DEU NO VALOR ECONÔMICO
Quem circula na parte mais abastada de Belo Horizonte, dificilmente se depara com um galpão marcado pelo logotipo azul e amarelo informando que ali está uma loja da rede "BH Supermercados". A trajetória desta empresa exemplifica um pouco algumas mudanças no país nos últimos anos.
Voltada para a chamada "classe C", categoria que reúne as famílias com renda mensal entre dois e cinco salários mínimos, a rede, fundada em 1996, tinha 25 lojas em 2004, 68 lojas em 2006 e 86 pontos de venda em 2008, quando finalmente parou a expansão. Em junho do ano passado, segundo balanço da Associação Mineira dos Supermercados, atingiu a marca de R$ 1 bilhão de faturamento anual. Sem vender um iogurte sequer para a classe média alta.
Entre 2004 e 2008, um imenso contingente populacional elevou o padrão de consumo, mantendo-se em bairros marcados pela pobreza. É a nova classe média com poucos anos de estudo, mas que começa a ser estudada, em um espectro amplo do pensamento acadêmico. Este ano, já está nas livrarias o livro "A Classe Média Brasileira", de Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, dois cientistas políticos identificados com a oposição; e em breve será publicado "Lulismo-Da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira", do sociólogo Rudá Ricci, um ex-petista articulador de ONGs na área da educação.
São dois polos opostos no pensamento, que convergem na constatação de que cresceu a população nesta faixa de renda, que passou a constituir a maioria absoluta da população. Divergem os autores na análise das implicações políticas deste crescimento. Ricci afirma que a ascensão desta nova classe média consolida a dissociação entre petismo - o primeiro ainda vinculado a movimentos sociais - e o lulismo, um movimento que aposta no fortalecimento do Estado como fomentador de um novo padrão de consumo, e não de transformações radicais na sociedade.
Neste ponto, o sociólogo aproxima-se do diagnóstico do lulismo feito pelo ex-porta-voz da presidência e cientista político André Singer, em seu artigo "Raízes ideológicas e sociais do lulismo", publicado no final do ano passado pela revista do CEBRAP. A diferença essencial é que Singer acredita que Lula dissociou-se do petismo, reelegendo-se em 2006, ao atender aos padrões conservadores de pensamento das classes mais pobres, que o derrotaram em 1989,1994 e 1998, jogando ao mar a classe média ancorada em sindicatos, universidades e funcionalismo. Já Ricci vê no crescimento da classe C o combustível para esta dissociação.
A classe C, segundo Ricci, mora em lugares pobres e mimetiza o consumo das classes mais ricas. É refratária à leitura, mas busca a Internet. Religiosa e conservadora em questões comportamentais, é totalmente pragmática nas questões políticas. Ao mirar neste público, que busca uma modernização conservadora, Lula torna a esquerda petista uma mera caudatária do centrismo.
Desde o início de seu governo, o presidente foi alienando os movimentos sociais e ícones da esquerda do poder. Ricci lembra de Frei Betto a Marina Silva, passando por Heloisa Helena, Cristovam Buarque, Fernando Gabeira, Chico de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho e figuras menos conhecidas como o militante católico Ivo Poletto, ao mesmo tempo em que consolidou alianças conservadoras. Mas, por meio de recursos estatais e concessões do ponto de vista formal, desarticulou qualquer maré contrária dos antigos aliados. Ricci cita o Plano Nacional de Direitos Humanos e a Consolidação das Leis Sociais como duas iniciativas que blindam o governo de ofensivas pela esquerda.
O cientista político Amaury de Souza não está tão certo que o crescimento da classe C tenha alimentado a reeleição em 2006. Lembra que as pesquisas da época mostram que a fonte de votos lulista provinha da população que ganhava até dois mínimos mensais. Na classe C, havia uma divisão entre Lula e Alckmin, opinião também de Singer. Esta população, de acordo com Souza, está mais próxima da angústia do que da euforia.
Dados de uma pesquisa de opinião encomendada por Souza e Lamounier mostram que 50% dos integrantes da classe C declaram estar endividados e 64% afirmaram ter cortado gastos em 2008, antes mesmo da crise econômica global que chegou aos jornais em setembro e à economia real algumas semanas mais tarde.
Esta classe média não atribui a Lula seus problemas financeiros, mas a instabilidade econômica a torna especialmente conservadora. Teme a inflação e começa a sentir o peso dos impostos ao sair das faixas de isenção de tributos como o de Renda e o IPTU. Pelo forte peso evangélico em sua formação, tende a ser suscetível a um discurso pró-família, contra aborto, casamento homossexual e vida afetiva heterodoxa. A conclusão de Souza é que a conformação social que deu a Lula um sucesso retumbante em 2006 mudou. E a nova classe média está longe de ser um feudo seu. Ainda será disputada nas urnas.
