- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Para compreender sociologicamente a mentalidade dos que ocupam funções de poder, um meio é observar como caminham e o modo como lidam com o próprio corpo nas situações rituais do exercício do mando. Muitas pessoas poderosas revelam o que são e suas limitações nos eloquentes desencontros entre a função política que ocupam e o corpo que carregam para dentro do poder. Os desencontros ficam evidentes no modo de andar impróprio, no tom de voz elevado.
Não é raro que os fora de lugar ensaiem suas performances antes de saírem à boca da cena dos episódios de teatralidade a que a circunstância os obriga. Um ensaio fotográfico da época mostra que Hitler fazia isso para aparentar em público o oposto do homem abúlico e insípido que Goebbels descreve em seu diário.
Getúlio Vargas interagia com a multidão, calculando-lhe a reação provável e dando à voz a teatralidade do poder. Um documentário mostra Luiz Inácio, nos bastidores do palco da Vila Euclides, em São Bernardo, avaliando a multidão, calculando a postura para o discurso que faria.
A linguagem política não se resume à fala nem se expressa, necessariamente, nos discursos oficiais. É insuficiente que o analista se limite ao que o político diz. O documento dos fatos políticos está muito presente nos gestos, nas relutâncias, naquilo que não é dito, mas está sendo evidenciado. Está nos indícios da mentalidade do político que se expressa em seu corpo mudo.
Pequenos detalhes podem falar muito mais do que extensos e elaborados discursos. Além do que, toda a biografia da pessoa, desde o nascimento, deixa suas marcas profundas não só na personalidade, mas também em seus modos: de caminhar, de sentar, de mastigar, de falar, na competência ou não para representar apropriadamente a pessoa que personifica em cada circunstância.
Desde o dia da posse, a rigidez militar da postura do novo presidente em atos públicos e oficiais indica a socialização formal própria da vida de quartel, a sociabilidade limitada às regras da ordem unida, da voz de comando, da disciplina de comandado. Seu corpo não está à vontade na pessoa presidencial, seu corpo ainda não assumiu a Presidência.
Embora seja o comandante em chefe das Forças Armadas e, portanto, hierarquicamente superior a todos os oficiais generais, em sua postura há indícios de uma indecisão sem cabimento. Uma indecisão que Lula não tinha, descomprometido que era com a ideia de disciplina.
Lula, muito antes de entrar na política, tinha clareza sobre as limitações que a condição operária impõe aos modos de conduta do trabalhador quando fora de sua específica situação de classe social. Em depoimento no Congresso de História da Região do ABC, em São Bernardo do Campo, nos anos 1990, fez esta afirmação significativa: "O operário não sabe nem comer". E contou o que lhe acontecera num jantar em palácio, para o qual fora convidado por François Mitterrand.
Lula ganhava notoriedade internacional como líder sindical. Num certo momento, o serviço do jantar parou. Até que um acompanhante do futuro presidente brasileiro, um que vinha de outra classe social, sussurrou-lhe que colocasse os talheres no prato, em determinada posição, para indicar que havia terminado, para que o jantar continuasse.
No mesmo congresso, velhos operários de diferentes empresas, já aposentados, apresentaram um testemunho de como os movimentos do corpo, na linha de produção, ficaram gravados em sua memória gestual. Como na performance de Chaplin em "Tempos Modernos". Até em atos fora da fábrica, como o das refeições em casa. Em certa época, o único talher nas refeições operárias era a colher, segurada como se a pessoa segurasse uma ferramenta.
A postura do poderoso e o senso comum de sua mente arrastam a liturgia da função presidencial para desempenhos e visibilidades limitantes e desconstrutivas que desdizem o que está sendo dito e representado. O que diz muito sobre o lado alienado do poder.
Se nos gestos do novo presidente há o cenário de um quartel invisível, nos gestos presidenciais de Luiz Inácio havia o cenário invisível da porta da fábrica, como nos gestos presidenciais de FHC havia o cenário da sala de aula, ou nos de João Figueiredo havia o do oficial de cavalaria sempre montado, mesmo quando caminhava. O cenário dos chamados às funções do poder ou os puxa para cima de sua pessoa ou seu corpo os puxa para baixo de sua função.
A rigidez das pernas do presidente atual contém um discurso paralelo sobre o presidente invisível que há nele, como tem havido em todos os outros. Neste momento, prestar atenção nos movimentos corporais de quem nos governa é um meio de compreender em tempo o que será o governo e de que tipo serão suas crises.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).
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