Por Luiz Antonio Magalhães
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A democracia brasileira sobrevive aos escândalos promovidos por parlamentares que se "lixam" para a opinião pública, o terceiro mandato do presidente Lula está descartado e a candidatura presidencial de Dilma Rousseff poderá beneficiar-se da doença da ministra. É o que pensa o sociólogo Gabriel Cohn, dedicado estudioso da obra de Max Weber, que se aposentou no fim do ano passado no topo da carreira universitária - era professor titular e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Analista irônico e coloquial, Cohn despediu-se da célebre faculdade usando uma frase de Samuel Johnson: "Nada deixa um homem mais lúcido do que a certeza de que será enforcado na manhã seguinte".
Apesar de mostrar-se preocupado com a "desqualificação da dimensão política" que está na raiz da crise do Legislativo federal, Cohn observa que "o sistema funciona porque não é posto em xeque, é realimentado pelos surtos provocados por esses caras meio depravados que são os políticos". Na entrevista a seguir, Cohn analisa também a reforma política em debate no Congresso, o cenário pré-eleitoral e faz um balanço dos quase sete anos de governo Lula.
Valor: Desde o início do ano, o Congresso funciona em meio a uma sucessão de escândalos. Como analisa esses casos? O conceito weberiano de patrimonialismo aplica-se a essas situações, uma vez que os parlamentares alegam que não romperam o marco da legalidade?
Gabriel Cohn: O componente patrimonialista existe, sim, e permite que não se preste contas não só no sistema político como em todas as instituições da sociedade. Encarar a instituição como um local que projeta poder e influência, no qual se age como proprietário, está presente em todos os cantos, não apenas no Congresso. Trata-se de uma estrutura de poder marcada por três confusões: entre Estado e governo, entre governo e mando e entre mando e apropriação. Ainda estamos em uma sociedade de donos, com forte componente senhorial. Diria que vivemos uma espécie de democracia senhorial, um ente contraditório, mas real.
Valor: Os parlamentares reagiram à crise relançando o debate sobre a reforma política. O sr. acha que se trata de uma proposta séria ou é cortina de fumaça para esconder os escândalos?
Cohn: Nem sei se é só para os escândalos. As medidas contidas na reforma política estão, em um momento como este, contaminadas por um propósito que não é intrinsecamente político. É um propósito mais de controle, no sentido mais primário, de policiamento. Querem controlar os representantes, criar normas para que eles não cometam este ou aquele deslize. Isso é secundário, deveria derivar de um aprofundamento da vida política, que envolve muito mais do que controle nas instituições, envolve uma crescente presença dos cidadãos na determinação das políticas. E o risco que eu vejo é reagir a uma crise pensando apenas em formas de ajustes que permitam impedir certas irregularidades. Mais uma vez, afasta-se o problema do conjunto da cidadania, sugere-se que o cidadão delegue o ajuste a ser feito aos técnicos em questões institucionais.
Valor: Dois pontos da reforma são polêmicos: a introdução do voto em lista e o voto distrital ou distrital misto. Como o sr. vê esses dois sistemas? Seriam estranhos a nossa cultura política?
Cohn: Dificilmente algum arranjo político pode ser colocado como estranho a nossa política. Eles são perfeitamente assimiláveis e vêm sendo debatidos há muitos anos. Sistemas eleitorais correspondem a uma espécie de jogo com combinações e o problema é saber qual responde melhor aos interesses de determinada sociedade, em determinado momento. É a área em que a engenharia política entra em ação. No caso das listas, eu gostaria de ver partidos programáticos apresentando suas lideranças e o eleitorado votando com pleno conhecimento de causa, mas existem argumentos bastante razoáveis apontando que os mecanismos internos dos partidos perpetuariam aquilo que se tenta agora eliminar. As figuras de primeira linha permaneceriam, a burocracia partidária impediria os inovadores. Isto é um tema clássico: como fazer para trazer ao primeiro plano aqueles que têm de fato capacidade política, os realmente capazes de produção e liderança programática? Em geral, as burocracias não gostam desse tipo de figura.
Valor: Outra questão polêmica é a do financiamento público. O sr. é favorável?
Cohn: Minha primeira reação é favorável. Se for para estabelecer regras e limites, desconfio que os argumentos a favor são mais consistentes do que seus opostos.