César Felício é correspondente em Belo Horizonte. A titular da coluna, Maria Cristina Fernandes, está em férias
Quem circula na parte mais abastada de Belo Horizonte, dificilmente se depara com um galpão marcado pelo logotipo azul e amarelo informando que ali está uma loja da rede "BH Supermercados". A trajetória desta empresa exemplifica um pouco algumas mudanças no país nos últimos anos.
Voltada para a chamada "classe C", categoria que reúne as famílias com renda mensal entre dois e cinco salários mínimos, a rede, fundada em 1996, tinha 25 lojas em 2004, 68 lojas em 2006 e 86 pontos de venda em 2008, quando finalmente parou a expansão. Em junho do ano passado, segundo balanço da Associação Mineira dos Supermercados, atingiu a marca de R$ 1 bilhão de faturamento anual. Sem vender um iogurte sequer para a classe média alta.
Entre 2004 e 2008, um imenso contingente populacional elevou o padrão de consumo, mantendo-se em bairros marcados pela pobreza. É a nova classe média com poucos anos de estudo, mas que começa a ser estudada, em um espectro amplo do pensamento acadêmico. Este ano, já está nas livrarias o livro "A Classe Média Brasileira", de Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, dois cientistas políticos identificados com a oposição; e em breve será publicado "Lulismo-Da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira", do sociólogo Rudá Ricci, um ex-petista articulador de ONGs na área da educação.
São dois polos opostos no pensamento, que convergem na constatação de que cresceu a população nesta faixa de renda, que passou a constituir a maioria absoluta da população. Divergem os autores na análise das implicações políticas deste crescimento. Ricci afirma que a ascensão desta nova classe média consolida a dissociação entre petismo - o primeiro ainda vinculado a movimentos sociais - e o lulismo, um movimento que aposta no fortalecimento do Estado como fomentador de um novo padrão de consumo, e não de transformações radicais na sociedade.
Neste ponto, o sociólogo aproxima-se do diagnóstico do lulismo feito pelo ex-porta-voz da presidência e cientista político André Singer, em seu artigo "Raízes ideológicas e sociais do lulismo", publicado no final do ano passado pela revista do CEBRAP. A diferença essencial é que Singer acredita que Lula dissociou-se do petismo, reelegendo-se em 2006, ao atender aos padrões conservadores de pensamento das classes mais pobres, que o derrotaram em 1989,1994 e 1998, jogando ao mar a classe média ancorada em sindicatos, universidades e funcionalismo. Já Ricci vê no crescimento da classe C o combustível para esta dissociação.
A classe C, segundo Ricci, mora em lugares pobres e mimetiza o consumo das classes mais ricas. É refratária à leitura, mas busca a Internet. Religiosa e conservadora em questões comportamentais, é totalmente pragmática nas questões políticas. Ao mirar neste público, que busca uma modernização conservadora, Lula torna a esquerda petista uma mera caudatária do centrismo.
Desde o início de seu governo, o presidente foi alienando os movimentos sociais e ícones da esquerda do poder. Ricci lembra de Frei Betto a Marina Silva, passando por Heloisa Helena, Cristovam Buarque, Fernando Gabeira, Chico de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho e figuras menos conhecidas como o militante católico Ivo Poletto, ao mesmo tempo em que consolidou alianças conservadoras. Mas, por meio de recursos estatais e concessões do ponto de vista formal, desarticulou qualquer maré contrária dos antigos aliados. Ricci cita o Plano Nacional de Direitos Humanos e a Consolidação das Leis Sociais como duas iniciativas que blindam o governo de ofensivas pela esquerda.
O cientista político Amaury de Souza não está tão certo que o crescimento da classe C tenha alimentado a reeleição em 2006. Lembra que as pesquisas da época mostram que a fonte de votos lulista provinha da população que ganhava até dois mínimos mensais. Na classe C, havia uma divisão entre Lula e Alckmin, opinião também de Singer. Esta população, de acordo com Souza, está mais próxima da angústia do que da euforia.
Dados de uma pesquisa de opinião encomendada por Souza e Lamounier mostram que 50% dos integrantes da classe C declaram estar endividados e 64% afirmaram ter cortado gastos em 2008, antes mesmo da crise econômica global que chegou aos jornais em setembro e à economia real algumas semanas mais tarde.
Esta classe média não atribui a Lula seus problemas financeiros, mas a instabilidade econômica a torna especialmente conservadora. Teme a inflação e começa a sentir o peso dos impostos ao sair das faixas de isenção de tributos como o de Renda e o IPTU. Pelo forte peso evangélico em sua formação, tende a ser suscetível a um discurso pró-família, contra aborto, casamento homossexual e vida afetiva heterodoxa. A conclusão de Souza é que a conformação social que deu a Lula um sucesso retumbante em 2006 mudou. E a nova classe média está longe de ser um feudo seu. Ainda será disputada nas urnas.
César Felício é correspondente em Belo Horizonte. A titular da coluna, Maria Cristina Fernandes, está em férias
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