DEU NO VALOR ECONÔMICO
Mercados financeiros, países ricos e o FMI pressionam para que o país faça o ajuste ao invés de reestruturar a sua dívida
Depois da Grécia, o que? A Hungria? Ou as perspectivas de baixo crescimento para a Europa? Ou a decepção com a retomada americana? Ou, ainda a Grécia? Os mercados financeiros internacionais são sempre nervosos e instáveis - tristes em alguns momentos, eufóricos em outros, mas sempre em meio a uma dialética de racionalidade e irracionalidade. Nós, economistas, ainda que com um ar mais "científico", cometemos os mesmos pecados. Diante disso, políticos e empresários - os agentes na economia real - perplexos, não sabem o que fazer. Investir ou não investir? Continuar com a política fiscal expansiva, ou já está na hora de cuidar da dívida pública elevada de cada Estado e da dívida externa eventualmente elevada de cada país? E perguntam: estaria a crise em forma de W começando?
Com o problema da Grécia houve de fato uma ameaça de a crise retornar com força. A demora da Alemanha contribuiu para agravar o problema. Entretanto, afinal o Banco Central Europeu (BCE) e aquele país fizeram o que se esperava deles, garantiram a dívida da Grécia e, mais amplamente, a dívida dos demais países do euro e, embora não ficasse tudo resolvido, a crise amainou. Todos sabem que, estruturalmente, o problema da Grécia não está resolvido porque, mesmo que cumpra fielmente seu programa de ajuste fiscal e seu PIB caia cerca de 3% a 4% nos dois próximos anos, no final desses dois anos, sua dívida pública em relação ao PIB ainda será de 150%.
Diante de um quadro desse tipo, volta a pergunta sobre uma possível saída da Grécia do euro, mas isto é muito pouco provável. A vantagem de ter uma moeda que começaria sua história já desvalorizada em relação ao euro não compensa os riscos de ficar fora da proteção do sistema euro. Existe, entretanto, a possibilidade de reestruturar a dívida pública dentro do euro. É a melhor coisa que a Grécia teria a fazer dado que sua situação é de insolvência, pois mesmo que a taxa de juros sobre seus títulos volte a níveis razoáveis e nesse nível se estabilize, ela não terá condições de honrar seus compromissos financeiros e voltar a crescer.
Mas um leitor poderia me perguntar: o senhor então está propondo um "calote"? Não, meu amigo, estou sugerindo que a Grécia faça uma "reestruturação" com desconto. Que é a mesma coisa que um calote e algo muito diferente. É a mesma coisa porque para o credor o resultado é o mesmo: recebe apenas parte de seu crédito. É muito diferente, porque na expressão calote existe um tom pejorativo que sugere um devedor irresponsável. Já reestruturação tem uma conotação mais amena, porque reparte a culpa entre o devedor e os credores, e principalmente porque afinal todos ou a grande maioria compreendem que era a única solução racional para o problema dada a insolvência do Estado grego.
Quando uma crise de dívida soberana é resolvida por um "calote" ela é geralmente mal resolvida porque isso significa que não havia insolvência, ou que os mercados financeiros não aceitaram o diagnóstico de insolvência do país devedor, e julgam que ele agiu de má fé. Já quando temos uma reestruturação, embora ela seja em princípio unilateral ou quase unilateral, o problema se resolve muito melhor, porque, afinal, o que ela faz é sancionar uma perda dos credores que mercados financeiros razoavelmente eficientes já devem ter antecipado pela precificação dos créditos com desconto.
Os governos de países cujo Estado se tornou insolvente têm medo de fazer uma reestruturação porque temem que seja vista como calote. Compreendo esse medo. Os mercados financeiros, os governos dos países ricos e o Fundo Monetário Internacional fazem sempre o que se espera do "establishment": pressionam para que o país faça o ajuste ao invés de reestruturar a dívida. E sempre ameaçam que a ação será considerada um calote e que, afinal, o país será obrigado a se curvar dada a força dos credores ou a da lei internacional.
Se o quadro não for de insolvência, mas de liquidez - de mero desequilíbrio entre vencimentos e receitas - essas ameaças poderão valer. No caso, porém, como é o da Grécia hoje, em que o quadro de insolvência esteja claro, essas ameaças são antes retóricas do que reais. Os mercados financeiros já sabem que a reestruturação é necessária. Sabem porque seus economistas e seus operadores viram os números, e sabem o que eles significam. Sabem também porque economistas, como Martin Wolf, e publicações econômicas que eles respeitam, como, por exemplo, "The Economist", já afirmaram que essa será provavelmente a solução mais adequada para a crise grega. Esses economistas e essas publicações constituem uma espécie de "opinião pública" financeira. Que, como toda opinião pública, pode estar errada, mas não é o que importa - o importante é que ações realizadas de acordo com ela ganham legitimidade imediata.
Não há razão para o mundo voltar a mergulhar na crise. Ela ainda custa muito caro aos países ricos, mas foi bem enfrentada por seus governos e suas economias estão a caminho da recuperação. No percurso, crises como a da Grécia podem ocorrer, mas se seu governo tiver a coragem e a determinação de fazer o que precisa ser feito, os demais governos e o próprio mercado financeiro compreenderão, e esse foco de crise estará brevemente neutralizado, ao invés de ficar supurando por muito tempo.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas/São Paulo.