Valor: E quais são as lacunas da proposta de reforma política? O que pode ser feito para consolidar e fortalecer a democracia brasileira?
Cohn: Temos um modelo minimalista de democracia, que centra foco no momento eleitoral e não desenvolveu as formas de atuação do cidadão, para que ele seja um agente político. A reiterada degradação do sistema político é terrivelmente perigosa, mas isso em parte se dá por que o modelo tende a se esvaziar, pois existe essa delegação perversa. É como se, por um lado, existissem os políticos e por outro, existíssemos nós. Então, uma série de coisas é atribuída aos políticos e periodicamente fica-se abalado, escandalizado com o que eles fazem, mas acaba-se concluindo que político não presta mesmo. Isso não impede que no longo prazo a qualidade da representação se eleve.
Valor: O sistema se sustenta dessa maneira?
Cohn: Pode se perpetuar. O sistema funciona muito bem, durante muito tempo, só que não ganha o caráter político, ou seja, de participação da cidadania na condução da coisa pública. A soberania popular não se realiza aí. O sistema funciona por que na realidade ele não é posto em xeque, é realimentado por esses surtos. O que assusta não é que haja mal-estar com os procedimentos no Legislativo, por que ali é onde todo mundo olha para ver esses caras meio depravados que são os políticos. O que assusta não é o mal-estar causado por essas revelações que aparecem ciclicamente, em geral respondendo às tensões e conflitos internos do parlamento. O que preocupa é que a contínua desqualificação da dimensão política seja tomada como a normalidade.
Valor: Quando um deputado diz que está se lixando para a opinião pública, essa cisão estaria sendo reforçada?
Cohn: Esse deputado só exprimiu de maneira brutal o que está dentro do sistema. Importante é que isso não significa instabilidade, não quer dizer que as instituições virão abaixo. Não vai haver um golpe depois de amanhã.
Valor: Então, a democracia resiste bem a esse tipo de escândalo?
Cohn: Sim, temos um conjunto de instituições que operam e que não sofrem uma instabilidade ameaçadora, elas têm toda condição de continuar funcionando. O problema é mais de conteúdo das instituições do que da sua operação.
Valor: O governo Lula já está no seu sétimo ano. Que balanço faz da atual gestão?
Cohn: É uma situação ótima você estar em um país com grande potencial e ter uma esquerda fraca e uma direita acomodada. O Brasil não tem uma forte imprensa de esquerda. A ausência de um projeto alternativo fez uma falta gigantesca ao Lula, por que se ele tivesse o respaldo de uma opinião pública organizada, que acenasse com alternativas para as políticas adotadas, talvez pudesse ter um pouco mais de coragem. Tenho uma irritação enorme com aquele slogan que usaram na campanha: "A esperança venceu o medo".
Valor: Por quê?
Cohn: Quem disse que o contrário de medo é esperança? Eu tenho esperança quando estou morrendo de medo. A esperança venceu o desespero, a paralisia. Para vencer o medo é melhor você sair com coragem. Eles fizeram uma opção que lhes pareceu razoável, estavam assustadíssimos na época do primeiro mandato. Alguns - eu entre eles - achavam que poderia ser tentado algo diferente, colocar em cena um tremendo projeto de desenvolvimento - uma espécie de hiper-PAC. Refazer toda infraestrutura, abrir licitações internacionais para tudo, ferrovias, portos, dizendo: "Companheiros, isto vai ser financiado com o que tiver, o que significa atrasar pagamento da dívida, um superávit primário menor. Pessoas de bom-senso me dizem que teria sido impossível. Do ponto de vista da legitimidade política, dificilmente voltará a haver circunstâncias tão favoráveis.
Valor: Naquele momento, o primeiro passo do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foi conquistar a confiança dos mercados e investidores estrangeiros. Tendo em vista os resultados, não foi uma estratégia correta?
Cohn: Acho que confiança pode ser assegurada também se você diz: "Venham sem restrições, e entrem no maior processo de obras que o mundo vai assistir. Tragam suas empresas, não vamos fazer tudo sozinhos". Mas o mercado, ou seja, os interesses financeiros, ganhou o jogo. Por outro lado, é errada a ideia de que o país permaneceu refém da grande política, do FMI, e não conseguiu fazer nada, ficou bloqueado. O fato é que não somos uma republiqueta e o atual governo aprendeu bem com isso.
