- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O momento grave do país exige uma liderança presidencial muito especial, com qualidades maiores do que a de líderes populares ou partidários. No período mais recente, nunca a palavra estadista foi tão perfeita para uma situação histórica em que o presidente terá de orientar suas ações pelos interesses maiores do Estado brasileiro. Mas se Bolsonaro preferir se guiar por uma visão mais sectária, atuando apenas segundo a opinião de seus próximos e incentivando o clima de guerra contra os que não pensam exatamente como ele, o Brasil não sairá da crise.
Antes de entender que qualidades um estadista deveria ter agora, é preciso mostrar por quais razões um líder com tais predicados seria mais urgente neste momento. A resposta mais ampla é a confluência de várias crises no mesmo ponto da história, numa intensidade e combinação raras, uma verdadeira tempestade perfeita.
A primeira crise é a econômica. Ela não pode ser representada apenas pelo baixo crescimento e enorme desemprego. Por trás de tudo isso, há a necessidade de reformar grande parte do modelo econômico, dando maior solvência fiscal ao Estado, melhorando a competitividade da economia, fortalecendo os pilares da produtividade (principalmente em termos educacionais) e garantindo um mercado de trabalho que gere mais e melhores empregos.
Não será nada fácil, pois transformação de tal envergadura exigirá mudanças legislativas difíceis, como as reformas da Previdência e do sistema tributário, além de um processo intrincado de implementação - por exemplo, quem vai formular e executar as melhorias na educação necessárias para qualificar o capital humano?
Mas a crise econômica não pode ser descolada da dinâmica social brasileira. A característica mais marcante do país é a desigualdade e reformar o Estado sem levar em conta isso é mais do que uma falta de sensibilidade. É um passo para o precipício. A tarefa é árdua porque teremos de, a um só tempo, garantir a solvência do Estado sem piorar a vida dos mais pobres do país. Olhar apenas para um lado levará a dois fins trágicos: ou será o caminho para inviabilizar as políticas públicas porque não teremos dinheiro para tal, ou será a trilha para deslegitimar o governo frente à maior parcela da população.
Sendo mais direto: o Brasil não pode gastar com a Previdência o volume de recursos em relação PIB que gasta hoje, mas não pode deixar para atrás os desvalidos urbanos e rurais que não tiveram igualdade de oportunidades no ponto de partida, sobretudo do ponto de vista da educação, ou que tenham problemas de saúde graves. Há muita coisa para mudar no modelo previdenciário do setor público, no ajuste mais parcimonioso do país à sua demografia e nos generosos subsídios às empresas ou mesmo à classe média.
O ponto mais nevrálgico, no entanto, é a crise política. O alicerce do sistema partidário por mais de 20 anos foi destruído, sem que algo em seu lugar fosse colocado. O processo de renovação que ocorreu é muito mais heterogêneo, inorgânico e frágil do que pode pensar a vã filosofia dos crentes na reforma moral do país. O Congresso não tem hoje uma coluna vertebral e o partido do presidente, além de francamente minoritário, é composto por neófitos na política, incapazes de entender a profundidade da crise e os seus remédios. Brincam de propor a Escola sem Partido, a mudança forçada da composição do STF e outras bobagens. Estão muito distantes de um diagnóstico sério, que envolva não só o entendimento dos problemas do país, mas que busque ainda inspiração na experiência internacional bem-sucedida. Essa dispersão temática só vai atrapalhar a busca do essencial.
O amadorismo político, na verdade, começa no Executivo. Desde a redemocratização, nunca se viu um fosso tão grande entre o Palácio do Planalto e as duas Casas Legislativas. Continuar usando a estratégia da campanha eleitoral como forma de convencer os congressistas é desastroso em termos de efetividade política. O presidente Bolsonaro tem que montar uma maioria parlamentar para aprovar reformas constitucionais, e isso exige construir uma coalizão, ou para usar uma palavra mais adequada ao bolsonarismo, um casamento partidário. É o que ocorre em todas as democracias multipartidárias, algo mais complexo no Brasil por conta da enorme fragmentação partidária.