Mercados financeiros, países ricos e o FMI pressionam para que o país faça o ajuste ao invés de reestruturar a sua dívida
Depois da Grécia, o que? A Hungria? Ou as perspectivas de baixo crescimento para a Europa? Ou a decepção com a retomada americana? Ou, ainda a Grécia? Os mercados financeiros internacionais são sempre nervosos e instáveis - tristes em alguns momentos, eufóricos em outros, mas sempre em meio a uma dialética de racionalidade e irracionalidade. Nós, economistas, ainda que com um ar mais "científico", cometemos os mesmos pecados. Diante disso, políticos e empresários - os agentes na economia real - perplexos, não sabem o que fazer. Investir ou não investir? Continuar com a política fiscal expansiva, ou já está na hora de cuidar da dívida pública elevada de cada Estado e da dívida externa eventualmente elevada de cada país? E perguntam: estaria a crise em forma de W começando?
Com o problema da Grécia houve de fato uma ameaça de a crise retornar com força. A demora da Alemanha contribuiu para agravar o problema. Entretanto, afinal o Banco Central Europeu (BCE) e aquele país fizeram o que se esperava deles, garantiram a dívida da Grécia e, mais amplamente, a dívida dos demais países do euro e, embora não ficasse tudo resolvido, a crise amainou. Todos sabem que, estruturalmente, o problema da Grécia não está resolvido porque, mesmo que cumpra fielmente seu programa de ajuste fiscal e seu PIB caia cerca de 3% a 4% nos dois próximos anos, no final desses dois anos, sua dívida pública em relação ao PIB ainda será de 150%.
Diante de um quadro desse tipo, volta a pergunta sobre uma possível saída da Grécia do euro, mas isto é muito pouco provável. A vantagem de ter uma moeda que começaria sua história já desvalorizada em relação ao euro não compensa os riscos de ficar fora da proteção do sistema euro. Existe, entretanto, a possibilidade de reestruturar a dívida pública dentro do euro. É a melhor coisa que a Grécia teria a fazer dado que sua situação é de insolvência, pois mesmo que a taxa de juros sobre seus títulos volte a níveis razoáveis e nesse nível se estabilize, ela não terá condições de honrar seus compromissos financeiros e voltar a crescer.
Mas um leitor poderia me perguntar: o senhor então está propondo um "calote"? Não, meu amigo, estou sugerindo que a Grécia faça uma "reestruturação" com desconto. Que é a mesma coisa que um calote e algo muito diferente. É a mesma coisa porque para o credor o resultado é o mesmo: recebe apenas parte de seu crédito. É muito diferente, porque na expressão calote existe um tom pejorativo que sugere um devedor irresponsável. Já reestruturação tem uma conotação mais amena, porque reparte a culpa entre o devedor e os credores, e principalmente porque afinal todos ou a grande maioria compreendem que era a única solução racional para o problema dada a insolvência do Estado grego.
Quando uma crise de dívida soberana é resolvida por um "calote" ela é geralmente mal resolvida porque isso significa que não havia insolvência, ou que os mercados financeiros não aceitaram o diagnóstico de insolvência do país devedor, e julgam que ele agiu de má fé. Já quando temos uma reestruturação, embora ela seja em princípio unilateral ou quase unilateral, o problema se resolve muito melhor, porque, afinal, o que ela faz é sancionar uma perda dos credores que mercados financeiros razoavelmente eficientes já devem ter antecipado pela precificação dos créditos com desconto.
Os governos de países cujo Estado se tornou insolvente têm medo de fazer uma reestruturação porque temem que seja vista como calote. Compreendo esse medo. Os mercados financeiros, os governos dos países ricos e o Fundo Monetário Internacional fazem sempre o que se espera do "establishment": pressionam para que o país faça o ajuste ao invés de reestruturar a dívida. E sempre ameaçam que a ação será considerada um calote e que, afinal, o país será obrigado a se curvar dada a força dos credores ou a da lei internacional.
Se o quadro não for de insolvência, mas de liquidez - de mero desequilíbrio entre vencimentos e receitas - essas ameaças poderão valer. No caso, porém, como é o da Grécia hoje, em que o quadro de insolvência esteja claro, essas ameaças são antes retóricas do que reais. Os mercados financeiros já sabem que a reestruturação é necessária. Sabem porque seus economistas e seus operadores viram os números, e sabem o que eles significam. Sabem também porque economistas, como Martin Wolf, e publicações econômicas que eles respeitam, como, por exemplo, "The Economist", já afirmaram que essa será provavelmente a solução mais adequada para a crise grega. Esses economistas e essas publicações constituem uma espécie de "opinião pública" financeira. Que, como toda opinião pública, pode estar errada, mas não é o que importa - o importante é que ações realizadas de acordo com ela ganham legitimidade imediata.
Não há razão para o mundo voltar a mergulhar na crise. Ela ainda custa muito caro aos países ricos, mas foi bem enfrentada por seus governos e suas economias estão a caminho da recuperação. No percurso, crises como a da Grécia podem ocorrer, mas se seu governo tiver a coragem e a determinação de fazer o que precisa ser feito, os demais governos e o próprio mercado financeiro compreenderão, e esse foco de crise estará brevemente neutralizado, ao invés de ficar supurando por muito tempo.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas/São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário