DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Fernando Henrique vai fazer a conferência de abertura da Festa Literária de Paraty este ano em homenagem a Gilberto Freyre. Esta conferência está atrasada mais de vinte anos. Na verdade, em início dos anos oitenta, quando do Seminário de Tropicologia, Gilberto convidou Fernando Henrique para ser um dos conferencistas, em data que lhe aprouvesse. Fernando Henrique nunca veio. Naquela época Gilberto, com mais de 80 anos, se preocupava com o futuro de sua obra. Queria ampliar a base do reconhecimento intelectual, que fosse a mais ampla possível, mesmo entre os contrários, ou quase contrários, ou não aficionados, diria ele.
É nesta época que aceita e vem outro grande intérprete do Brasil, Raymundo Faoro, falar no mesmo seminário. É desta época também que Gilberto começa, bem a seu estilo, a dar mais ênfase, a alardear, talvez, que o melhor dos prefácios de Casa Grande e Senzala é o de Darcy Ribeiro para a edição venezuelana. Não somente porque é uma explosão de inteligência, mas também por ser paradigma de grande generosidade entre contrários, própria do verdadeiro cientista social que Darcy sempre foi, ambos Gilberto e Darcy unidos pelo pés encharcados de Brasil. Darcy, cientista de matriz marxista, esquerdista capaz de superar os limites das paixões ideológicas e políticas. Um libertário de si próprio. A vinda, que não veio, de Fernando Henrique, seria um momento importante na estratégia da pluralização da base de reconhecimento de Gilberto. Sobretudo em seu próprio país.
Veio, porém o importante antropólogo sociólogo Luiz Fernando Baeta Neves, que a certa altura afirmou, na sala cheia, que o importante para Gilberto Freyre, ele de corpo e atenção presentes, não era ter mais homenagens, tanto já as tinha. O importante era ter seguidores. Jovens pesquisadores, cientistas sociais dos mais diversos matizes capazes de continuar, aperfeiçoar, modernizar, contradizer dialeticamente, buscando novas sínteses e olhares de sua pioneira interpretação do Brasil.
Gilberto prestava toda atenção, curvo assentado na cadeira como de seu feitio, cabeleira branca, braços apoiados e longos dedos entrelaçados, com ouro anel fidalgo, saboreando a fecunda e ousada tese de Luiz Felipe. Quando na sala, houve quem em voz alta, e com autoridade familiar, logo interrompesse o conferencista: Gilberto precisa sim de muito mais homenagens. Foi um lapso silêncio constrangedor. Gilberto continuou impávido.
As homenagens passam, os seguidores continuam. Desdobram-se, revivem e vivificam. Homenagens enchem vitrines, currículos e criam museus. Os seguidores fazem a pauta do futuro. A glória antecipada de um intelectual é experimentar ainda vivo a sensação de que seu pensamento, sua inovação, seu insight, seu esforço físico e mental vai se continuar e se desdobrar para além de si. Seja nas instituições que ajudou a criar seja nas ideias que trouxe às gerações. Homenagem é efeméride, isto é, efêmero, dura um dia só. Voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar.
Sua ambição aos oitenta anos era além das ressurgências e insurgências, a permanência diante de sua pressentida iminente e definitiva ausência. Gilberto bem sabia. O intelectual, o pesquisador, o cientista social, sua ambição não era mais a insurgência ou ressurgência. Era a permanência. A presença de sua ausência, diria Proust.
Fernando Henrique sempre integrou a marxista USP. Mas Gilberto bem o poupou. Em seu novo livro De Menino a Homem, é explicito. Critica os cientistas sociais de São Paulo por seus submarxismos sectariamente ideológicos. Mas ressalva: O que de modo algum inclui um marxista do tipo de Fernando Henrique Cardoso. Gilberto provavelmente intuiu e distinguiu o marxismo democrata e pacificador de Fernando Henrique, formador de gerações, encaminhador de nações e de mundos, dos submarxismos acadêmicos. Não poderia nunca desdialogar com ele.
Fernando Henrique retribuiu vários dos acenos de Gilberto em sua direção. Acabou por escrever o prefácio da 47ª edição de Casa Grande e Senzala, com o sugestivo título de Um Livro Perene. Edson Nery da Fonseca, responsável, tudo confirma, pelas excelentes notas bibliográficas, ou melhor, autobiobibliográficas. Notas biobibliográficas de Edson sobre Gilberto no fundo são notas autobiobibliográficas tanto que juntos são, foram e sempre serão.
Em Paraty, nesta semana, teremos um momento de ressurgência para usar palavra tão cara a Gilberto. Resta saber se teremos os de convergência, que ele tanto ainda espera. Olhares vivos, de lá a espiar, como menino quase moleque.