Valor: O mensalão foi um marco no primeiro mandato do presidente Lula?
Cohn: O [ex-deputado federal] José Dirceu é um pouco vilão nisso tudo, mas ele trabalhou sempre como o disciplinado militante que serve para fazer jogo sujo. Qual é a lógica dele? É seguir a linha. Por que a oposição virou a mesa? Por que sentiu que, em um segundo mandato, o governo poderia avançar em reformas mais profundas. Nesse bloqueio, foi bem-sucedida, mas não na destruição do governo e do PT. Chegou-se muito bem no segundo mandato, melhor do que qualquer um esperava. Nenhuma previsão era nesse sentido, de que Lula tivesse quadros técnicos tão bons. Além da política externa brilhante. Fico pensando no meu velho mestre Fernando Henrique, em como ele deve morder os cotovelos, por que era o seu grande sonho, era por aí que ele queria avançar.
Valor: Como analisa o quadro pré-eleitoral? O governador José Serra (PSDB) tem uma confortável liderança nas pesquisas. A vitória dele significaria uma ruptura com a atual gestão?
Cohn: O que é o Serra? O Serra sempre representou, dentro do PSDB, a ala desenvolvimentista. Não seria uma diferença grande, apesar da ânsia do Serra em desmontar o que encontrar.
Valor: No campo governista, o sr. acha que a candidatura da ministra Dilma Rousseff está consolidada ou há chances de um terceiro mandato para Lula?
Cohn: Acho que o terceiro mandato está descartado. Tenho a impressão também de que o governo tem consciência de que a Dilma não é uma candidata forte e que a simples presença do presidente não é suficiente para levá-la à vitória. Por essas curiosas ironias da vida, o projeto do Lula poderá se beneficiar da tragédia pessoal da Dilma. Mulher, que terá de enfrentar mais essa [o linfoma], ela acaba retomando para si um pouco do ponto forte do Lula, que é a capacidade de enfrentar dificuldades enormes e superá-las. Aliás, fazendo um parêntese, não é uma análise minha, mas a ideia de que Lula consegue amarrar as duas pontas do processo é muito interessante: por um lado, ele é a grande referência, o líder, pai de todos, e por outro tem uma posição frágil como nós. Uma vez, o PT tentou sair com o "vote numa pessoa igual a você" e perdeu fragorosamente, por que ninguém é louco de botar no lugar uma cópia de si próprio. No caso do Lula, ele é protetor e protegido, nos protege mas precisa de nós. Do ponto de vista político, isso permite atenuar um componente daquilo que equivocadamente alguns insistem em apontar como "neopopulismo". Lula não faz uma crítica populista, não é verdade que saia por aí arregimentando as massas, nem isso se aplica aos programas sociais.
Valor: Mas ele se comunica muito diretamente com as massas. Não é um traço populista?
Cohn: Lula personaliza muito menos do que poderia. Ele é um desses acidentes históricos raros, por que, se quisesse fazer um desastre, teria todas as condições para tal. Se saísse para uma linha poderosa de apelo, no sentido de populismo clássico - "vamos trazer as massas para me apoiar" - ele liquidaria as instituições. Mas Lula não faz isso, ele tem um componente institucional forte, de alguma maneira há um compromisso democrático real. Para sorte nossa, mais ainda do que o Fernando Henrique, Lula é um verdadeiro animal político. Tem o estilo do grande político, não do político menor, e trabalha de uma maneira que reforça as instituições democráticas.
Valor: A ministra Dilma não é fundadora do PT, possui uma trajetória diferenciada entre os principais líderes do partido. O sr. acha que a candidatura dela representaria mais a continuidade do chamado "lulismo"?
