobilizações contra o projeto da reforma da previdência do presidente Bolsonaro, um processo de mobilização crescente dos trabalhadores e da sociedade civil em defesa dos seus direitos sociais, econômicos, de aposentadoria e previdenciários.

São Paulo, 7 de março de 2019.

Vagner Freitas – Presidente da CUT
Miguel Torres – Presidente da Força Sindical
Adilson Araújo – Presidente da CTB
Ricardo Patah – Presidente da UGT
José Calixto Ramos – Presidente da NCST
Antonio Neto – Presidente da CSB
Ubiraci Dantas de Oliveira – Presidente da CGTB
Atnágoras Lopes - Executiva Nacional da CSP-Conlutas
Edson Carneiro Índio – Secretário-geral da Intersindical

A virada mais perigosa: Editorial / Época

Consolidou-se no século XX a ideia otimista de que existe uma relação profunda entre democracia e prosperidade: quanto mais democrático um país, mais próspero ele será. No período depois da Segunda Guerra Mundial, a democracia seguiu ritmo vitorioso. Bastiões e ameaças autoritárias haviam sido vencidos. A União Soviética desaparecera, o nazismo tornara-se um pesadelo distante e todos os continentes mostravam sinais de avançar para eleições livres e para o estado de direito. Os otimistas podiam dizer que a humanidade estava finalmente reconhecendo os princípios transcendentes da liberdade e igualdade democráticas.

Na sexta-feira 1º de março, quando o Carnaval brasileiro começava a todo confete, os cientistas políticos Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk publicaram análise preocupante a partir de dados compilados pelo Fundo Monetário Internacional. Foa e Mounk são relevantes estudiosos da evolução — e involução — da democracia mundo afora, e o alerta que fizeram merece ser propagado.

No resumo do estudo que publicaram em The Wall Street Journal, os especialistas projetam que — pela primeira vez na história — a produção total de riqueza dos países considerados “não livres” será superior à riqueza gerada pelas democracias ocidentais. Traduzindo em grandes números, as economias combinadas dos Estados Unidos, da Alemanha, da França e do Japão vão perder para o time da China, da Rússia, da Turquia e da Arábia Saudita. Os autores calculam que tal virada ocorrerá em algum momento nos próximos cinco anos.

Desde a década de 1890, países como os EUA, a Grã-Bretanha e um pequeno grupo de outras democracias dominaram a economia global. Os cientistas políticos calcularam que, em 1995, 96% das pessoas que viviam em um país com renda per capita anual acima do equivalente hoje a R$ 75 mil eram cidadãos de uma democracia liberal. “Com a exceção de alguns poucos oligarcas empoleirados em sociedades estagnadas e repressivas, somente os democratas conseguiram desfrutar da verdadeira riqueza”, escreveram Foa e Mounk.

A morte do decoro: Editorial /Veja

No Carnaval de 1994, o Brasil chamou a atenção do mundo quando seu então presidente, Itamar Franco, trocou carícias e declarações apaixonadas com uma modelo sem calcinha que acabara de conhecer em um camarote da Sapucaí. A fotografia foi parar na capa de VEJA, saiu nos principais jornais do globo, gerou uma torrente sem fim de piadas — e os mais exaltados chegaram ao exagero de sugerir a renúncia do presidente, impeachment por “falta de decoro” e a antecipação do pleito de outubro daquele ano, que acabou elegendo Fernando Henrique Cardoso.

Passado o impacto inicial, o caso virou um verbete no folclore da política nacional ao qual se recorre para descrever uma autoridade que se comporta de modo abobalhado em público. Na Terça-Feira de Carnaval, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu superar a marca de Itamar ao protagonizar um caso de vulgaridade inominável. Com o objetivo de denunciar os excessos dos blocos carnavalescos, Bolsonaro divulgou em sua conta no Twitter um vídeo com imagens obscenas de dois homens durante o Carnaval, causando espanto mais ou menos generalizado, deflagrando as piadas de sempre e expondo o país ao ridículo internacional.

É bom não confundir os elementos. Uma coisa é um presidente ficar incomodado com comportamentos inaceitáveis em público, quer durante o Carnaval, quer fora dele. E o comportamento exibido no vídeo é execrável. Outra coisa, inteiramente diferente, é um presidente achar apropriado e adequado usar uma conta oficial de primeiro mandatário da República Federativa do Brasil para divulgar cenas de cunho pornográfico a pretexto de condená-las. Trata-se de uma dolorosa evidência de que Bolsonaro não faz ideia do tamanho, da dignidade e do decoro do cargo que ocupa.

Não falta trabalho para Jair Bolsonaro: Editorial / O Globo

Em vez de disparar tuítes para animar militantes, presidente tem de cumprir promessas feitas

O desastrado tuíte do presidente Bolsonaro, com cenas pornográficas do carnaval de rua, recebeu o merecido repúdio e deflagrou incontáveis análises sobre quais seriam as motivações do presidente. Há aposta em que Bolsonaro procurou se vingar das críticas que recebeu, talvez desconhecendo que brincar com os poderosos da vez é costume secular do carnaval brasileiro. É possível, também, que tenha tentado de forma canhestra dar um aceno a eleitores seus mais conservadores.