» Joaquim Falcão é professor da Escola de Direito da FGV-RJ
Fernando Henrique vai fazer a conferência de abertura da Festa Literária de Paraty este ano em homenagem a Gilberto Freyre. Esta conferência está atrasada mais de vinte anos. Na verdade, em início dos anos oitenta, quando do Seminário de Tropicologia, Gilberto convidou Fernando Henrique para ser um dos conferencistas, em data que lhe aprouvesse. Fernando Henrique nunca veio. Naquela época Gilberto, com mais de 80 anos, se preocupava com o futuro de sua obra. Queria ampliar a base do reconhecimento intelectual, que fosse a mais ampla possível, mesmo entre os contrários, ou quase contrários, ou não aficionados, diria ele.
É nesta época que aceita e vem outro grande intérprete do Brasil, Raymundo Faoro, falar no mesmo seminário. É desta época também que Gilberto começa, bem a seu estilo, a dar mais ênfase, a alardear, talvez, que o melhor dos prefácios de Casa Grande e Senzala é o de Darcy Ribeiro para a edição venezuelana. Não somente porque é uma explosão de inteligência, mas também por ser paradigma de grande generosidade entre contrários, própria do verdadeiro cientista social que Darcy sempre foi, ambos Gilberto e Darcy unidos pelo pés encharcados de Brasil. Darcy, cientista de matriz marxista, esquerdista capaz de superar os limites das paixões ideológicas e políticas. Um libertário de si próprio. A vinda, que não veio, de Fernando Henrique, seria um momento importante na estratégia da pluralização da base de reconhecimento de Gilberto. Sobretudo em seu próprio país.
Veio, porém o importante antropólogo sociólogo Luiz Fernando Baeta Neves, que a certa altura afirmou, na sala cheia, que o importante para Gilberto Freyre, ele de corpo e atenção presentes, não era ter mais homenagens, tanto já as tinha. O importante era ter seguidores. Jovens pesquisadores, cientistas sociais dos mais diversos matizes capazes de continuar, aperfeiçoar, modernizar, contradizer dialeticamente, buscando novas sínteses e olhares de sua pioneira interpretação do Brasil.
Gilberto prestava toda atenção, curvo assentado na cadeira como de seu feitio, cabeleira branca, braços apoiados e longos dedos entrelaçados, com ouro anel fidalgo, saboreando a fecunda e ousada tese de Luiz Felipe. Quando na sala, houve quem em voz alta, e com autoridade familiar, logo interrompesse o conferencista: Gilberto precisa sim de muito mais homenagens. Foi um lapso silêncio constrangedor. Gilberto continuou impávido.
As homenagens passam, os seguidores continuam. Desdobram-se, revivem e vivificam. Homenagens enchem vitrines, currículos e criam museus. Os seguidores fazem a pauta do futuro. A glória antecipada de um intelectual é experimentar ainda vivo a sensação de que seu pensamento, sua inovação, seu insight, seu esforço físico e mental vai se continuar e se desdobrar para além de si. Seja nas instituições que ajudou a criar seja nas ideias que trouxe às gerações. Homenagem é efeméride, isto é, efêmero, dura um dia só. Voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar.
Sua ambição aos oitenta anos era além das ressurgências e insurgências, a permanência diante de sua pressentida iminente e definitiva ausência. Gilberto bem sabia. O intelectual, o pesquisador, o cientista social, sua ambição não era mais a insurgência ou ressurgência. Era a permanência. A presença de sua ausência, diria Proust.
Fernando Henrique sempre integrou a marxista USP. Mas Gilberto bem o poupou. Em seu novo livro De Menino a Homem, é explicito. Critica os cientistas sociais de São Paulo por seus submarxismos sectariamente ideológicos. Mas ressalva: O que de modo algum inclui um marxista do tipo de Fernando Henrique Cardoso. Gilberto provavelmente intuiu e distinguiu o marxismo democrata e pacificador de Fernando Henrique, formador de gerações, encaminhador de nações e de mundos, dos submarxismos acadêmicos. Não poderia nunca desdialogar com ele.
Fernando Henrique retribuiu vários dos acenos de Gilberto em sua direção. Acabou por escrever o prefácio da 47ª edição de Casa Grande e Senzala, com o sugestivo título de Um Livro Perene. Edson Nery da Fonseca, responsável, tudo confirma, pelas excelentes notas bibliográficas, ou melhor, autobiobibliográficas. Notas biobibliográficas de Edson sobre Gilberto no fundo são notas autobiobibliográficas tanto que juntos são, foram e sempre serão.
Em Paraty, nesta semana, teremos um momento de ressurgência para usar palavra tão cara a Gilberto. Resta saber se teremos os de convergência, que ele tanto ainda espera. Olhares vivos, de lá a espiar, como menino quase moleque.
» Joaquim Falcão é professor da Escola de Direito da FGV-RJ
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