Cohn: Não sei se é lulismo, quase diria que é da vertente tecnocrática do atual governo. Seria a vitória do PAC, de um projeto desenvolvimentista. Talvez ela representasse, numa eventual vitória, algo que não se distinguisse tanto de uma vitória de Serra, admitindo-se sua candidatura. Talvez os dois estejam muito mais próximos do que pareça. Há cada vez mais uma convergência, os cínicos chamariam de convergência para o centro.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A democracia brasileira sobrevive aos escândalos promovidos por parlamentares que se "lixam" para a opinião pública, o terceiro mandato do presidente Lula está descartado e a candidatura presidencial de Dilma Rousseff poderá beneficiar-se da doença da ministra. É o que pensa o sociólogo Gabriel Cohn, dedicado estudioso da obra de Max Weber, que se aposentou no fim do ano passado no topo da carreira universitária - era professor titular e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Analista irônico e coloquial, Cohn despediu-se da célebre faculdade usando uma frase de Samuel Johnson: "Nada deixa um homem mais lúcido do que a certeza de que será enforcado na manhã seguinte".
Apesar de mostrar-se preocupado com a "desqualificação da dimensão política" que está na raiz da crise do Legislativo federal, Cohn observa que "o sistema funciona porque não é posto em xeque, é realimentado pelos surtos provocados por esses caras meio depravados que são os políticos". Na entrevista a seguir, Cohn analisa também a reforma política em debate no Congresso, o cenário pré-eleitoral e faz um balanço dos quase sete anos de governo Lula.
Valor: Desde o início do ano, o Congresso funciona em meio a uma sucessão de escândalos. Como analisa esses casos? O conceito weberiano de patrimonialismo aplica-se a essas situações, uma vez que os parlamentares alegam que não romperam o marco da legalidade?
Gabriel Cohn: O componente patrimonialista existe, sim, e permite que não se preste contas não só no sistema político como em todas as instituições da sociedade. Encarar a instituição como um local que projeta poder e influência, no qual se age como proprietário, está presente em todos os cantos, não apenas no Congresso. Trata-se de uma estrutura de poder marcada por três confusões: entre Estado e governo, entre governo e mando e entre mando e apropriação. Ainda estamos em uma sociedade de donos, com forte componente senhorial. Diria que vivemos uma espécie de democracia senhorial, um ente contraditório, mas real.
Valor: Os parlamentares reagiram à crise relançando o debate sobre a reforma política. O sr. acha que se trata de uma proposta séria ou é cortina de fumaça para esconder os escândalos?
Cohn: Nem sei se é só para os escândalos. As medidas contidas na reforma política estão, em um momento como este, contaminadas por um propósito que não é intrinsecamente político. É um propósito mais de controle, no sentido mais primário, de policiamento. Querem controlar os representantes, criar normas para que eles não cometam este ou aquele deslize. Isso é secundário, deveria derivar de um aprofundamento da vida política, que envolve muito mais do que controle nas instituições, envolve uma crescente presença dos cidadãos na determinação das políticas. E o risco que eu vejo é reagir a uma crise pensando apenas em formas de ajustes que permitam impedir certas irregularidades. Mais uma vez, afasta-se o problema do conjunto da cidadania, sugere-se que o cidadão delegue o ajuste a ser feito aos técnicos em questões institucionais.
Valor: Dois pontos da reforma são polêmicos: a introdução do voto em lista e o voto distrital ou distrital misto. Como o sr. vê esses dois sistemas? Seriam estranhos a nossa cultura política?
Cohn: Dificilmente algum arranjo político pode ser colocado como estranho a nossa política. Eles são perfeitamente assimiláveis e vêm sendo debatidos há muitos anos. Sistemas eleitorais correspondem a uma espécie de jogo com combinações e o problema é saber qual responde melhor aos interesses de determinada sociedade, em determinado momento. É a área em que a engenharia política entra em ação. No caso das listas, eu gostaria de ver partidos programáticos apresentando suas lideranças e o eleitorado votando com pleno conhecimento de causa, mas existem argumentos bastante razoáveis apontando que os mecanismos internos dos partidos perpetuariam aquilo que se tenta agora eliminar. As figuras de primeira linha permaneceriam, a burocracia partidária impediria os inovadores. Isto é um tema clássico: como fazer para trazer ao primeiro plano aqueles que têm de fato capacidade política, os realmente capazes de produção e liderança programática? Em geral, as burocracias não gostam desse tipo de figura.
Valor: Outra questão polêmica é a do financiamento público. O sr. é favorável?
Cohn: Minha primeira reação é favorável. Se for para estabelecer regras e limites, desconfio que os argumentos a favor são mais consistentes do que seus opostos.