Para piorar, a crise política pode ficar mais ampla, tornando-se geopolítica. A forma como o Brasil tem se comportado nos últimos três meses no cenário internacional é, no mínimo, temerária. O sucesso do país sempre esteve atrelado, embora de diferentes formas no tempo, à sua posição moderada e cooperativa em relação a diversos atores estrangeiros, sejam países ou organismos multilaterais. Mas o chanceler quer dar um cavalo de pau e colocar o Brasil numa cruzada de transformações semelhantes ao pós-Segunda Guerra Mundial. Essa ousada aposta aumenta a incerteza sobre nosso futuro nos próximos anos.
Por conta dessa soma de crises, precisamos urgentemente de um estadista que seja capaz de ter três qualidades. A primeira é pensar além do seu mandato. Isso envolve, de um lado, levar em conta o projeto de nação inscrito em nossa história e reforçado pela Constituição de 88. Um rompimento brusco com o que, arduamente, construímos poderá enfraquecer as bases mais sólidas do país.
Por outro lado, o momento exige um estadista capaz de explicar ao país quais são as medidas necessárias para termos um futuro melhor. Em alguns aspectos, isso significará muita gritaria de vários grupos, incluindo bolsonaristas, e uma provável perda de popularidade. Mas é preciso que o presidente Bolsonaro saiba que, sem fazer alterações profundas nas políticas públicas, em pouco tempo ele também perderá legitimidade. Sem melhorar a situação fiscal, ganhar a confiança da comunidade internacional em questões como o meio ambiente e os direitos humanos e iniciar um projeto que sinalize a melhoria da educação, não haverá Trump que nos salve. E o alarme vai soar bem antes do fim do mandato.
A segunda qualidade de estadista diz respeito ao amplo diálogo com as principais forças políticas e sociais do país. Esse predicado será necessário para, primeiramente, legitimar e aprovar reformas difíceis, que não vão parar na Previdência. A estratégia de atropelar o mundo político e de jogar a culpa nos adversários não dará certo. Governos de outra linha ideológica tentaram fazer isso e só provocaram mais crise.
A maior abertura ao diálogo é fundamental, ademais, para reduzir a polarização política. Cabe lembrar que o que pode ser útil para ganhar uma eleição pode ter o efeito contrário quando se é governo. Alimentar a divisão do país, por meio de guerras culturais e contínua provocação dos adversários, só vai atrapalhar a realização de mudanças estruturais do Estado. Um exemplo: muitos implementadores das políticas públicas podem não ter votado no presidente e caso se sintam alijados ou forem xingados, nada os fará cooperar.
Além disso, o presidente Bolsonaro deveria ouvir mais outros grupos sociais que ultrapassem seu círculo de apoiadores, pois, diga-se a verdade, seu plano de governo era bastante incompleto, dado que não tinha o diagnóstico de vários problemas do país. Ele precisará agregar mais informações e soluções que não estavam colocadas no processo eleitoral. Imerso numa imensa crise, o Brasil precisa agora de alguém que, em alguma medida, junte os diferentes e disso obtenha maior força e legitimidade políticas.
O rol de qualidades do estadista se completa com o exercício de liderança em tempos difíceis. Em situações assim, grande parte do capital político obtido com a eleição será gasta. Para que esse processo seja mais eficiente, Bolsonaro precisa definir de que maneira irá convencer as pessoas e os grupos políticos da urgência das mudanças mais duras. O presidente pode e deve descentralizar várias decisões governamentais para gestores competentes. Mas os temas mais complexos e polêmicos devem ser liderados por ele.
A liderança de um estadista também se mede por sua capacidade de arbitrar conflitos e avaliar as decisões de seus subordinados. Muitas confusões ocorreram em pouco tempo de governo, concentradas em alguns ministérios, e aparentemente o presidente esteve alheio a maioria delas. No fundo, a impressão que se tem é que Bolsonaro ainda não em uma ideia clara de quais são as prioridades do país e que futuro imagina para as principais áreas de políticas públicas. Sua inexperiência no Executivo e a falta de um grupo político mais orgânico e preparado para os desafios do poder explicam esse quadro de incerteza decisória.
Claro que o presidente pode optar por um outro caminho, acreditando, erroneamente, que só deve responder a um grupo sectário que o apoiou desde o início. Se seguir essa trilha, todo o restante, num tempo menor do que se imagina, vai abandoná-lo, e a grande maioria estará do lado contrário de Bolsonaro. O tempo é de mudar o padrão de liderança, antes que o presidente descubra a verdadeira solidão do Palácio do Planalto, olhando para os retratos de Jânio, Collor e Dilma.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP.
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