domingo, 12 de abril de 2009

Um programa habitacional - para a economia

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO

Prioridade do Minha Casa, Minha Vida é financiar empresas de construção para que criem empregos e atenuem a crise

Um conjunto de dúvidas envolve a eficácia do programa de 1 milhão de moradias para trabalhadores que o governo do presidente Luiz Inácio está lançando, às pressas, nestes dias pré-eleitorais, para famílias com rendimentos até três salários mínimos e famílias com rendimentos até dez salários mínimos. São dois grupos substancialmente diferentes, o que recebe até R$ 1.395,00 mensais e o que recebe até R$ 4.650,00 mensais. O documento oficial de divulgação do Minha Casa, Minha Vida estipula que para o segundo grupo haverá 60% das moradias. Portanto, um programa voltado para a baixa classe média e, só residualmente, para populações pobres. Desde que possam pagar ao menos R$ 50 mensais, ou seja, desde que o rendimento familiar seja ao menos ligeiramente superior ao salário mínimo.

O programa, sem dúvida, tem um apelo. Embora o problema não tenha entrado nas cogitações do governo, o programa, num primeiro impacto, poderá atingir duramente a especulação imobiliária urbana, sobretudo nas favelas, forma iníqua de exploração dos pobres pelos pobres. Nas favelas de São Paulo é pouco provável que alguém que ganhe um salário mínimo consiga alugar um barraco por menos de R$ 280.

Esse não é o único aspecto do programa em que Estados e municípios poderão consertar as omissões e a falta de objetivos propriamente sociais do programa habitacional do governo federal. O aspecto mais problemático dele é que não se vincula a uma diretriz de política urbana, coisa que de fato o governo Lula não tem. Embora se dirija preferencialmente a regiões metropolitanas e grandes cidades, o programa é um mero projeto de financiamento subsidiado da construção de casas e apartamentos. Não é um programa de substituição de habitações precárias, como favelas e cortiços, por habitações próprias de um modo de vida urbano, civilizador e emancipador. O governo está a fim de gastar dinheiro, mas não é de fato motivado pelo uso racional do dinheiro público em função de carências sociais. Carências, aliás, que não se resumem a essa discutível primeira pessoa de programa sentimental de televisão que vem a ser o slogan "Minha casa, minha vida". Na perspectiva da moradia, a vida de cada um nunca é de cada um. A questão é social porque a moradia precária de uns afeta o morar de todos.

O mundo urbano é a nossa forma de civilização possível. Nos últimos 50 anos essa civilização, no Brasil, entrou em declínio com a deterioração urbana e a expansão das formas precárias de habitação. O urbano só o é se representar um passo adiante na civilidade, na democratização do acesso aos serviços públicos, ao conhecimento, à educação, ao lazer civilizado, à substancial melhora na qualidade de vida em relação aos parâmetros rurais de origem de boa parte de nossa população urbana.

Nem sempre habitações de favelas são impróprias e condenáveis. Já houve casos, como na favela de Heliópolis, em que os apartamentos do Projeto Cingapura, de Maluf, foram considerados pelos moradores piores do que muitos barracos. Nossos programas habitacionais nunca consideraram de fato o imaginário da habitação popular, construída de dentro para fora, para nela se viver, o conforto no lugar da aparência externa da arquitetura crua. É o oposto das habitações dos programas oficiais, construídas de fora para dentro, prioritariamente para serem vistas, para higienizarem a visão dos que não moram em condições precárias e adversas, o que acaba levando a improvisações e ajustes vivenciais que favelizam as habitações por dentro e não melhoram a qualidade de vida de quem nelas vive.

Nesse sentido, o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida não representa um avanço. Não é o programa da revolução urbana de que carecemos com urgência. Não estabelece a obrigatoriedade de uma substancial reforma urbana, que corrija, finalmente, os grandes problemas das cidades. É que sua motivação nada tem a ver com as carências radicais dos que vem sendo colocados à margem da civilização urbana. Sua prioridade é facilitar a distribuição de recursos às empreiteiras para que criem emprego e atenuem a crise econômica que nos ameaça. Nada muito diferente do que foi o programa do Banco Nacional de Habitação, do regime militar, criado como anteparo ao desemprego decorrente das grandes mudanças econômicas que promoveu, na concentração da propriedade da terra, nas decorrentes migrações e na concentração econômica, além do chamado arrocho salarial, que diminuiu substancialmente os rendimentos das famílias. A lógica é a mesma: apresentar o programa econômico como se fosse social.

Uma dificuldade para se apreciar criticamente os programas supostamente sociais do governo Lula e, em consequência, propor a legitimidade de alternativas é que são programas cuidadosamente embalados no celofane vermelho do politicamente correto, tudo proposto a seu tempo para alimentar o imaginário popular do assistencialismo. Foi assim com o Bolsa-Família que, de um programa de estímulo à escolarização, foi transformado num programa de assistencialismo estatizado. Foi assim com o ProUni, um programa de financiamento de escolas privadas de terceiro grau que aparece como democrático programa de acesso dos pobres ao ensino superior.

Será assim com esse programa habitacional, que financiará empresas do ramo de construção civil, criará empregos emergenciais e só por tabela subsidiará a habitação popular. A pergunta que se pode fazer é por que, sendo a questão habitacional grave questão social, o governo Lula não tomou essa providência logo no início do seu governo em vez de perder tempo com o inconsistente Fome Zero? Uma certa perversidade do politicamente correto atua em favor da dimensão eleitoral do programa: além do risco de clientelismo, quem, em sã consciência, recusará a possibilidade de ter uma casa, dela precisando, mesmo que não seja a casa da sua vida? A cavalo dado não se olham os dentes, mesmo que seja ele um pangaré.

*Professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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