Valor: E quais são as lacunas da proposta de reforma política? O que pode ser feito para consolidar e fortalecer a democracia brasileira?
Cohn: Temos um modelo minimalista de democracia, que centra foco no momento eleitoral e não desenvolveu as formas de atuação do cidadão, para que ele seja um agente político. A reiterada degradação do sistema político é terrivelmente perigosa, mas isso em parte se dá por que o modelo tende a se esvaziar, pois existe essa delegação perversa. É como se, por um lado, existissem os políticos e por outro, existíssemos nós. Então, uma série de coisas é atribuída aos políticos e periodicamente fica-se abalado, escandalizado com o que eles fazem, mas acaba-se concluindo que político não presta mesmo. Isso não impede que no longo prazo a qualidade da representação se eleve.
Valor: O sistema se sustenta dessa maneira?
Cohn: Pode se perpetuar. O sistema funciona muito bem, durante muito tempo, só que não ganha o caráter político, ou seja, de participação da cidadania na condução da coisa pública. A soberania popular não se realiza aí. O sistema funciona por que na realidade ele não é posto em xeque, é realimentado por esses surtos. O que assusta não é que haja mal-estar com os procedimentos no Legislativo, por que ali é onde todo mundo olha para ver esses caras meio depravados que são os políticos. O que assusta não é o mal-estar causado por essas revelações que aparecem ciclicamente, em geral respondendo às tensões e conflitos internos do parlamento. O que preocupa é que a contínua desqualificação da dimensão política seja tomada como a normalidade.
Valor: Quando um deputado diz que está se lixando para a opinião pública, essa cisão estaria sendo reforçada?
Cohn: Esse deputado só exprimiu de maneira brutal o que está dentro do sistema. Importante é que isso não significa instabilidade, não quer dizer que as instituições virão abaixo. Não vai haver um golpe depois de amanhã.
Valor: Então, a democracia resiste bem a esse tipo de escândalo?
Cohn: Sim, temos um conjunto de instituições que operam e que não sofrem uma instabilidade ameaçadora, elas têm toda condição de continuar funcionando. O problema é mais de conteúdo das instituições do que da sua operação.
Valor: O governo Lula já está no seu sétimo ano. Que balanço faz da atual gestão?
Cohn: É uma situação ótima você estar em um país com grande potencial e ter uma esquerda fraca e uma direita acomodada. O Brasil não tem uma forte imprensa de esquerda. A ausência de um projeto alternativo fez uma falta gigantesca ao Lula, por que se ele tivesse o respaldo de uma opinião pública organizada, que acenasse com alternativas para as políticas adotadas, talvez pudesse ter um pouco mais de coragem. Tenho uma irritação enorme com aquele slogan que usaram na campanha: "A esperança venceu o medo".
Valor: Por quê?
Cohn: Quem disse que o contrário de medo é esperança? Eu tenho esperança quando estou morrendo de medo. A esperança venceu o desespero, a paralisia. Para vencer o medo é melhor você sair com coragem. Eles fizeram uma opção que lhes pareceu razoável, estavam assustadíssimos na época do primeiro mandato. Alguns - eu entre eles - achavam que poderia ser tentado algo diferente, colocar em cena um tremendo projeto de desenvolvimento - uma espécie de hiper-PAC. Refazer toda infraestrutura, abrir licitações internacionais para tudo, ferrovias, portos, dizendo: "Companheiros, isto vai ser financiado com o que tiver, o que significa atrasar pagamento da dívida, um superávit primário menor. Pessoas de bom-senso me dizem que teria sido impossível. Do ponto de vista da legitimidade política, dificilmente voltará a haver circunstâncias tão favoráveis.
Valor: Naquele momento, o primeiro passo do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foi conquistar a confiança dos mercados e investidores estrangeiros. Tendo em vista os resultados, não foi uma estratégia correta?
Cohn: Acho que confiança pode ser assegurada também se você diz: "Venham sem restrições, e entrem no maior processo de obras que o mundo vai assistir. Tragam suas empresas, não vamos fazer tudo sozinhos". Mas o mercado, ou seja, os interesses financeiros, ganhou o jogo. Por outro lado, é errada a ideia de que o país permaneceu refém da grande política, do FMI, e não conseguiu fazer nada, ficou bloqueado. O fato é que não somos uma republiqueta e o atual governo aprendeu bem com isso.