Porém, o que fica de tudo isso — além de fundos arranhões na imagem presidencial — é que Bolsonaro precisa descer de vez do palanque, arregaçar as mangas e trabalhar com afinco para executar o que prometeu na campanha. A primeira tarefa da sua agenda, a reforma da Previdência, já é capaz de tomar todo o seu tempo. Depois de escorregar em um ou outro aceno de recuo — como admitir rebaixar o limite de idade na aposentadoria das mulheres, de 62 anos para 60, em prejuízo da redução dos gastos públicos —, o presidente tem de se dedicar ao convencimento de políticos de que não há alternativa para se começar a desanuviar os horizontes do crescimento.

Constatada a inviabilidade de entendimentos políticos com “bancadas temáticas”, o governo já trabalha junto aos partidos para construir uma base parlamentar que conceda 308 votos na Câmara e 49 no Senado, o mínimo necessário para que mudanças constitucionais sejam aprovadas no Congresso. Há várias no projeto da Previdência.

Quebrando louças: Editorial / O Estado de S. Paulo

Chega a ser comovente o esforço de comentaristas para encontrar nas destrambelhadas manifestações do presidente Jair Bolsonaro algum sentido estratégico, como se fizessem parte de um plano racional de comunicação.

Desde seu grotesco discurso de posse, atulhado de arroubos e bravatas ginasianas, já devia estar claro para todos que Bolsonaro nunca se viu na obrigação de medir suas palavras e gestos, adequando-os à sua condição de chefe de Estado. Ao contrário: a julgar pelo comportamento muitas vezes grosseiro e indecoroso de Bolsonaro, o presidente provavelmente se considera acima do cargo que ocupa, dispensado dos rituais e protocolos próprios de tão alta função. Até à disseminação de pornografia pelas redes sociais ele tem se dedicado, para estupefação nacional e internacional.

Se estratégia há, é a de deixar o País apreensivo a cada novo tuíte ou discurso presidencial, pois nunca se sabe o que virá. Bolsonaro parece imaginar que foi eleito para dizer o que lhe vem à cabeça, sem se importar com os estragos – e seus assessores que se esforcem para tentar reduzir os prejuízos decorrentes de seus excessos.

Sombra no ministério: Editorial / Folha de S. Paulo

Titular do Turismo continua a dever explicações sobre candidaturas de fachada do PSL; suspeitas se reforçam com entrevista de candidata a este jornal

Se o titular da pasta do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, aposta que serão esquecidas as evidências de seu envolvimento com candidaturas de fachada em Minas Gerais, a estratégia se mostra inglória. Desde o início de fevereiro, quando esta Folha revelou o caso, a situação do ministro só faz piorar.

Nos próximos dias, a Polícia Federal deverá ouvir Zuleide Oliveira, candidata do PSL que o acusa de tê-la convidado para participar, nas últimas eleições, de esquema de desvio de dinheiro público reservado ao partido —o mesmo do presidente Jair Bolsonaro.

Nesta quinta (7), Adriana Borges, que disputou uma cadeira na Câmara, disse ao Ministério Público Eleitoral que um assessor do ministro lhe propôs a devolução de R$ 90 mil em verba de campanha.

Até então, sabia-se que Álvaro Antônio, presidente do PSL mineiro e deputado federal mais votado em seu estado, havia obtido da cúpula nacional da sigla um repasse de R$ 279 mil para quatro candidatas sem nenhuma expressão perante o eleitorado. Juntas, elas amealharam pouco mais de 2.000 votos.

Governo precisa criar novos laços com o Congresso: Editorial / Valor Econômico

O presidente Jair Bolsonaro perde tempo e capital político com extravagâncias, mas seu governo será testado de fato pelo desempenho no Congresso, a começar pela votação da principal reforma de sua fase inaugural, a da previdência. Como o trunfo eleitoral está ficando distante no tempo, e será apagado dos cálculos políticos se o governo continuar demonstrando mistura tóxica de extremismo ideológico e falta de interlocução, será determinante construir pontes com o Congresso. Até agora, não parece ainda haver nenhuma, apesar das mesuras de praxe ao Legislativo.

O caminho natural de acerto político começa pela formação do ministério. É da democracia que partidos políticos aliados detenham uma parcela do poder, mas acertos escusos demonizaram a prática e os políticos. Bolsonaro (PSL-RJ) colocou o fim dessas barganhas como centro de sua campanha eleitoral, tornando seu quase inexistente partido na maior força do Congresso, ao lado do PT (ambos com 54 deputados). O presidente cumpriu a promessa, e isso tem um custo.

Bolsonaro compôs o ministério com alguns integrantes de bancadas temáticas (caso da Agricultura e da pasta de Mulher, Família e Direitos Humanos), um número razoável de nomeações "técnicas" para a infraestrutura desmembrada, entre as quais vários militares da reserva e, por fim, franco atiradores ideológicos sem partido (caso da Educação e Relações Exteriores). O peso político desse time no Congresso é pequeno. O partido mais presente nessa composição, o DEM, com três ministros, inclusive o da coordenação política, não é aliado incondicional do governo nem indicou os nomeados. Apenas Fernando Collor, desde a redemocratização, governou sem fatiar muito seu ministério com partidos e seu PRN era inexpressivo como o PSL antes das urnas. Collor não terminou o mandato, mas não por ter feito um "governo técnico".

Vinicius de Moraes: Receita de mulher

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República [Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da [aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-e dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem [saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de [coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima [penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca [inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer [beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Roberta Sá: Cicatrizes