Valor: O mensalão foi um marco no primeiro mandato do presidente Lula?
Cohn: O [ex-deputado federal] José Dirceu é um pouco vilão nisso tudo, mas ele trabalhou sempre como o disciplinado militante que serve para fazer jogo sujo. Qual é a lógica dele? É seguir a linha. Por que a oposição virou a mesa? Por que sentiu que, em um segundo mandato, o governo poderia avançar em reformas mais profundas. Nesse bloqueio, foi bem-sucedida, mas não na destruição do governo e do PT. Chegou-se muito bem no segundo mandato, melhor do que qualquer um esperava. Nenhuma previsão era nesse sentido, de que Lula tivesse quadros técnicos tão bons. Além da política externa brilhante. Fico pensando no meu velho mestre Fernando Henrique, em como ele deve morder os cotovelos, por que era o seu grande sonho, era por aí que ele queria avançar.
Valor: Como analisa o quadro pré-eleitoral? O governador José Serra (PSDB) tem uma confortável liderança nas pesquisas. A vitória dele significaria uma ruptura com a atual gestão?
Cohn: O que é o Serra? O Serra sempre representou, dentro do PSDB, a ala desenvolvimentista. Não seria uma diferença grande, apesar da ânsia do Serra em desmontar o que encontrar.
Valor: No campo governista, o sr. acha que a candidatura da ministra Dilma Rousseff está consolidada ou há chances de um terceiro mandato para Lula?
Cohn: Acho que o terceiro mandato está descartado. Tenho a impressão também de que o governo tem consciência de que a Dilma não é uma candidata forte e que a simples presença do presidente não é suficiente para levá-la à vitória. Por essas curiosas ironias da vida, o projeto do Lula poderá se beneficiar da tragédia pessoal da Dilma. Mulher, que terá de enfrentar mais essa [o linfoma], ela acaba retomando para si um pouco do ponto forte do Lula, que é a capacidade de enfrentar dificuldades enormes e superá-las. Aliás, fazendo um parêntese, não é uma análise minha, mas a ideia de que Lula consegue amarrar as duas pontas do processo é muito interessante: por um lado, ele é a grande referência, o líder, pai de todos, e por outro tem uma posição frágil como nós. Uma vez, o PT tentou sair com o "vote numa pessoa igual a você" e perdeu fragorosamente, por que ninguém é louco de botar no lugar uma cópia de si próprio. No caso do Lula, ele é protetor e protegido, nos protege mas precisa de nós. Do ponto de vista político, isso permite atenuar um componente daquilo que equivocadamente alguns insistem em apontar como "neopopulismo". Lula não faz uma crítica populista, não é verdade que saia por aí arregimentando as massas, nem isso se aplica aos programas sociais.
Valor: Mas ele se comunica muito diretamente com as massas. Não é um traço populista?
Cohn: Lula personaliza muito menos do que poderia. Ele é um desses acidentes históricos raros, por que, se quisesse fazer um desastre, teria todas as condições para tal. Se saísse para uma linha poderosa de apelo, no sentido de populismo clássico - "vamos trazer as massas para me apoiar" - ele liquidaria as instituições. Mas Lula não faz isso, ele tem um componente institucional forte, de alguma maneira há um compromisso democrático real. Para sorte nossa, mais ainda do que o Fernando Henrique, Lula é um verdadeiro animal político. Tem o estilo do grande político, não do político menor, e trabalha de uma maneira que reforça as instituições democráticas.
Valor: A ministra Dilma não é fundadora do PT, possui uma trajetória diferenciada entre os principais líderes do partido. O sr. acha que a candidatura dela representaria mais a continuidade do chamado "lulismo"?
Cohn: Não sei se é lulismo, quase diria que é da vertente tecnocrática do atual governo. Seria a vitória do PAC, de um projeto desenvolvimentista. Talvez ela representasse, numa eventual vitória, algo que não se distinguisse tanto de uma vitória de Serra, admitindo-se sua candidatura. Talvez os dois estejam muito mais próximos do que pareça. Há cada vez mais uma convergência, os cínicos chamariam de convergência para o centro.
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